Adiamento precoce.

Os casos de covid-19 aumentaram 10% na última semana na Europa, informou nesta quinta-feira (1º) a Organização Mundial da Saúde (OMS), alertando sobre uma nova onda do vírus em um momento em que vários países tentam retomar o turismo por meio de um passaporte sanitário. LINK


Esse é só um dos exemplos de países que novamente relaxaram as medidas de proteção antes da hora. Será que ninguém aprende? Desfavor da Semana.

SALLY

No FAQ 30, de 16 de junho deste ano, me perguntaram o que eu achava de abolir o uso de máscaras (penúltima pergunta da coluna). Eu respondi que achava arrogância e expliquei os motivos pelos quais não deveria ser feito. Entre os muitos comentários não publicados, havia uma leva de ofensas pesadas baseadas em argumentos como “você acha que sabe mais do que Anthony Fauci?” ou “Você acha que sabe mais do que especialistas de países europeus?”.

Não, obviamente eu não sei mais do que eles, mas talvez eu (e qualquer outra pessoa) saiba fazer uma leitura mais imparcial, descontaminada e realista do que está acontecendo. Não é uma questão se “saber”. O topo da montanha não é mais ter informações. As informações estão todas públicas, disponíveis para quem quiser ter acesso a elas. No topo da montanha chega quem interpreta essas informações da melhor forma possível – e tem muita gente deixando o emocional ou interesses políticos ou pessoais contaminar sua percepção/interpretação.

Já comentamos isso aqui antes: pela primeira vez, em um acordo mundial, os estudos e informações sobre covid-19 estão abertos a qualquer um. Estudos que antes custariam dinheiro (muito dinheiro) para ter acesso, estão disponibilizados de forma gratuita. Basta ter a raça e a disposição de ler tonelada deles? Não, informação é o primeiro passo, extremamente importante, mas não é tudo. Dependendo do desejo consciente ou inconsciente de quem os interpreta, é possível usar números e dados para justificar o que a pessoa quer ver, e não a realidade.

Subimos um degrau evolutivo. Ter a informação te fazia a elite na década de 80/90. Hoje ter a informação é o mínimo. O que te faz a elite é ter o discernimento e as ferramentas para interpretar essa informação da melhor forma possível, com o mínimo de distorções e conseguir ter uma visão mais clara do que está por vir. E parece que isso não é tão fácil assim, tem muita gente boa errando feio. Teve muita gente boa dizendo que 2021 seria melhor que 2020 e prevendo o fim da pandemia.

Todos os países que aboliram o uso obrigatório de máscaras estão, em algum nível, revendo sua decisão. Todos os países que resolveram tentar uma “normalidade” estão retrocedendo. Me diz se a Europa precisava fazer jogo de futebol com público? Me diz se era hora dos EUA abolir o uso de máscaras? Me diz se precisa ser um PHD para perceber onde isso nos levaria?

Países que estavam muito bem, como Israel e Austrália, estão sendo obrigados a recuar. Países que não estavam tão bem assim, como Portugal e Espanha, estão sendo obrigados a recuar ainda mais. O que deu na cabeça de todos os envolvidos para fazer essa cagada? Certamente não foi falta de informação. A falha aconteceu na interpretação, proposital (para fins políticos) ou não (contaminada por desejos pessoais).

Podemos especular inúmeras causas para esse erro de interpretação dos dados que se tinha: pode ser uma jogada política, uma mera ostentação burra, um erro de interpretação ou qualquer outro argumento que vocês queiram. O fato é que autoridades no assunto de países civilizados estão errando feio, o que nos leva ao Desfavor da Semana de hoje: estamos sozinhos nessa pandemia. Por um motivo ou pelo outro, quem deveria acertar está errando – e feio. Hora de rever a quem chamamos de “autoridade” no assunto. Foda-se se tem diploma, doutorado ou livro publicado, se não sabe interpretar bem os dados em um momento de pressão, toda a informação acumulada é inútil.

Soa arrogante, mas não é como se a gente soubesse mais do que autoridades no assunto. Eles sabem muito mais do que a gente. Mas ter a informação nem sempre é interpretar a informação da forma correta. Ter a informação e não saber usá-la te joga no mesmo “Ei, Você!” de quem não tem informação alguma. Não basta a informação, é preciso cultivar outras habilidades que te permitam interpretar essa informação da forma correta.

Tenham sempre isso em mente: mesmo que uma autoridade no assunto te diga algo, confira. Vá atrás dos dados, do histórico, do contexto. Não aceite cegamente e não tenha vergonha de discordar de quem sabe muito mais do que você, desde que você tenha vasta informação e ferramentas para uma interpretação lógica e coerente para isso.

E aí surge outro problema: bom senso e bom gosto todo mundo tem. Todo mundo acha sua interpretação super coerente e verdadeira. Sabe como se descobre se a pessoa tem o que precisa para fazer essa interpretação? Anota as previsões e depois vai lá verificar o quanto do que a pessoa disse se mostrou realidade. Não precisa fazer a versão hard que a gente faz de deixar as interpretações públicas, para qualquer um venha apontar o dedo em caso de erro, mas registre. Fica fácil perceber que não sabe o que está falando.

E eu não digo que não tenhamos que escutar autoridades no assunto. Gente que sabe muito sobre um assunto é ótima para te passar conteúdo desse assunto, mas não necessariamente para te dizer o que fazer. Quem recebe ordens do que fazer é cachorro. Pessoas pegam as informações, as interpretam e decidem por si o que fazer. Nunca se esqueça disso. Nunca. Se, no momento, você sente que não tem essa capacidade de interpretação, tudo bem. Trabalhe para desenvolvê-la. Não é nada sobrenatural, qualquer um pode chegar lá, desde que entenda onde está errando na hora da interpretação.

“Mas Fulano é professor não sei de onde, fez doutorado não sei onde, trabalha com isso faz décadas, como posso contrariá-lo”. Ok. Fulano deve ter muito conhecimento, tire o melhor que ele tem para te dar: a informação. Em vez de perguntar o que fazer, entenda o mecanismo de funcionamento do assunto, o histórico, a forma como isso se apresenta em diferentes contextos. Depois, com base em todas as informações que conseguir colher, conecte os dados e forme você sua opinião. Talvez no começo você erre, mas, estudando seus erros e entendendo o porquê errou, você vai começar a acertar.

Especialista te dizendo o que fazer é coisa da época em que não tínhamos todos os dados disponíveis, por isso não tínhamos a possibilidade de entender e avaliar os riscos por nós mesmos. Isso acabou. Hoje os dados que você precisa estão a um clique, e talvez você não saiba compreendê-los muito bem na forma como eles são apresentados, mas se empenhar um pouco de tempo e esforço, vai chegar lá. Eu mesma apanhei demais para conseguir entender minimamente o conteúdo de estudos sobre covid. Ninguém nasce sabendo.

Busque bons curadores de conteúdo, para não estressar seu cérebro lendo mentiras, alarmismos ou falsos confortos. Consuma o conteúdo que essas pessoas te apresentam. Mas a palavra final é sua. Não aceite o peixe, peça lições sobre como pescar. Tire suas conclusões, anote e veja se está indo pelo caminho certo. Se não, aprenda com seus erros até entender como fazer uma leitura boa das informações que você recebe.

O mundo todo tinha acesso a estas informações: 1) em pandemias de vírus respiratórios os contágios se reduziam no verão e explodiam no inverno; 2) estão surgindo variantes mais transmissíveis e mais letais de coronavírus, algumas com escape vacinal parcial; 3) parte da população não será vacinada, seja por não querer, seja por não poder; 4) países que já estiveram muito bem, rapidamente ficaram muito mal e 5) só vacina não vai nos livrar da covid-19.

Junte essas informações e me diga se, por uma melhora no número de contágios, era hora de alguém tirar máscara, fazer jogo de futebol com público ou abrir o país para turismo. Tudo que qualquer pessoa precisava saber para perceber que ia dar merda estava amplamente disponível ao público. Não foi um erro de informação, foi um erro em como interpretar essa informação.

Tendemos a interpretar a informação para prever uma realidade que nos agrade, mas, infelizmente, a realidade não está nem aí para nossas interpretações. E quanto mais cagadas a gente faz, maiores as chances da doença ficar cada vez mais difícil de combater.

O vírus está dando um olé nos humanos, sendo mais eficiente do que eles. Ele já conseguiu ao menos 4 variantes significativas que melhoram sua performance enquanto nós, humanos, ainda não percebemos/executamos o grau de restrição que é necessário para conter essa merda.

Contrariar autoridades no assunto por achismo seu é imbecilidade e arrogância. Contrariar autoridades no assunto após muito estudo e um olhar crítico e multidisciplinar é questão de sobrevivência. Vão tomar no cu os especialista dos EUA, de Israel ou Europa que acharam uma boa ideia abolir o uso obrigatório de máscaras, agora eu confio mais em mim.

Para dizer que eu sou arrogante, para dizer que o vírus tá indo embora ou ainda para dizer que vai tatuar “trust no one”: sally@desfavor.com

SOMIR

Sem querer o texto de ontem conversa com o de hoje. Se falava sobre gurus e como muita gente cai nessa ladainha sem pensar, agora falo sobre os perigos de não saber absorver a informação vinda de especialistas. Muitos países relaxando as medidas de proteção, os EUA até dizendo que não precisava mais usar máscara… tudo, em tese, aprovado por comitês de cientistas.

Mas como estamos vendo, basta uma distração para os casos de Covid voltarem a subir. Já não deveria mais ser surpresa a essa altura do campeonato, praticamente todos os países do mundo já passaram por essa situação nos últimos meses. Inclusive os que levaram mais a sério as medidas restritivas. Eu entendo, é irritante e problemático para a economia ficar muito tempo vivendo com tantas limitações, mas não é como se fosse uma escolha.

O vírus não vai olhar para o seu lockdown de duas semanas e dizer: “ah, eles sofreram o bastante, vou parar de contaminar”. A humanidade está enfrentando um ser que vai continuar lutando para se reproduzir indefinidamente. Esse adversário só para quando morrer (mesmo que em tese nem esteja vivo), porque não tem nenhum outro jeito de lidar com o tema. E o vírus só morre quando não tem mais quem infectar.

Erradicar o vírus de vez pode ser tecnicamente impossível, mas dá para erradicar a pandemia: se uma boa parcela da população estiver vacinada e os vulneráveis conseguirem evitar o contágio por algum tempo, a população do coronavírus fica pequena ao ponto da vida poder voltar ao padrão anterior.

Mesmo que forma desigual e meio lenta em alguns países como o Brasil, estamos vacinando muita gente. Só que isso demora, não tem atalho. Além disso, infelizmente o mundo no século XXI deu uma regredida na mentalidade sobre vacinas e vamos ter um recorde de pessoas se abstendo da imunização. A única proteção de larga escala que ainda temos são as outras medidas de proteção, como distanciamento social e máscara.

Vai demorar pra vacina ter um grande impacto, por isso não dá pra contar apenas com ela. O problema é que vários países, pressionados por motivos políticos e/ou econômicos, resolveram que valia mais a pena trabalhar o emocional de suas populações relaxando as medidas contra o contágio. Em troca da motivação de ver o país voltando ao normal, o risco maior de contaminação. A população acabou aceitando, afinal, se os governos disseram que podia, é porque os especialistas toparam. Nem todo país é como o Brasil, onde se sabe que presidente e ministros são obscurantistas com orgulho.

O povo começa a confiar. É natural que a população entre num clima de vitória contra a doença se as pessoas que organizam o país dizem que pode fazer de novo várias coisas que não podia durante o auge da pandemia. E é aqui que eu reforço o ponto da Sally em seu texto: agora é hora de testar sua capacidade de ter senso crítico sobre o mundo.

Porque você vai ouvir por aí que especialistas renomados deixaram vários países liberarem a economia e desobrigarem o uso de máscara. Mas pra tudo tem contexto: não só pode ser um especialista dizendo uma bobagem, como também pode ser que no final das contas eles tenham apenas cedido à pressão de quem quer a volta da “normalidade”. Ou, do alto da especialização, tenham falhado em ver as consequências em larga escala de seus atos.

Ninguém consegue tomar uma decisão que envolve milhões de pessoas sem cometer alguns erros no caminho. Por exemplo: dizer que vacinados não precisam de máscara nos EUA pode ter sua lógica desde que outras medidas estejam sendo respeitadas. Mas, a mensagem psicológica dessa liberação não é “pode relaxar aqui se manter o cuidado no resto”, é “acabou a pandemia”. Por isso, é muito provável que a maioria das pessoas relaxe de tal forma a estender isso a todas as outras medidas.

Aí, pode aglomeração, pode ficar em lugar fechado com mais gente… sendo que na verdade o vírus ainda está no ar e em diversos corpos por aí, e o vírus não foi avisado sobre o fim da pandemia. Pra ele, tudo continua como antes. Especialmente considerando quanta gente não está devidamente imunizada, seja pela demora logística de aplicar as vacinas, seja por impossibilidade ou resistência consciente de tomar vacina.

Vamos ver muitos especialistas ou políticos que se aconselham com eles começarem a correr mais riscos de acordo com o avanço da vacinação. É essencial que você saiba analisar essas informações e manter uma saudável dose de ceticismo sobre a empolgação alheia. Em última instância, quem toma a decisão é você, porque é a sua vida em jogo. Um especialista pode falar o que bem entender, e somos favoráveis a acumular todo o conhecimento específico deles, mas não a achar que é verdade absoluta.

Tem especialista em cloroquina para tratar Covid, e se você tem mais que meio neurônio, não vai escutar esse. Estamos há meses batendo em prefeitos e governadores brasileiros que ficam num chove não molha com as medidas restritivas, alongando o sofrimento de todo mundo no processo. Precisávamos de lockdowns verdadeiros de longa duração, não toques de recolher aleatórios. Melhor do que nada, mas ainda sim pouco eficiente.

Em tese, esses políticos também ouviram especialistas, mas quem garante que não distorceram a informação para melhor os servir? Quem garante que 9 especialistas disseram que era errado e uma Nise Yamaguchi da vida que foi ouvida? Muita atenção na informação que você recebe, ela precisa ser processada e comparada com sua visão de mundo antes de virar base para suas decisões.

Estamos vendo a Europa e algumas partes dos EUA se arrependerem de ter tratado a pandemia como algo no seu estágio final, um erro que podia ser previsto (tanto que falamos disso aqui antes), mas que aconteceu do mesmo jeito. Pensar sobre a informação é essencial, sempre.

Não brinque com a pandemia, ela não está brincando com você.

Para dizer que somos torcedores da pandemia, para dizer que prefere acreditar que já está acabando, ou mesmo para dizer que somos especialistas em te desanimar: somir@desfavor.com

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Comments (24)

  • E isso que a preocupação em outros países é número de casos, e não de mortes. Estamos em outro nível, definitivamente.

  • Hj soube que um ex colega de trabalho, 27 anos, morreu de covid em 1 semana de internação.
    Familiares de outra colega estão na UTI. Sinto que a galera realmente parece achar que a vida está de volta ao normal, sendo que nao está e quando a realidade bate à porta, tem aquele misto de indignação e descrença da letalidade de um vírus que, se não tomado os cuidados, é previsível a contaminação e talvez agravamento. A humanidade precisa evoluir agora, não dá pra deixar pra depois.

    • Tem dois caminhos: aprender no amor ou aprender na dor. Acho que já ficou claro qual tomamos, como humanidade. Apertem os cintos.

      • Concordo, Sally. E o que eu fico me perguntando agora é: se nem com tudo que está passando neste momento a humanidade conseguiu “tomar jeito”, que tamanho de tragédia ainda precisa acontecer para que alguma coisa realmente mude?

        • Ah, certamente pode acontecer pior. Se a humanidade vai tomar jeito ou não, eu não sei, mas vai chegar em um momento onde ou toma jeito ou se extingue. Acredito que vá entrar em extinção.

  • #trustnoone

    Vou imprimir essa frase e usar como mantra. Tá difícil mesmo. Há algumas semanas teve uma palestra organizada pelo escritório para o qual trabalho (remotamente, folgo em dizer), com duas especialistas do Hospital das Clínicas e elas orientaram a quem é inevitável ir ao escritório que procurassem um restaurante de confiança para almoçar em vez de fazer as refeições em algum lugar do escritório com janelas que pudessem ser abertas e onde seja possível higienizar o local antes por conta própria. Fiquei tão revoltada que perdi minha confiança no HC. Vergonhoso!

    • Eu não sei se há interesses egoístas por trás de cada orientação desse tipo ou se a situação de pandemia está mexendo com a percepção e o raciocínio de algumas pessoas. Ambas as opções são péssimas!

  • Anos usando como referência os “países civilizados” como referência de qualquer coisa. Demorou para evoluir, hein?

    • Mais um? Ok, você deve estar muito angustiado para se dedicar a voltar aqui, vou te dar um pouco de atenção.

      Países civilizados estão lidando com esta pandemia muito melhor do que o Brasil. Mas MUITO, MUITO, MUITO melhor. Isso significa que eles são perfeitos e jamais cometem um erro? Não. Mas cometer eventuais enganos não é motivo para não usar algo como referência de “coisa melhor” quando, no final das contas, no conjunto da obra, de fato tudo é muito melhor.

  • “Um especialista pode falar o que bem entender, e somos favoráveis a acumular todo o conhecimento específico deles, mas não a achar que é verdade absoluta.”
    então a galera conspiradoida estava certa em questionar autoridades e cientistas, ainda que pelos motivos errados, quem diria…

    • Não, não estava certa. Eles questionavam a informação, que é imutável, é ciência, é exata. Se cem estudos sérios dizem que cloroquina não funciona e ainda causa danos ao organismo, questionar isso é apenas burrice, pura e simples.

      O que nós propomos é analisar com cuidado a forma como se interpreta essa informação, seu contexto, de onde ela vem e o que fontes confiáveis pensam dela. Mas infelizmente, por mais que a gente se esforce para escrever o mais claro possível, estamos chegando em um ponto em que talvez o Desfavor da Semana precise começar a ser desenhado.

        • A lixeira do Desfavor poderia ser estudada por cientistas para compreender os motivos pelos quais a pandemia saiu do controle dessa forma absurda no Brasil. A explicação está toda ali.

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