Efeito colateral.

A minha cena preferida da série Mad Men, uma sobre publicitários dos anos 50 e 60, é uma onde o personagem principal tem que vender uma nova campanha para a fabricante de cigarros Lucky Strike. A empresa, preocupada com as recentes dúvidas sobre a segurança de seu produto surgindo na sociedade, queria algo novo. O publicitário sugere que eles comecem a dizer que o tabaco do cigarro deles é tostado. O responsável pela empresa responde que todos os cigarros têm o tabaco tostado. O publicitário diz que não tem problema, afinal, ninguém mais tinha falado disso até então.

A cena é baseada num caso real, obviamente dramatizada para a TV, mas realmente a Lucky Strike passou muito tempo fazendo essa propaganda, divulgando algo que todos seus concorrentes faziam como se fosse um diferencial dela. Como ninguém sabia disso, o primeiro a falar ganhou a presunção de ser único, e se outras fabricantes usassem o mesmo argumento, passariam a impressão de estar copiando a Lucky Strike, reforçando a suposta vantagem de seu produto.

O mundo é cheio de informações que a maioria das pessoas desconhece. É possível se embrenhar em um caminho imenso de complexidade para praticamente qualquer detalhe da nossa vida cotidiana. Cada pequeno objeto ao seu redor depende de conhecimento muito específico para ser produzido, provavelmente o ápice de décadas, séculos ou milênios de aperfeiçoamento até chegar na forma como conhecemos.

E desse longo caminho, só conhecemos algumas partes. Pudera, não há cérebro que dê conta de acumular todo o conhecimento da humanidade até aqui. Muitas vezes para escrever textos do Desfavor, Sally e eu nos aprofundamos em temas aparentemente banais, mas que nos surpreendem com a quantidade de informações necessárias para sua compreensão. Simplicidade é uma ilusão causada pela ignorância.

E por que eu começo o texto falando disso? Tendo em mente que virtualmente qualquer tema que se explore tem uma quantidade avassaladora de informações praticamente desconhecidas pelo cidadão médio, é relativamente fácil pinçar uma delas e impressionar os outros. Quando a Sally tenta destrinchar detalhes sobre o vírus e as vacinas, está tentando compartilhar dados que considera importantes para os leitores (eu incluído) tomarem melhores decisões em tempos de pandemia.

Mas não há obrigação nenhuma de usar essa complexidade para informar. Lembrem-se: estamos falando de informações que a maioria das pessoas nunca teve contato. Informações que normalmente são precedidas e seguidas por outras informações igualmente desconhecidas. Você pode simplesmente escolher qual delas vai colocar em destaque. E como no exemplo com o qual eu abro este texto, informações sem contexto podem causar impressões erradas.

Todos os cigarros usavam tabaco tostado, mas a Lucky Strike se apropriou disso para passar a impressão que esse era um diferencial do seu produto. Ninguém disse com todas as letras que os outros cigarros eram feitos de forma diferente, apenas contaram com a pessoa lendo aquela informação preenchendo os buracos na sua compreensão do tema. Talvez pela minha inclinação profissional, eu fico fascinado com essa ideia de manipular pessoas dizendo a verdade e deixando elas criarem uma mentira na cabeça por conta própria. Pode-se fazer isso com mentiras diretas, é claro, mas isso nunca vai ter o mesmo potencial.

Mentiras podem ser destruídas, verdades não. A “mágica” da coisa está em deixar a pessoa impactada pela sua informação criar sua própria visão das coisas em concordância com seu objetivo inicial, mas não colocar nenhuma informação que pode ser derrubada dentro da cabeça dela. Se alguém tentar te dizer que todos os tabacos são tostados, isso não quebra a informação inicial que Lucky Strike é tostado.

Cria um contexto diferente, é claro, mas em nenhum momento você fica com a sensação que foi enganado. O estado mental de confiança não é traído, e é muito comum que a pessoa ache alguma forma de reorganizar suas ideias para manter uma visão de mundo parecida com a que já tinha. Se você não ficar no pé dela adicionando mais informações ao ponto dela se tornar uma especialista em tabaco, é quase certeza que ela se reposiciona mentalmente achando que o Lucky Strike é mais tostado, ou é tostado de uma forma que dá mais sabor… alguma coisa ela arranja para não quebrar a ideia original. Afinal, não tinha uma mentira ali para causar uma reação emocional.

E se você tem boa memória, está se perguntando o que o título do texto, “Efeito colateral”, tem a ver com o que eu estou falando. Bom, estamos vivendo uma pandemia para a qual já existe vacina, e muita gente está receosa com essa espetacular ferramenta de proteção coletiva por causa de efeitos colaterais. O que não é exatamente novidade, afinal, em tempos de Revolta da Vacina, jornais publicavam charges dizendo que as pessoas que tomassem a vacina contra a varíola virariam vacas. Só que no século XXI, era de se esperar um pouco mais de conhecimento sobre o tema, diminuindo a chance de reações tão negativas de uma parte considerável da população. Poucas coisas são tão seguras como vacinas na medicina moderna.

Bom, é aqui que os temas se cruzam: dizer que vacinas tem efeitos colaterais é dizer que o Lucky Strike é tostado. Uma verdade utilizada para criar uma mentira dentro da cabeça das pessoas. Tudo tem efeito colateral. Efeito colateral é um resultado inesperado, normalmente negativo, de qualquer substância adicionada ao corpo humano. Todos os remédios têm efeitos colaterais. Todos os alimentos de origem vegetal ou animal tem efeitos colaterais. Todos os elementos que podem entrar em contato com o corpo humano têm efeitos colaterais.

Se você olhar a bula da aspirina, vai ver que existe uma chance minúscula dela te matar. Se você prestar atenção na embalagem de muitos alimentos, vai ver um aviso sobre possíveis traços de alimentos que causam alergia em algumas pessoas. Tem gente que não pode com alguns tecidos porque ficam com a pele em carne viva! Efeitos colaterais são um fato da vida. Você provavelmente vai escapar de 99,99% deles, mas uma hora ou outra algum elemento externo não vai dar certo com a sua biologia e gerar reações adversas. Eu, por exemplo, costumo encarar qualquer remédio ou alimento sem problemas, mas tenho uma pele escrota que empipoca por qualquer porcaria. Quando criança, fui parar no hospital por causa de um cobertor de lã natural!

Ninguém é imune a efeitos colaterais causados por fontes externas. Todos os tabacos são tostados! Mas, como muita gente parece não ter essa informação bem estabelecida na cabeça, o uso de efeitos colaterais funcionou muito bem para empurrar narrativas como a do perigo das vacinas (e até mesmo charlatanismos como homeopatia e tratamento precoce de Covid). Quem quer colocar na sua cabeça a ideia de que existem agentes externos tentando te envenenar só precisa jogar essa informação sobre efeitos colaterais no ar e te deixar preencher as lacunas sozinho.

O corpo humano é absurdamente complexo. Um amontoado de células variadas com incontáveis interações que podem ser diferentes para cada pessoa. A medicina é basicamente uma forma de tentar colocar alguma ordem nesse caos. Mas é evidente que controle total sobre as funções biológicas de um ser humano é um objetivo impossível. Pelo menos com a tecnologia atual. Conseguimos avanços impressionantes em pouco mais de dois séculos de medicina moderna, mas o caminho é longo, muito longo.

O que me deixa em dúvida aqui, e talvez vocês possam me ajudar (sei que temos vários profissionais de saúde entre os impopulares) é entender qual é o fato mais importante na relação do cidadão médio com a medicina: se é a total falta de conhecimento sobre o que médicos fazem ou se é uma escolha consciente de fingir que ela é mágica e infalível. As duas coisas explicam o ponto fraco explorado por negadores da ciência tocando o terror sobre vacinas.

Por um lado, é fácil colocar na cabeça da pessoa uma informação que ela nunca parou para pensar, como “vacinas tem efeitos colaterais”; por outro, talvez as pessoas até tenham noção disso, mas a sua relação com a medicina é quase que espiritual: para não lidar com o medo de ter algum problema que não pode ser resolvido, acham que médico e remédio tem que funcionar 100% das vezes sem erro nenhum, senão tem algo errado e tem alguém fazendo coisa errada e/ou armando contra elas.

Como eu já tenho mais informações, não sei exatamente como funciona o processo em quem não tem. Resta-me teorizar um misto dos dois: muita gente realmente entra em choque com a realização de que não tem tratamento mágico e sempre vai ter uma chance das coisas darem muito errado, mas ao mesmo tempo, isso bate numa defesa mental baseada no fato de que a coisa ruim não pode acontecer com ela. Com essa segunda parte eu consigo me identificar bastante: tem uma parte da mente que sempre diz que que com a gente nunca vai acontecer. Talvez a parte que nos permita assumir mais riscos e permita que a humanidade continue avançando mesmo diante dos perigos do universo.

Seja como for, é um ponto fraco explorado por propagandas. Propaganda de gente que quer te deixar em dúvida sobre o sistema no qual você vive. Não é à toa que quase sempre quem duvida de vacinas também enxerga conspirações comunistas e/ou judias em todos os cantos. A história do efeito colateral não é mentira, mas ela é usada para criar uma narrativa dentro da cabeça de quem a ouve: que não estão te contando “toda a verdade”.

E isso é excelente para quem quer colocar em dúvida um sistema democrático baseado em fatos científicos bem estudados. Existe uma linha tênue na mente do cidadão médio entre informação que ele nunca teve contato e informação que foi escondida dele. Existe uma presunção automática de que se algo é importante, alguém teria avisado, não? O engraçado é que toda essa história de efeitos colaterais foi avisada, mas como nunca foi um ponto interessante de vendas, sempre esteve nas margens de informações mais atraentes, como a capacidade de resolver problemas.

Por motivos que são óbvios do ponto de vista publicitário, efeitos colaterais são letrinhas minúsculas no final do comercial. Sempre estiveram lá, mas quem tinha a informação preferia mantê-la mais discreta, e quem deveria conhecer a informação preferia também não ficar pensando nisso. Quando a turma das conspirações de redes sociais pega os efeitos colaterais e finalmente coloca uma lupa nelas, o cidadão médio é obrigado a lidar com uma realidade muito menos confortável do que a que se acostumou.

Realidade que estava debaixo de ignorância, estimulada por agentes externos e por desejos internos. Todos os tabacos são tostados, mas ninguém colocou isso na propaganda antes da Lucky Strike. Tudo tem efeitos colaterais, mas ninguém chamou atenção para isso antes dos conspiradores. Assim como os concorrentes do cigarro americano não tinham muito o que fazer para expor a “tecnicalidade” do argumento da propaganda, os especialistas em química, biologia e medicina que lidam com os antivacinas também ficam amarrados nessa mentira que tecnicamente… é verdade.

Existem riscos sim. Riscos são inevitáveis. Boa parte da nossa experiência nessa vida é escolher quais você quer correr, e para isso, informação é essencial. Não só para fazer boas escolhas, como para se proteger de táticas testadas e aprovadas do mundo da propaganda.

Todos são tostados.

Para dizer que eu enfiei pandemia até nessa coluna, para dizer que o exemplo do cigarro joga contra, ou mesmo para dizer tem o direito de escolher o que é verdade: somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • Em Mad Men também falavam que cigarro é seguro, pois os médicos fumam! Cada um sempre vai distorcer os fatos conforme for mais conveniente. Saudades Mad Men.

  • Toranja é uma fruta. Que mal uma laranja miscigenada pode fazer?

    Se você consumi-la com alguns medicamentos, tais como diazepam ou captopril, você pode morrer. O que acontece: o efeito dos medicamentos depressores do sistema nervoso é potencializado. Sua pressão cai a níveis subterrâneos; você pode morrer ou ter severos sintomas de insuficiência cardíaca ou respiratória.

    E cogumelos são machistas. Eles inibirem a aromatase, enzima que produz estrogênio.

    Chás, que mal chás podem fazer? É natural, sustentável e saudável.

    Pra começar, existem empresas que, pra dar volume nos sachês, misturam com outras ervas, geralmente erva-mate (que é estimulante. Imagina, tu quer aliviar tua tensão com uma camomila e enfia pra dentro uma dose de mate). E alguns podem foder o seu fígado, rins e intestinos mais que bebidas alcoólicas. Carqueja e boldo que o digam (eu tomei uma dose por dia por uma semana inteira para gases. No domingo eu sofri com uma caganeira inacreditável, tanto que minha merda estava verde = sinal que o intestino tá rápido demais, sem tempo de digerir substâncias biliares, favorecendo desregulações da flora bacteriana do trato digestivo).

    Balas de farmácia. Olha só, elas não possuem açúcar. Que mal elas podem fazer?

    Vamos desconsiderar por um momento que não existe somente um tipo de açúcar, e que podem estar usando um substituto pior. Vamos desconsiderar também que não mentem nos rótulos. Sabe aquela balinha “vitamina C”? Pode destruir seus dentes sem que você sequer consuma um grama de açúcar. Ácido é tão nocivo quanto açúcar ao seu esmalte dentário.

    E os remédios? Eu tenho enxaqueca, e tô vomitando muito.

    Melhor não tomar os antieméticos convencionais do mercado. Quero dizer, eles funcionam. Mas, eu espero que você saiba o que são sintomas extrapiramidais. Sim, são muitos parecidos com uma crise pesada de pânico, mas… Na verdade você tá intoxicado por um medicamento nocivo ao seu cérebro, usuário de enxaqueca.

    Ah sim, às vezes você tá ingerindo talco também, quando consome alguns medicamentos.

    Aliás, escovar após as refeições é bom, certo? Se eu escovar meus dentes assim que comer algo doce ou ácido, não vai dar nada.

    O ideal é você esperar uns 20~30 minutos. Se escovar antes, é capaz de espalhar mais ainda a acidez ou o açúcar no dente, impedindo que ele crie resistência a essas substâncias proporcionadas pelo pH da sua própria boca, sem falar que alimentos quentes dilatam os vasos sanguíneos da sua gengiva. Você pode facilitar lesões na sua boca ou quadros de sensibilidade dentária.

      • Aliás, a gente só envelhece porque o oxigênio é uma porcaria extremamente reativa. Necessário, mas a gente morre por causa dele mesmo.

    • Bem lembrado, Ana94. Por causa das reações extrapiramidais os medicamentos Bromoprida (digesam) foi proibido em vários países e metoclopramida (Plasil) foi descontinuado nas versões orais e injetáveis e restrito com tarja preta em vários países, mas aqui no BR profissionais de saúde dizem que essas reações são raras e enfiam esses remédios em todo mundo que precise de pronto socorro ou internação. Ambos impedem vomito mas enlouquecem e provocam suicídio.

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