Doença da globalização.

A cepa indiana (B.1.617.2) do coronavírus chegou ao Brasil. Os casos foram confirmados pela Secretaria de Saúde do Maranhão por meio de entrevista coletiva à imprensa. (…) O vírus estava na tripulação a bordo do navio Shandong da Zhi, que veio da África do Sul e foi fretado pela Vale para entregar minério de ferro em São Luís. LINK


Ou o mundo aceita que as coisas mudaram de vez, ou a vacina pode não ser o suficiente… Desfavor da Semana.

SALLY

A variante indiana, aquela que a OMS classifica como “digna de preocupação global” chegou ao Brasil. Seis tripulantes de um navio que chegou ao Maranhão vindo da Malásia foram identificados com variante: um deles está internado em hospital de São Luís, e os demais estão na embarcação, em alto mar. O que está internado chegou a ter contato com mais de cem pessoas. E, acredite, por pior que seja essa notícia, ela não é o Desfavor da Semana, é apenas o fio condutor para ele.

Desde o começo da pandemia nós batemos na tecla de desenvolver uma vacina é apenas um primeiro passo para começar a controlar uma pandemia. A logística de produção e distribuição para 8 bilhões de pessoas não é fácil e pode não ser rápida o bastante para imunizar a todos antes que surja uma variante que aprenda como escapar a essa vacina, recontaminando o mundo todo.

Então, mesmo com vacinas, o mundo deveria estar tomando uma série de cuidados que não parecem estar sendo tomados. Hoje tem vacina, mas, amanhã, essa vacina pode não ter serventia e voltamos para a estaca zero, com variante de covid matando milhões. Não dá para apostar todas as fichas na vacina, o mundo precisa fazer a sua parte para que a vacina continue eficiente, e um dos deveres de casa é parar de criar variantes e intercambiá-las entre países.

Para isso, muita coisa tem que mudar. A dinâmica de mundo como o conhecemos tem que mudar. Desde turismo até comércio, tudo terá que ser repensado de modo a assegurar o tempo que a humanidade precisa para vacinar toda a população. O contato humano deve ser reduzido ao máximo em todos os setores. Novas estratégias precisam ser pensadas, caso contrário, podemos jogar no lixo a vacina que temos.

E o Brasil mais que ninguém deveria estar ciente disso, já que se acha uma grande potência vacinadora, mas na verdade vacina mal pra caralho. Se continuar nesse ritmo e vacinação, adultos sem comorbidade só tomam vacina em 2023, ou seja, são mais dois anos de brazuca bundeando na rua e fazendo surgir novas variantes. Quais as chances de não dar merda?

Novamente vamos repetir o que dissemos em março de 2020: a vida não vai mais ser igual, não dá para pensar que vamos retomar o que era antes da pandemia. Dinâmicas terão que mudar, processos terão que mudar, precisamos nos adaptar a uma nova realidade mais restritiva se quisermos chegar até o final dessa maratona que é vacinar todo o planeta.

Comércio como é feito hoje é inviável. Podemos discutir infinitas opções, a questão é que entregar mercadoria comprada no país do outro é pedir para intercambiar variantes. Não adianta medir temperatura dos funcionários, não adianta PCR, não adianta nada que não seja cortar o contato humano no comércio. Cria pontos de armazenagem, deixa a mercadoria ali e o país que comprou vai buscar, sei lá, inventa um novo sistema. O atual é inviável.

Porém, ninguém parece estar pensando nisso. Isso não é nem ao menos uma questão. O mundo está confiando que se tem vacina vai ficar tudo bem – e isso pode não ser verdade. O mundo não está fazendo a sua parte para assegurar que dê tempo de todos se vacinarem antes do coronavírus aprender a escapar das vacinas. E, quando se ignora a realidade, a realidade se vinga e se faz mais presente do que nunca.

Um exemplo bobo, mas que diz muito sobre o que estamos falando: ante a recusa em suspender o futebol, o time argentino River Plate foi obrigado a jogar a Libertadores mesmo após um surto de covid-19 que contaminou 20 jogadores. Resultado: teve que entrar em campo com dez jogadores (um deles com braço quebrado) e sem goleiro (pegaram um meio de campo e colocaram o infeliz no gol).

Não dá para manter futebol ou qualquer esporte de contato “com todos os protocolos de segurança”. Já ficou claro que “todos os protocolos de segurança” não protegem. Não dá para querer manter o antigo normal à força, não tem erro pior do que ignorar a realidade. Quanto mais insistirem, pior vai ficar. Vamos ter que reinventar o comércio, reinventar o lazer, reinventar tudo que demande contato humano. E precisamos começar a falar sobre isso já.

Vai ser difícil e trabalhoso, mas o que mais me assusta é que ainda não tem ninguém falando nisso. Tá todo mundo bobo-alegre esperançoso que a vacina traga de volta o antigo normal, sem perceber que a humanidade falhou na logística e já se percebe que existe o risco de não conseguir vacinar todo mundo antes de acontecer uma desgraça. Enquanto o mundo todo não estiver vacinado, não dá para se comportar “no antigo normal” apenas “por ter vacina”.

E manter o comércio com contato humano ou insistir em esportes de contato, não importa quanto a realidade mostre que dá merda, são apenas alguns exemplos. A maior parte das pessoas, em sua vida cotidiana, está fazendo alguma cagada com essa mentalidade de “ah mas tem vacina”.

Tem promessa de vacina, que pode demorar anos para virar realidade. E nesse meio tempo, pode acontecer algo que neutralize essas vacinas e nos faça voltar à estaca zero: uma pandemia sem vacinas para o vírus que está circulando. Mesmo quem está vacinado pode perder o que conquistou: terá uma imunidade que não serve para nada e poderá ser atacado e morto por uma nova variante.

Isso precisa ser falado, precisa ser discutido, precisa virar uma questão. Não estamos tomando os cuidados necessários para dar a vida útil suficiente a essa vacina. Estamos jogando dados com a nossa sobrevivência. Estamos jogando dados com 8 bilhões de vidas. O mundo precisa aprender a antever problemas e tentar evitá-los em vez de ficar remendando desgraça consolidada.

Não acabou, e dessa vez não estamos falando só do Brasil, estamos falando do mundo. Não ganhamos essa guerra, apenas compramos uma arma que nos dá uma vantagem… mas pode ser que ela só seja entregue em 2023. E, se der merda, mesmo quem já tem a arma a perde. Tem certeza de que quer sair por aí desarmado com o inimigo circulando pela rua? Tem certeza de que quer se portar de modo a anular todas as armas que foram distribuídas?

Para dizer que ninguém vai discutir nada até dar merda, para dizer que precisa do conforto de acreditar que está tudo bem pois “tem vacina” ou ainda para lamentar que voltamos a esse tema deprimente: sally@desfavor.com

SOMIR

Em números absolutos, a gripe espanhola do século passado ainda é a pandemia mais mortal devidamente registrada. Mas em 1918, por mais que o mundo já experimentasse alguns avanços no transporte e na comunicação, ainda éramos muito mais isolados. Boa parte das pessoas não tinha muito contato com o resto do mundo, aliás, nem mesmo com outras regiões do próprio país.

Naquele tempo, quarentenas pontuais conseguiam controlar a disseminação do vírus, e dado algum tempo, era possível ir erradicando a doença de forma assimétrica: uma região ficava sob controle, depois outra, e assim por diante. Mesmo assim, estima-se que um terço da população mundial tenha se contaminado. Milhões pereceram, mas o tempo deu conta da pandemia.

Em 2021, é bem provável que as condições do mundo não permitam um desfecho parecido. Não só o coronavírus é diferente do Influenza, mas o grau de comunicação entre os diferentes povos e continentes do mundo também. Chegou no Brasil uma variante indiana num navio chinês que veio da África do Sul!

Todos os dias, o comércio mundial coloca em contato os quatro cantos do mundo, e em cada um deles, a situação da pandemia está diferente. Tanto na gravidade momentânea como na resposta governamental. Nunca foi tão barato viajar mundo afora, e basta olhar ao seu redor para entender como toda nossa economia gira ao redor dessa interconexão entre mercados. Boa parte dos bens de consumo que temos são resultado dos esforços de diversos países.

E é nesse contexto que temos que analisar o futuro dessa pandemia: sim, as vacinas são nossa arma mais poderosa, mas elas estão sendo distribuídas e aplicadas de forma muito diferente de acordo com a região. E não precisa ir muito longe para perceber isso: aqui mesmo no Brasil está tudo indo a passo de tartaruga, mesmo quem quer se vacinar (porque tem esse problema também) não consegue ainda.

E com exceção de países mais bem organizados, a maioria ainda está sofrendo para conseguir receber e aplicar as vacinas. Claro, melhores que o país governando por um antivacina de Facebook que nem o Brasil, mas mesmo assim com dificuldades. Vamos ter algumas diferenças sérias em cobertura vacinal nos próximos meses, e talvez anos.

Mas ir por esse caminho não é uma boa propaganda para os governos. Tanto que os EUA assumiram um risco dos grandes dizendo que quem tomar vacina não precisa mais de máscara. Dizer que a vacina resolveu o problema ajuda a animar a população e reaquecer a economia, mas ainda é uma aposta, especialmente num país com tantas conexões globais como os Estados Unidos.

O que dizer então do Brasil, que está tentando usar a mesma lógica de “fim de pandemia” antes mesmo de ter as vacinas para aplicar? Eu realmente acho que os EUA estão fazendo uma besteira, mas pelo menos eles estão com sobra de vacina. Isso tem toda a cara de terceira onda, mas as pessoas estão fingindo que está quase acabando.

Vacina não é tratamento, vacina é prevenção. As pessoas têm que estar imunizadas antes de pegar a doença. E isso só funciona direito se boa parte dos 8 bilhões de humanos estiverem protegidos. Se uma minoria (rica ou bem conectada) conseguir se vacinar e o resto da população continuar exposta ao vírus, a chance de uma variante passar por cima da vacina aumenta a cada dia.

Os benefícios de ter vacinado sua população podem ser de curto prazo, ou talvez até pior: virarem um ciclo vicioso de imunização para a variante da vez. Parece papo de obra de ficção distópica, mas pode acontecer de verdade: uma parte da população sempre vai estar vacinada contra as novas variantes, e a maioria sempre vai estar uma ou duas vacinas atrás, se é que conseguir ter acesso a uma delas. Esse povo largado à própria sorte mantem o ciclo desenvolvendo novas variantes, o que deixa as empresas produtoras num processo interminável (e lucrativo) de atualizar seus imunizantes para quem pode pagar.

E isso pode acontecer pelas características do mundo no qual vivemos: o comércio internacional é grande demais para parar, boa parte do mundo já se acostumou com não produzir tudo o que consome. É só um exemplo, não terrorismo: um dos primeiros grandes colapsos da humanidade, o da Era do Bronze, foi baseado numa série de problemas que cortaram o comércio entre grandes nações no Oriente Médio e pegaram todos esses reinos de calças curtas sem capacidade de sobreviver isolados.

Estou dizendo que nem é novidade, a humanidade já passou por essas situações. Mas no século XXI, o mundo todo é muito interdependente. Não sabemos mais funcionar em isolamento. Por isso, há uma ideia assustadora a se considerar: enquanto a maioria absoluta dos países não conseguir controlar a pandemia, ninguém vai estar seguro de verdade, nem mesmo vacinado.

Não dá pra fechar a Índia, ou mesmo o Brasil. Enquanto um país com muitas conexões com o comércio internacional estiver sofrendo com o coronavírus, estamos jogando dados e torcendo para a natureza não criar seguidas variantes resistentes à vacina. E historicamente, não é uma boa ideia apostar contra a natureza. Não só precisamos de um esforço global para espetar o braço de todo mundo o mais rápido possível, precisamos aceitar que o modelo de globalização que temos agora não foi planejado para uma grande pandemia.

Na gripe espanhola eles não tinham internet. Agora temos. Eles não tinham robôs e mecanização em massa, nós temos. Infelizmente, ainda é mais barato colocar em risco a vida dos mais pobres do que modificar a lógica do comércio global, mas pode ser que em poucos anos, não seja mais… espero que não precisemos chegar nesse ponto.

Para dizer que a variante indiana te transforma em vaca, para dizer que as elites criaram o vírus para acabar com o mercado que usam para ganhar dinheiro, ou mesmo para dizer que morrer não parece mais uma ideia tão ruim: somir@desfavor.com

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Comments (16)

  • “Doença da globalização”. Posso até estar dizendo bobagem, mas, se eu fosse vocês, daria um jeito de registrar o título desta postagem de forma a provar sua autoria. Desconfio que, no futuro, quando historiadores forem escrever seus livros explicando para as próximas gerações a tragédia que esta pandemia está sendo – e como e porque o Covid-19 se espalhou tanto e tão rápido pelo mundo inteiro – , alguns empreguem justamente essa denominação em suas obras.

  • Sally, o que você está falando tem dois nomes: nacionalismo e regionalização. Deixar de fazer da China o “chão de fábrica” global, ou do Brasil o “celeiro do mundo” – e dar força aos negócios dos próprios países para produzir tudo o que necessitam (a começar do IFA, que está travando a vacinação mundo afora).

    O custo de tudo isso, porém, chegará a galope, pela inflação acelerada e pelo fim de certos negócios como motores da economia (quem disse que turismo ecológico, ou economia verde, daria lucro algum dia?). Este deveria ser o momento de deixar de frescuras e investir no que é certo, produção e infraestrutura próprias, minimizando o percurso das variantes virais – e, ao mesmo tempo, fortalecendo a economia doméstica.

    Seria o momento de voltar ao controle da economia pelos entes locais – mas, enquanto isso, o que os grandes países estão pensando? No “Grande Reset econômico”, que é o contrário de tudo isso.

    Sinceramente, dá medo de pensar numa “II Grande Depressão” – mas é isso que vai ocorrer. Pena.

  • O vírus sempre vai ser mais evoluído que a vacina. Nem se vcs mantiverem o mesmo tema por 10 anos. Vamos pro 2 aniversário já. Só um bobo alegre pra achar que tem solução.

    • Solução tem. Só não achamos que a humanidade tenha competência para executá-la, a menos que comece a antever problemas e tente evitá-los. Se ficar enxugando gelo, vamos ficar anos nessa situação.

      • A peste negra durou 200 anos, Sally. O HIV está aí, firme e forte, matando há mais de 40 anos.

        Quem não garante que esse vírus não é a versão moderna das “dez pragas do Egito”? Ops, acho que ele já é…

  • A hipótese de que o vírus foi lançado de propósito pra prejudicar o resto do mundo e beneficiar a China não me parece muito plausível. A China lucraria com qualquer merda que acontecesse em nível global pelo simples fato de que tudo foi terceirizado pra lá. Quer fosse uma iniciativa na China, quer fosse uma guerra na Europa a China lucraria porque boa parte da produção de bens de consumo é feita lá, ou pelo menos começa por lá. Sem contar que o crescimento chinês em 2020 foi o menor em 40 anos, e os setores que tiveram crescimento foram exatamente os mesmos que nos outros países: T.I. e construção. Mas hotelaria e varejo sofreram um grande baque na China também, e só não foi pior porque tem 1 bilhão de pessoas como mercado interno.

    Aprendam a interpretar os números dos gráficos econômicos antes de conspirar, pelamordedeus.

    • Mas… em algum momento nós falamos que a China soltou o vírus de propósito para prejudicar o mundo?
      Tudo que eu faço desde 2020 é desmentir isso.

      • A China não lucra com isso, muito pelo contrário. O fim da globalização como conhecemos trará muito prejuízo à China, não dá para botar um país apenas como “chão de fábrica” do mundo nesse sistema.

    • Ah, é? Então por que o ditador chinês ficou bem quietinho, em vez de comunicar logo que tava rolando uma epidemia por lá? Quanto mais falências, mais eles vão comprando ao redor do mundo e aguardem mais, porque com a inevitável volta do PT, o Brasil será 100% colônia chinesa!

  • É erro em cim de erro. Na crise de Manaus, ao invés de passarem 3 dias se organizando e mandar aviões cheios de médicos e equipamentos pra montar hospitais no Amazonas, mandaram os doentes pra todos os cantos do país. Espalhou a variante de Manaus e foi mais uma pá de polvora pra segunda onda.
    Agora tem um doente, indiano! Que passou pela Africa do sul!! Vamos levar os equipamentos médicos pro navio ou vamos levar o doente pro continente e expôr um país inteiro a uma nova variante? E outra… o doente teve contato com 100 pessoas???? Ele saiu passeando de onibus de excursão pela cidade?
    Tinha que ter um minimo de protocolo: chegou num navio, fica no navio! Usa guindaste pra descarregar/carregar os contêineres e tchau.
    É muita burrice num lugar só.
    Mas, como o nivel nos aeroportos não deve tá muito diferente… nem adianta lamentar, esse do navio ficou famoso, mas quantos outros anonimos já devem ter entrado?

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