Como funciona?

Eu poderia começar esse texto dizendo que ultimamente as pessoas estão perdendo o senso crítico e aceitando qualquer bobagem como verdade. Mas… não seria verdade. Ninguém perde o que nunca teve. Por todas as informações que temos sobre o passado, a humanidade nunca foi muito boa nessa coisa de pensar sobre o que acredita.

Faz tempo que eu defendo a teoria que o mundo não piora, apenas ficamos sabendo de mais podres que nossos antepassados. Um imbecil pode te alcançar de inúmeras formas na Era da Comunicação, você e inúmeras outras pessoas. Desinformação se espalha como fogo no mato, normalmente muito mais interessante para o cidadão médio do que fatos mais bem estudados.

Pudera, precisa de algum esforço para ver a graça em coisas sem o pincel de magia que o cidadão médio gosta de colocar nas coisas. A verdade é que achar graça nas informações que recebe depende muito das informações que você já tinha na cabeça. Difícil comparar o apelo da ideia de que vacinas são uma conspiração maligna para fazer crianças se tornarem autistas com a ideia de que elas ativam o sistema imunológico para enfrentar a doença em uma ocasião futura.

A primeira fala com instintos primais de medo e proteção da prole, reforça a ideia de que existem pessoas agindo nas sombras para te atrapalhar (reduzindo responsabilidade pessoal) e ainda por cima te faz achar que está em posição de vantagem sobre pessoas que ainda não perceberam a mesma coisa. A segunda exige conhecimento sobre o funcionamento do corpo humano e o grau de complexidade absurdo da vida para começar a ter alguma graça. Está meio na cara qual é mais divertida. Para a primeira, todos estão equipados, para a segunda, quase ninguém.

E explicar essa questão de falta de interesse em informações mais sólidas e bem estudadas acaba virando a história do ovo e da galinha: as pessoas não têm interesse porque são ignorantes ou são ignorantes porque não têm interesse? Outro tema comum nesses textos meus é o conceito de curiosidade. Tenho a nítida impressão que essa é a característica que as pessoas mais perdem com o passar dos anos.

E sou compreensivo: minha curiosidade também diminuiu com o tempo, algumas coisas simplesmente não geram mais empolgação do aprendizado. Deve ser normal ter uma queda, o cérebro começa um lento e imparável processo de deterioração a partir do momento que termina sua maturação. Se você passou dos 24, provavelmente já está nessa fase. A natureza é cruel. Mas não dá para colocar tudo na conta de deterioração cerebral. Quem era curioso fica um pouco menos, mas ainda consegue derivar prazer do aprendizado.

O problema é a quantidade de pessoas que simplesmente fecha essa porta na mente assim que se considera adulta. O que no Brasil muitas vezes acontece na pré-adolescência. Muitas vezes mais culpa do ambiente do que da pessoa. Para tudo o que pretende fazer, se considera pronta. E tudo o que pretende fazer é ganhar algum dinheiro, se reproduzir e… bom, era só isso mesmo. O que depender de instintos de sobrevivência.

O ponto é: muita gente acaba perdendo a capacidade de se perguntar o porquê das coisas. A noção de causa e consequência que traz tanta satisfação na infância vai se esvaindo com o desenvolvimento do corpo, até chegar num ponto onde o único prazer derivado do aprendizado é ter uma resposta pronta que confirme algo que a pessoa já acredita. Se confirma a ideia original, traz felicidade; se a confronta, incomoda, e muito.

Apesar disso fazer com que pessoas acreditem em completos absurdos como terraplanismo, eu argumento que isso é apenas o sintoma. A verdadeira doença é parar de se perguntar como as coisas funcionam. O conhecimento humano atual é minúsculo em relação a tudo o que se tem para aprender, mas já é suficientemente grande para não caber na cabeça de ninguém. Não importa o que você esteja vendo ou pensando, alguém já tentou explicar. Alguém já fez um estudo e/ou uma experiência.

E normalmente, o assunto vai longe por causa disso. Vamos pensar na vacina, por exemplo: quem diz que vacina causa autismo está dizendo uma tonelada de coisas ao mesmo tempo. Primeiro, que autismo pode ser causado por alguma substância.

Como assim? Autismo faz o quê com o cérebro da pessoa? Tem algum elemento químico que causa o comportamento do autista? Se tem, por que não existe remédio? Por que dizem que é congênito então? O que se ganha mentindo que não é uma substância que causa? Farmacêuticas não querem vender mais remédios?

E o que isso tem a ver com a vacina? Criaram a vacina para causar autismo nas crianças? Ou é um efeito colateral? Se vacinas podem causar autismo, elas podem causar outros problemas mentais? Será que todos os problemas mentais podem ser traçados de volta às vacinas? Mas e antes das vacinas, as pessoas não tinham autismo? E como é que você coloca autismo na vacina? O que tem na vacina que causa autismo está em outros lugares? Ou só causa autismo se estiver numa vacina?

E na prática, como é que um vírus inativado faz uma pessoa virar autista? O vírus real não deveria causar ainda mais autismo? Ou é outra coisa que não o vírus? Se é outra coisa, é algo tão necessário assim para as vacinas que não pode ficar de fora? Não faz sentido que tentassem tirar essa coisa que causa autismo da vacina? Afinal, é a parte do vírus que importa. Ou você quer dizer que vacina funciona por outro motivo que não o vírus? Você acha que estão colocando autismo nas vacinas de propósito?

Ah, você tem um estudo? Só tem um ou são vários? Mais pessoas fizeram esse estudo e chegaram na mesma conclusão? Mas conseguem definir se foi a vacina mesmo? Não pode ter sido outra coisa? Eles colocam até morte nas bulas das vacinas, será que morte tudo bem, mas autismo é demais? Por que esconder isso, mas não esconder a parte das mortes? E se é efeito colateral mesmo e só você e meia dúzia dão bola pra isso, será que é um efeito tão comum assim? Nem faz sentido que seja efeito colateral, mas se fosse… não seria uma chance minúscula? Não tem tanto autista assim, tem? E casos mais leves de autismo? A vacina era mais fraca? Asperger conta ou não? Se não, por quê? Se sim… por quê?

Percebem como qualquer afirmação pode gerar uma quantidade imensa de perguntas? Existem inúmeras presunções enfiadas em cada ideia, e quanto mais informação você já tem, maior o número de perguntas que consegue pensar. Um médico ou estudioso da área poderia passar semanas fazendo perguntas para alguém que acha que vacina causa autismo. E talvez mais importante: se faria várias dessas perguntas antes de aceitar uma ideia como essa.

E é aí que surge a principal defesa contra ideias furadas anticientíficas: a curiosidade de saber como funciona. Porque a ciência é montada assim, a partir de dúvidas. Você vai se perguntando os motivos de algo que observa até formular uma ideia razoável sobre a situação. E estar errado é ótimo: te permite fazer muito mais perguntas e avançar muito mais sua pesquisa.

A gente acaba criado com a ideia de que quem faz pergunta é burro. Pergunta quem não entendeu, e a pessoa imagina que o que se espera dela é entender tudo de primeira. Acabamos treinados a não perguntar, a fingir que entendemos algo imediatamente para manter uma ilusão de funcionalidade social. Pior ainda é quando uma pessoa que ficou com medo de fazer perguntas é questionada por outra: aí todo o medo da inadequação se torna em raiva, é bem comum que pessoas ignorantes fiquem muito irritadas quando ouvem uma pergunta, afinal, normalmente não sabem a resposta. Só fingiram que entenderam e torceram para nunca serem desmascaradas.

O curioso é que a turma das conspirações adora dizer que devemos fazer perguntas, que não devemos aceitar cegamente o que nos dizem, mas é apenas uma adaptação preguiçosa do conceito que eu estou explorando aqui: a pessoa que diz que está fazendo perguntas nesse contexto conspiratório não tem mais curiosidade para entender o que está acontecendo, já abraçou uma ideia e está apenas tentando atrair mais simpatizantes para sua causa. Tanto que se você fizer uma bateria de perguntas para alguém defendendo uma dessas teorias conspiratórias, é certeza que a pessoa fica furiosa e começa a te atacar.

Porque no final das contas, você está atacando mesmo: não só está batendo numa crença dela testando suas bases, como está pegando no ponto mais frágil da maioria delas, a conexão com a realidade. Na vida real, você precisa encontrar conexões sólidas entre causas e consequência, no mundo da fantasia das conspirações de Facebook, você imagina a causa da consequência que acredita estar vendo. Encontro ruim? Hormônios na água. Apertado para pagar a conta? Os banqueiros judeus estão te roubando…

Quem faz perguntas começa a ver que tudo é imensamente mais complicado que alguns parágrafos de texto de fácil digestão. O que eu escrevo aqui pode ser a porta de entrada de um mundo assustadoramente complexo pra você, mas é só isso mesmo, uma porta de entrada. Você só vai entrar no tema mesmo se começar a se fazer perguntas, se tentar achar algo errado com o que eu escrevi e talvez mesmo até se tirar isso a limpo nos comentários. Sem pressão, como eu disse no começo do texto: não é tudo que precisa despertar sua curiosidade.

Mas nunca fique sem ela. Quando achar qualquer tema que te acenda um pouco seu interesse, comece a fazer perguntas. Descubra como é feito, como acontece, porque não é de outro jeito… e se aproveite do fato que muitos outros seres humanos fizeram essa pergunta antes. Não confie em quem tem respostas, preste atenção em quem faz perguntas.

Entendeu?

Para perguntar por que eu escrevo, para perguntar se vacina causa autismo, ou mesmo para dizer que eu devo ter tomado umas quatrocentas vacinas: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Bom dia!

    Ótimo texto, Somir! Relê-lo-ei assim que possível, é deveras interessante!

    Tenho uma dúvida breve, que, caso haja a resposta no texto e eu não tenha notado, perdoe-me. É sobre este parágrafo:

    “E sou compreensivo: minha curiosidade também diminuiu com o tempo, algumas coisas simplesmente não geram mais empolgação do aprendizado. Deve ser normal ter uma queda, o cérebro começa um lento e imparável processo de deterioração a partir do momento que termina sua maturação. Se você passou dos 24, provavelmente já está nessa fase. A natureza é cruel. Mas não dá para colocar tudo na conta de deterioração cerebral. Quem era curioso fica um pouco menos, mas ainda consegue derivar prazer do aprendizado.”

    Esse processo de deterioração me deixa um tanto quanto temeroso porque me fez pensar que em algum momento vou perder o prazer de tentar entender o porquê das coisas, ou o prazer de estudar as coisas que digam respeito ao funcionamento da natureza (sou estudante de Licenciatura em Física; e claro que não se aplica só a isso)… dizer para começar a fazer perguntas assim que alguma coisa me interessar é uma boa resposta (como bem pontuou no fim do texto), mas fico me perguntando se deveria haver um componente extra aí, que considero ser a capacidade intelectual de avaliar o próprio conhecimento de maneira realista… por isso, vem-me a pergunta: é possível, de alguma forma, ‘lutando’ contra o processo de deterioração, ‘voltar’ a ter aquela mesma curiosidade que tínhamos quando crianças?

    Quanto ao “componente extra” de que falei, é que lembro de pessoas conhecidas que, por exemplo (apenas por exemplo, não quero enfiar política na discussão), eram pró-Lula, até que de repente deram uma guinada ao ‘olhar o outro lado’ (o posicionamento de Bolsonaro e tal), ‘analisar a opinião alheia’ e etc, e hoje em dia defendem esse ‘outro lado’ ferrenhamente, com unhas e dentes… fico impressionado com isso. Despertou o interesse, mas a meu ver não teve o “componente extra” de avaliar o próprio conhecimento, a própria crença…

    Perdoe-me o textão.

    • De uma certa forma, eu abordei esse ponto, mas talvez valha a pena explicar melhor o que eu quis dizer: uma coisa é fazer perguntas esperando uma resposta específica, outra é perguntar só pela curiosidade. Esse processo politizado que você menciona me parece ter todos os componentes da primeira opção. Pode ser que tenha ficado presa numa dualidade. “Se o lado onde eu estava não tem a resposta que eu quero, o outro tem que ter.” Não adianta muito ter curiosidade se você só quer ter uma ideia confirmada.

      Meio como a pessoa que troca de religião: “esse ser imaginário não me deu o que eu queria, vamos ver se outro ser imaginário resolve!”. Sim, a pessoa teve a curiosidade de aprender uma nova religião, mas no final das contas, só queria aprender a falar a mesma coisa em outra língua, por assim dizer.

      A curiosidade infantil que eu menciono e aparentemente muitos adultos perdem é aquela de simplesmente absorver a informação nova para somar. O fascínio do aprendizado pelo aprendizado.

  • Ótimo texto, Somir. Repassei para algumas pessoas que eu acho que precisam ler. Já disse várias vezes antes mas vou repetir: é da natureza humana temer o que não entende e é desse temor que advém a desconfiança, os preconceitos e as conclusões equivocadas. E os remédios para isso são dois: curiosidade e senso crítico.

    Ah, e sobre vacinas, permita-me uma pequena colaboração audiovisual:

    https://www.youtube.com/watch?v=UmD293z5VHM

    Geralmente, a mentalidade e a postura dos terraplanistas, negacionistas, conspiracionistas e BMs em geral me deixam irritado, mas, desta vez, me permito ser um pouco compassivo: eu tenho é pena das pessoas que são contra as vacinas por não as entenderem. Talvez tenha faltado para elas um Beakman na infância…

  • A teoria que já ouvi falar é que não é só as substâncias que compõem vacinas que causam autismo, mas os conservantes, corantes e agrotóxicos do mundo moderno, junta tudo e a saúde geral se deteriora. E não se pra que discutir que o planeta é redondo ou se é quadrado, não vai influenciar em nada na minha vida.

    • Quem não sabe pra que discutir isso tem todo o direito, fiquei até amigo de gente assim. Mas, é só esse tipo de pessoa não ir meter o bedelho e atrapalhar quem quer conversar sobre o formato do planeta. Se as pessoas se derem espaço, o mundo funciona melhor.

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