Miséria portátil.

Pelos direitos a mim investidos pela Semana do Mimimi, hoje posso falar sobre a minha maior decepção com o avanço da tecnologia humana nas últimas décadas: a terrível ideia de tornar tudo portátil. Ao invés de focar em capacidade de trabalho e qualidade do lazer, focamos todos nossos esforços na capacidade de mandar emojis uns para os outros até mesmo enquanto estamos cagando…

Não me entendam mal, há um lado positivo em aprender a miniaturizar e tornar nossa tecnologia mais eficiente do ponto de vista energético, mas pra tudo tem limite. Se metade do esforço para fazer a vadia genérica nº 4.012.991 poder postar fotos da bunda em qualquer lugar fosse direcionado para exploração espacial, já teríamos uma colônia em Marte.

Mas não, decidiram que ao invés de ter computadores melhores, teríamos arremedos deles que cabem num bolso ou numa mochila. Porque aparentemente as pessoas querem ter a liberdade de trabalhar, estudar e criar em qualquer lugar, enquanto fazem todo tido de atividade, certo? Na prática, temos uma maioria sentada num sofá ou deitada na cama vendo fotos de outras pessoas e cutucando a tela para dizer se gostaram ou não da aparência delas.

É como se a humanidade toda resolvesse ter dado aquele “migué” de criança dizendo para os pais que precisa de um novo equipamento para poder estudar melhor, quando na verdade só queria algo que rodasse mais jogos. Todo mundo fez vistas grossas para esse golpe, e agora temos que aguentar toda a babaquice da era dos smartphones e laptops.

“Mas é mais prático!”

Prático pra quê? Pra ter menos opções numa tela minúscula? Pra reduzir a sua precisão em tarefas comuns? Pra passar mais tempo em ambientes ruins para a concentração? A pessoa normal quase sempre usa seu smartphone ou laptop em situações que poderia usar um computador de verdade. Dentro de casa ou no ambiente de trabalho. Vai dizer que escreve um relatório no seu celular enquanto está andando na rua? Ou que monta uma apresentação enquanto está no metrô?

Existem sim alguns casos onde o profissional precisa de uma máquina portátil para trabalhar em campo, mas eu aposto que na maioria absoluta dos casos, o smartphone é usado como distração e o laptop fica quietinho em cima de uma mesa. Enfiaram na cabeça das pessoas que esse era o futuro e elas aceitaram sem pensar meia vez.

Ficaram com uma máquina ruim com várias limitações de usabilidade porque a moda era ter uma delas.

“Mas celulares e notebooks são rápidos hoje em dia!”

Presta atenção numa coisa: nenhum celular é mais poderoso que um computador de mesa mediano e nenhum notebook que custa menos que um carro pode ser comparado com a versão real de mesa. Não é achismo, é física. Computadores são máquinas que utilizam eletricidade para processar dados, e esse modo de funcionar gera calor. Sim, tivemos muitos avanços nesse meio tempo, mas você precisa consumir eletricidade em dissipar calor em grandes volumes para ter resultados realmente impressionantes.

Coisa que uma bateriazinha e um milímetros de área livre antes da próxima superfície não conseguem entregar. Se você acha que um smartphone ou um notebook fazem as mesmas coisas que um computador desktop, você nunca usou um computador desktop relativamente novo e bem montado. A diferença de velocidade e a gama de possibilidades é imensa.

Lógica simples: se o trabalho era cavar um buraco, você está dizendo que usar uma colher dá no mesmo que usar uma pá. Não dá no mesmo. Pode ser a colher mais linda do mundo, pode ter custado milhares e milhares de reais, mas ainda é uma colher.

“Mas como você é chato, sou eu que estou usando! Problema meu!”

Verdade. Problema seu. Mas talvez você se converta ao meu mimimi se entender o que realmente está por trás disso. Direito seu pagar caro por um equipamento ruim, é claro. Mas tem algo de muito mais nefasto por trás disso: você está tomando um golpe do mercado de trabalho e provavelmente nem percebeu.

Hoje em dia muitas funções são realizadas exclusivamente com um computador. Muita gente trabalha só com essa ferramenta. Antigamente, se você tivesse uma empresa e tivesse que contratar funcionários para realizar tarefas num computador, tinha que comprar e manter um deles. Algo que ficasse na sede da empresa e fosse minimamente capaz de cumprir a função.

E isso obviamente gerava custos. Não só o do equipamento, mas um custo escondido de te manter lá dentro. Não dá para te contratar como freelance se você passa 8 horas por dia todos os dias dentro da sede da empresa, uma hora ou outra vem o processo e ele custa caro. Por isso, quase todo o mercado recebeu os laptops e smartphones de braços abertos: sem perceber, a maioria dos trabalhadores que precisavam de computadores começaram a ajudar com as finanças de seus contratantes.

Já chegavam com seus computadores. A linha entre computador de uso pessoal e profissional borrou de tal forma que ninguém mais tem vergonha de dizer para o possível contratado que ele precisa ter seu próprio notebook e smartphone. Você usa a sua máquina, comprada com seu dinheiro, para prestar serviços para terceiros. E se acha super moderno por isso.

A depreciação da bomba que você tem em mãos é toda sua. E tem mais: em tese, você está com sua máquina de trabalho 24 horas por dia, 7 dias por semana. Não tem que esperar chegar na empresa para fazer as tarefas do dia. E se você for uma pessoa que se preocupa com sua performance, vai saber que seu trabalho está te esperando onde você estiver. Não é curioso que o número de casos de síndrome do pânico, burnout ou ansiedade aumentou muito nas últimas décadas?

O seu trabalho está com você o tempo todo. E você pagou, feliz da vida, pela ferramenta que permite isso. Os empregadores agradecem! E ainda fazem vários discursos sobre “vestir a camisa” e ter “cultura corporativa” através de artigos e vídeos de motivação para você nunca se esquecer que seu trabalho está sempre ao seu lado, esperando até você ter força de vontade de realizá-lo até mesmo no seu tempo livre.

Pode trabalhar da cama, pode trabalhar no banheiro… você tem um notebook! E antes da obrigatoriedade de trabalhar em casa por causa da pandemia, essa era uma ferramenta poderosa para evitar que você pudesse provar vínculo empregatício: “fica em casa alguns dias da semana, pra sua saúde mental”. Claro! Pra sua saúde mental e para evitar um processo depois.

Computador desktop você desliga, smartphone e laptop não, estão sempre ligados, esperando uma interação. Isso entra sua cabeça, você percebendo ou não. Essa onda de miniaturização e portabilidade não foi criada para salvar a natureza com menos gasto de eletricidade, ela é uma ferramenta de controle mental do trabalhador do século XXI.

É isso que te deixa sempre conectado, sempre disponível. Preso a uma telinha que te atrai com a promessa de socialização, mas que na verdade é tão limitada na sua capacidade que só te deixa mesmo utilizar redes sociais com eficiência. Você pode ver um vídeo de baixa qualidade numa posição desconfortável também, se quiser. Ou jogar um jogo bem limitado que normalmente cobra para desbloquear mais funções. Você é distraído na medida certa, numa máquina que normalmente só te permite reagir a conteúdo simples.

E a indústria da tecnologia adora isso: pode construir máquinas com baixo custo, padronizadas ao extremo para que a maioria da humanidade se acostume com o menor denominador comum da tecnologia e não fique tendo ideias grandiosas. A noção do cidadão médio sobre o verdadeiro poder de computadores foi distorcida a tal ponto que até mesmo aqui, no Desfavor, com uma concentração maior do que a média de nerds, alguém vai tentar argumentar sobre como um celular ou um laptop se comparam com um computador real.

Porque as pessoas se acostumaram com a estagnação da tecnologia e tem cada vez menos contato com máquinas de verdadeira alta performance. Parem de discutir comigo que uma colher funciona tão bem quanto uma pá! É… uma… colher!

Passou debaixo do nariz da maioria das pessoas. A revolução da portabilidade foi excelente para quem já estava no controle. Será que é à toa que influencer e prostituta digital viraram carreiras tão comuns? Eu vivo dizendo que a humanidade é a tecnologia que usa, e não é à toa. Humanos serão humanos em qualquer contexto, mas o que eles fazem muda de acordo com a disponibilidade tecnológica.

A portabilidade está criando gerações de pessoas neuróticas com o prospecto de “poder trabalhar de qualquer lugar”, cujo único alento é usar a mesma máquina para fingir que socializa.

Meu computador eu posso desligar. E o seu?

Para dizer que foi um mimimi comunista, para dizer que eu estou ficando velho, ou mesmo para dizer que faz pouco no trabalho para se vingar do sistema: somir@desfavor.com

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Comments (24)

  • Não curto muito o minitablet (sim, é assim que eu chamo os “smartphones” de hoje em dia) que uso.
    Só é bom pra usar os apps, a internet e olha lá.
    Pra telefonar, você tem que ir no app do telefone e discar, sendo que quando tem uma daquelas malditas URAs, tem de se recorrer ao teclado virtual pra teclar o número que a URA pede e lá se vai tempo.
    Estou usando um note improvisado de computador “desktop” e sinto ele bem limitado, mas ainda assim estou segurando a situação como dá.
    Até comprei um daqueles aparelhos antigos pra poder usar exclusivamente para fazer chamadas. Não é por nada, mas prefiro assim.

  • Não entendi a inviabilidade de desligar um notebook. O mecanismo é o mesmo de um desktop. Isso não se aplica aos smartcraps (salvo engano, termo visto aqui há muitos anos), porque neles a disponibilidade permanente foi realmente erigida a pressuposto ou necessidade.
    No mais, ótimo texto. As ferramentas de (auto)controle do trabalhador se sofisticaram, de fato. A mentalidade empresarial, no ponto, prossegue congelada.
    Celular é dispensável, de resto. Para evitar “borrar a linha” trabalho-lazer, um note (devidamente desligado fora do expediente) e um desktop.

    • Boa parte das pessoas nem sabe que notebook desliga. Ele fica eternamente em modo de espera. É uma questão psicológica também: ele funciona fora da tomada, ele funciona em qualquer lugar. Notebooks tem esse mesmo apelo/armadilha que smartphones.

  • (ranzinz)Ana94

    A gourmetização da tecnologia também afetou os PCs. Pelo menos entre a faixa etária 13-30 anos, agora PC se resume a jogo, e daqueles que te força a ter conta em algum serviço arrombado como Steam. Ou programação, como boia salva-vidas desse país falido. Adoro como programação virou algo tipo coach: “alguém veio e te deu cinco tiros e você ficou paralítico com transtorno pós-traumático? Faça programação, seus problemas acabaram! Veja como eu, ser iluminado, ganho meio milhão por milissegundos graças à programação!”

    E quando você vai às compras? Placa de vídeo? Com certeza é pra PC Gamer! Produtos que custam um dos seus rins, mas que roda liso algum ex-exclusivo de console. Mouse ou teclados novos? Predominam aquelas porras com “luzinha” pisca-pisca com uns quatro botões extras que você vai nunca descobrirá pra quê servem. Câmeras? Com certeza, é pra ser influencer ou fazer gameplay escrota em que o “gamer” não para de falar, parecendo um papagaio cheirado de cocaína.

    Agora, quando você pergunta sobre specs para administração de blogs, editores de textos, ler ou escrever: “Por que você não usa no celular? Eu conheço um aplicativo Pato que faz de tudo um pouco pra mobile, amiga!”

    • Nem me fala dessas porras de RGB. Eu tenho que pesquisar o dobro agora para achar peças que não fiquem piscando que nem árvore de natal. Parecem os Orks do Warhammer 40K, acham que se piscar colorido vai mais rápido…

  • A utopia do século foi acreditar que a tecnologia nos libertaria, nos tornaria melhores. Aprimoraram os eletrônicos e junto deles, as coleiras e os cercadinhos sociais nos alcançam em todo lugar, principalmente no trabalho, que tem a precariedade disfarçada como mobilidade. Celulares e computadores podem se equiparar apenas no preço. 10 mil é o preço de um celular recém lançado, mas esse mesmo dinheiro compra um bom computador, que fará infinitamente mais. A gourmetização produz apenas aparelhos mais simples e fáceis, nunca melhores. Uma colher cabe em qualquer lugar, mas continuará sendo uma colher, mesmo que custe o preço de uma pá.

    • A pessoa chega na vida adulta com as habilidades necessárias para ser influencer. Não precisa mais do que uma colher pra isso…

  • Innen Wahrheit

    Procurei no texto inteiro o que poderia ser considerado “mimimi” e não encontrei. Quero meu dinheiro de volta!

    • Para receber seu dinheiro de volta, entre no app do Desfavor (só disponível para celulares) e confirme sua identidade tirando uma selfie (que não vai reconhecer seu rosto).

  • Ahh como eu gosto de textos assim!
    Concordo muito, Somir! Eu sei que as coisas evoluem, que a experiência de usuário muda e tal, mas poxa, a impressão que dá, de um tempo pra cá, é que as pessoas foram ficando mais burras e mais preguiçosas pra mexerem no computador, naquele padrão sentar numa mesa, usar mouse e teclado. Parece ser mais fácil, e mais prazeroso, ficar deitado numa rede, cama ou puff sei lá, só enfiando o dedo na tela. E ainda querem que toda mágica aconteça assim, em poucos cliques.

    • “Você vai poder fazer menos coisas, mais devagar, mas vai ter uma câmera para apontar para sua genitália a qualquer momento! Bem vindo ao futuro!”

  • Dependendo da família, tem gente que nem notebook tem, tudo é pelo smartphone, até pra usar o Word pra fazer trabalho escolar. Vai ser engraçado ver um monte de adolescente tendo que fazer curso de computação estilo anos 90/2000 pra aprender a digitar e usar o mouse.

    A propósito, podemos debater sobre esse recente obsessão de que pra uma coisa ser moderna e tecnológica precisa ser intangível? Parece que querem transformar o mundo inteiro num Ipad gigante, tudo touchscreen e virtual, não consigo lidar bem com isso. Coisas físicas, como teclas e papel, podem fazer muita diferença no desenvolvimento da memória e da coordenação motora. Não é a toa que, enquanto o macaco médio coloca os macaquinhos pra assistir Baby Shark em loop no tablet, os figurões do ramo da tecnologia limitam o tempo que seus filhos passam olhando pra telas.

    • Quando eu ainda tinha saco para estagiários, comecei a perceber isso: já tem uma geração que não entende muito bem o conceito de mouse e teclado… ou mesmo quanta coisa a mais você pode fazer com uma máquina que não está à beira de fritar e ficar sem energia nos próximos segundos.

      Tem que ensinar mesmo. Bizarro.

  • Talvez eu não tenha entendido muito bem o que o Somir quis dizer com o texto de hoje – e antecipadamente peço desculpas se realmente estiver “passando recibo” disso – , mas acho que, sem saber, já era adepto de ao menos parte do modo dele de pensar sobre esta questão. Não tenho notebook – embora por um tempo tenha ficado tentado a comprar um – , e celular, para mim, é só para contato por WhatsApp quando estritamente necessário ou por ligação mesmo. Quando ficam me mandando besteirinhas, procuro cortar logo. Trabalho de verdade eu ainda faço no computador de mesa, seja no do escritório como era antes da pandemia ou no de casa, agora por causa do Coronavírus. Sem falar que, anos atrás, na época em que trabalhei como redator em sites de esportes, eu já atuava em esquema de home-office. Admito que eu possa ser um tanto antiquado, mas acho que, na hora do “vamos ver”, o desempenho de um computador de mesa, por mais que nem seja dos mais parrudos, realmente ainda é melhor do que o de um smartphone ou de um notebook. E eu também me sinto bem mais confortável trabalhando com um PC de verdade, colocado em uma mesa de verdade, e sentado em uma cadeira de escritório de verdade.

    • Infelizmente, estamos virando minoria. Agora, a pessoa mostra a colher pra você e diz que faz tudo o que a pá faz, e você é antiquado se disser o contrário. Boa sorte trabalhando corcunda enquanto espera o Word abrir, prefiro ser antiquado com tecnologias duas ou três vezes mais modernas que qualquer portátil…

  • “Enfiaram na cabeça das pessoas que esse era o futuro e elas aceitaram sem pensar meia vez.”

    É que qualquer um que questiona alguma bizarrice do mundo moderno é acusado de querer voltar pra Idade Média pra queimar mulher e proibir o sexo anal, ou de ser ecochato, comunista, conspirador…

    • Dividir para conquistar.

      “Fica brigando aí pelo o que as pessoas fazem com o cu enquanto aceita bovinamente as ferramentas de controle que estamos criando pra você.”

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