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Miséria portátil.

Miséria portátil.

| Somir | | 24 comentários em Miséria portátil.

Pelos direitos a mim investidos pela Semana do Mimimi, hoje posso falar sobre a minha maior decepção com o avanço da tecnologia humana nas últimas décadas: a terrível ideia de tornar tudo portátil. Ao invés de focar em capacidade de trabalho e qualidade do lazer, focamos todos nossos esforços na capacidade de mandar emojis uns para os outros até mesmo enquanto estamos cagando…

Não me entendam mal, há um lado positivo em aprender a miniaturizar e tornar nossa tecnologia mais eficiente do ponto de vista energético, mas pra tudo tem limite. Se metade do esforço para fazer a vadia genérica nº 4.012.991 poder postar fotos da bunda em qualquer lugar fosse direcionado para exploração espacial, já teríamos uma colônia em Marte.

Mas não, decidiram que ao invés de ter computadores melhores, teríamos arremedos deles que cabem num bolso ou numa mochila. Porque aparentemente as pessoas querem ter a liberdade de trabalhar, estudar e criar em qualquer lugar, enquanto fazem todo tido de atividade, certo? Na prática, temos uma maioria sentada num sofá ou deitada na cama vendo fotos de outras pessoas e cutucando a tela para dizer se gostaram ou não da aparência delas.

É como se a humanidade toda resolvesse ter dado aquele “migué” de criança dizendo para os pais que precisa de um novo equipamento para poder estudar melhor, quando na verdade só queria algo que rodasse mais jogos. Todo mundo fez vistas grossas para esse golpe, e agora temos que aguentar toda a babaquice da era dos smartphones e laptops.

“Mas é mais prático!”

Prático pra quê? Pra ter menos opções numa tela minúscula? Pra reduzir a sua precisão em tarefas comuns? Pra passar mais tempo em ambientes ruins para a concentração? A pessoa normal quase sempre usa seu smartphone ou laptop em situações que poderia usar um computador de verdade. Dentro de casa ou no ambiente de trabalho. Vai dizer que escreve um relatório no seu celular enquanto está andando na rua? Ou que monta uma apresentação enquanto está no metrô?

Existem sim alguns casos onde o profissional precisa de uma máquina portátil para trabalhar em campo, mas eu aposto que na maioria absoluta dos casos, o smartphone é usado como distração e o laptop fica quietinho em cima de uma mesa. Enfiaram na cabeça das pessoas que esse era o futuro e elas aceitaram sem pensar meia vez.

Ficaram com uma máquina ruim com várias limitações de usabilidade porque a moda era ter uma delas.

“Mas celulares e notebooks são rápidos hoje em dia!”

Presta atenção numa coisa: nenhum celular é mais poderoso que um computador de mesa mediano e nenhum notebook que custa menos que um carro pode ser comparado com a versão real de mesa. Não é achismo, é física. Computadores são máquinas que utilizam eletricidade para processar dados, e esse modo de funcionar gera calor. Sim, tivemos muitos avanços nesse meio tempo, mas você precisa consumir eletricidade em dissipar calor em grandes volumes para ter resultados realmente impressionantes.

Coisa que uma bateriazinha e um milímetros de área livre antes da próxima superfície não conseguem entregar. Se você acha que um smartphone ou um notebook fazem as mesmas coisas que um computador desktop, você nunca usou um computador desktop relativamente novo e bem montado. A diferença de velocidade e a gama de possibilidades é imensa.

Lógica simples: se o trabalho era cavar um buraco, você está dizendo que usar uma colher dá no mesmo que usar uma pá. Não dá no mesmo. Pode ser a colher mais linda do mundo, pode ter custado milhares e milhares de reais, mas ainda é uma colher.

“Mas como você é chato, sou eu que estou usando! Problema meu!”

Verdade. Problema seu. Mas talvez você se converta ao meu mimimi se entender o que realmente está por trás disso. Direito seu pagar caro por um equipamento ruim, é claro. Mas tem algo de muito mais nefasto por trás disso: você está tomando um golpe do mercado de trabalho e provavelmente nem percebeu.

Hoje em dia muitas funções são realizadas exclusivamente com um computador. Muita gente trabalha só com essa ferramenta. Antigamente, se você tivesse uma empresa e tivesse que contratar funcionários para realizar tarefas num computador, tinha que comprar e manter um deles. Algo que ficasse na sede da empresa e fosse minimamente capaz de cumprir a função.

E isso obviamente gerava custos. Não só o do equipamento, mas um custo escondido de te manter lá dentro. Não dá para te contratar como freelance se você passa 8 horas por dia todos os dias dentro da sede da empresa, uma hora ou outra vem o processo e ele custa caro. Por isso, quase todo o mercado recebeu os laptops e smartphones de braços abertos: sem perceber, a maioria dos trabalhadores que precisavam de computadores começaram a ajudar com as finanças de seus contratantes.

Já chegavam com seus computadores. A linha entre computador de uso pessoal e profissional borrou de tal forma que ninguém mais tem vergonha de dizer para o possível contratado que ele precisa ter seu próprio notebook e smartphone. Você usa a sua máquina, comprada com seu dinheiro, para prestar serviços para terceiros. E se acha super moderno por isso.

A depreciação da bomba que você tem em mãos é toda sua. E tem mais: em tese, você está com sua máquina de trabalho 24 horas por dia, 7 dias por semana. Não tem que esperar chegar na empresa para fazer as tarefas do dia. E se você for uma pessoa que se preocupa com sua performance, vai saber que seu trabalho está te esperando onde você estiver. Não é curioso que o número de casos de síndrome do pânico, burnout ou ansiedade aumentou muito nas últimas décadas?

O seu trabalho está com você o tempo todo. E você pagou, feliz da vida, pela ferramenta que permite isso. Os empregadores agradecem! E ainda fazem vários discursos sobre “vestir a camisa” e ter “cultura corporativa” através de artigos e vídeos de motivação para você nunca se esquecer que seu trabalho está sempre ao seu lado, esperando até você ter força de vontade de realizá-lo até mesmo no seu tempo livre.

Pode trabalhar da cama, pode trabalhar no banheiro… você tem um notebook! E antes da obrigatoriedade de trabalhar em casa por causa da pandemia, essa era uma ferramenta poderosa para evitar que você pudesse provar vínculo empregatício: “fica em casa alguns dias da semana, pra sua saúde mental”. Claro! Pra sua saúde mental e para evitar um processo depois.

Computador desktop você desliga, smartphone e laptop não, estão sempre ligados, esperando uma interação. Isso entra sua cabeça, você percebendo ou não. Essa onda de miniaturização e portabilidade não foi criada para salvar a natureza com menos gasto de eletricidade, ela é uma ferramenta de controle mental do trabalhador do século XXI.

É isso que te deixa sempre conectado, sempre disponível. Preso a uma telinha que te atrai com a promessa de socialização, mas que na verdade é tão limitada na sua capacidade que só te deixa mesmo utilizar redes sociais com eficiência. Você pode ver um vídeo de baixa qualidade numa posição desconfortável também, se quiser. Ou jogar um jogo bem limitado que normalmente cobra para desbloquear mais funções. Você é distraído na medida certa, numa máquina que normalmente só te permite reagir a conteúdo simples.

E a indústria da tecnologia adora isso: pode construir máquinas com baixo custo, padronizadas ao extremo para que a maioria da humanidade se acostume com o menor denominador comum da tecnologia e não fique tendo ideias grandiosas. A noção do cidadão médio sobre o verdadeiro poder de computadores foi distorcida a tal ponto que até mesmo aqui, no Desfavor, com uma concentração maior do que a média de nerds, alguém vai tentar argumentar sobre como um celular ou um laptop se comparam com um computador real.

Porque as pessoas se acostumaram com a estagnação da tecnologia e tem cada vez menos contato com máquinas de verdadeira alta performance. Parem de discutir comigo que uma colher funciona tão bem quanto uma pá! É… uma… colher!

Passou debaixo do nariz da maioria das pessoas. A revolução da portabilidade foi excelente para quem já estava no controle. Será que é à toa que influencer e prostituta digital viraram carreiras tão comuns? Eu vivo dizendo que a humanidade é a tecnologia que usa, e não é à toa. Humanos serão humanos em qualquer contexto, mas o que eles fazem muda de acordo com a disponibilidade tecnológica.

A portabilidade está criando gerações de pessoas neuróticas com o prospecto de “poder trabalhar de qualquer lugar”, cujo único alento é usar a mesma máquina para fingir que socializa.

Meu computador eu posso desligar. E o seu?

Para dizer que foi um mimimi comunista, para dizer que eu estou ficando velho, ou mesmo para dizer que faz pouco no trabalho para se vingar do sistema: somir@desfavor.com


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