A Era da Confusão.
Eu chamo o tempo que vivemos de Era da Informação, não porque eu bolei o termo, mas porque vi outras pessoas chamando disso e realmente fez sentido definir essas últimas décadas assim. Rapidamente a humanidade teve que se adaptar, e salvo uma epidemia global de problemas mentais, o resultado até que foi decente. Não corremos risco de extinção (imediato) por causa dessa mudança na quantidade (e qualidade) das informações com as quais o ser humano médio lida diariamente. Mas, uma coisa é se adaptar, outra completamente diferente é se beneficiar…
Para a sortuda parcela da população mundial que não precisa se preocupar desesperadamente com a próxima refeição, informação se tornou um dos ativos mais valiosos. Controle da informação é cada vez mais essencial para gerar recursos e poder nesse mundo. E não digo apenas manipular o que as pessoas acham, mas ter acesso à informação de qualidade para tomar decisões melhores e gerar um diferencial competitivo.
É por isso que você não paga mensalidade em redes sociais: a informação que você providencia é suficiente para pagar a conta, altíssima, de manter toda a estrutura dos servidores e funcionários que as fazem funcionar 24 horas por dia, todos os dias. Empresas como Facebook e Google gastam bilhões só para manter os serviços que você usa diariamente. Evidente que é muito lucrativo trocar isso pela informação, afinal, já estamos falando de empresas com décadas de vida!
Trabalhando como publicitário, eu acabo usando essa informação, e pagando para essas empresas por ela. Preciso saber quem quer comprar o quê, quem está mais propenso a aceitar uma mensagem, quem tem simpatia ou antipatia por um tópico… e mesmo que seja proibido me dizer quem é quem, podem me dizer que existem X pessoas dispostas a ver um anúncio sobre um produto, e me prometer que vão mostrar para elas.
Dito isso, a Era da Informação não é só comercialização de informações, é um avanço considerável na capacidade do ser humano de entender o que acontece ao seu redor. A evolução humana está diretamente relacionada com o tamanho do mundo que cada cidadão consegue enxergar. Quando mais relações e troca de conhecimento, vamos mais longe e mais rápido. Agora, isso não quer dizer que vamos em boas direções sempre. Acredito que por pura pressão seletiva a tendência é que os caminhos mais seguros e saudáveis acabem vencendo, mas o que não falta são becos sem saída. Informações que fazem pessoas ficarem mais perdidas do que estavam antes dela.
E por isso, eu acho importante fazer um pequeno guia de como lidar com a informação no século XXI. Quem veio antes não tinha experiência para passar para seus descendentes, quem veio na transição estava muito ocupado fazendo senso das coisas, e só mesmo as gerações mais recentes (crianças e adolescentes de hoje) tem a perspectiva necessária para entender como a Era da Informação funciona. O problema: jovens não tem a bagagem necessária para escapar das armadilhas da informação ruim.
Então, eu acredito que temos que construir a nossa relação com a informação de uma nova forma. Usando a experiência de humanidade dos mais velhos e a naturalidade “digital” dos mais novos. Acho que essas fases sempre acontecem quando algo tecnológico muda o paradigma da humanidade. Demorou um tempo para a humanidade entender a Era Industrial e misturar uma sociedade de consumo moderna com valores humanitários básicos. Eventualmente funcionou, porque mesmo com os diversos problemas do século XX, foi de longe o que mais viu aumento de qualidade de vida no planeta até então.
Informações tem níveis. Níveis de generalidade e níveis de familiaridade. É bem menos complicado que parece: uma informação pode ser muito aberta, como dizer que o sol nasce no Leste, ou pode ser muito específica, como dizer que quarks podem ter diversos spins. Informações podem ser simples de aceitar, como dizer que Deus existe para um cristão, ou completamente alheias às crenças da pessoa, como dizer para um Talibã que mulheres tem direito a fazer abortos.
O nível de generalidade tem a ver com quantas coisas são necessárias se saber antes de entender a informação. Por isso o exemplo do nascer do Sol: qualquer pessoa que enxerga sabe que o Sol está lá, e qualquer pessoa que acordar muito cedo ou dormir muito tarde vai ver o Sol nascendo sempre na mesma direção. Basicamente, basta ter a capacidade de enxergar e ter um batimento cardíaco. Informações com barreira de entrada tão pequena normalmente já estão dentro da cabeça da maioria das pessoas.
Já informações mais específicas exigem uma carga de conhecimento elevado para fazerem sentido. Por isso o exemplo dos quarks: se eu dissesse que quarks tem blurghs diferentes, era capaz de muita gente aceitar da mesma forma que se eu tivesse dito que tem spins diferentes. Precisa saber o que é um quark e ter alguma noção do tema para poder concordar ou discordar de uma afirmação. Quanto mais nos aprofundamos num tema, menos a capacidade das pessoas de fazer algum senso de valor.
Se eu disser que o Sol nasce no Sul, é relativamente simples dizer que estou errado, não só porque é fácil testar com uma bússola, mas também porque tanta gente sabe dessa informação que é impossível você não encontrar pelo menos uma pessoa de confiança que te diga que o Sol nasce no Leste. Infelizmente, a probabilidade de encontrar alguém para confirmar informações sobre a composição dos átomos é um pouco mais complicado. Existe uma boa chance que ninguém que você possa conversar rapidamente tenha como te ajudar com essa informação.
Acredito que muita gente não tenha o conhecimento necessário para sequer dividir as informações nessas duas categorias. Pra mim, normalmente é trivial diferenciar entre uma afirmação genérica e uma específica, mas se você não uma bagagem cultural suficiente, pode ser que misture as duas coisas na cabeça. E percebam que eu disse normalmente é trivial pra mim. Às vezes bate uma confusão. É até por isso que eu defendo usar algumas artimanhas como pesquisar no Google ou perguntar para algumas pessoas diferentes próximas para confirmar se a maioria tem uma reposta fácil ou se ficam confusos.
Se a maioria ficar confusa, você está diante de uma informação específica, vulgo informação que precisa de muito mais informação para fazer sentido. E é aí que entra uma decisão importante: se você precisa ter essa resposta ou não. Se você precisar, não tem atalho, vai ter que achar algum especialista de confiança ou estudar bastante para ter a base necessária. Se não precisar, é muito mais saudável admitir que não entende e não se comprometer com decisões baseadas nessa informação. Eu não sou de falar muito mal de arrogância, acho que tem dose saudável, mas as pessoas costumam fazer as piores besteiras quando resolvem forçar a barra em temas que não tem como entender sem estudo.
Se tiver alguma dúvida sobre isso, é só ler qualquer notícia sobre a pandemia: é um bando de gente com conhecimento baixo sobre as especificidades de infectologia, medicina e até mesmo vacinas cuspindo as maiores asneiras, certos de que pouca gente é capaz de confrontar, e mesmo que alguém tente, precisa ir tão fundo na teoria e na tecnicalidade que o cidadão médio não tem sequer ideia do que estão falando.
O que me leva ao segundo eixo das informações: o da familiaridade. É mais fácil falar das benesses do comunismo na sede do PSOL do que na sede do PSL. O ser humano nunca é uma folha em branco, por mais ignorante que seja sobre qualquer tema: sempre tem alguma coisa na cabeça da pessoa para tratar uma informação recebida. Se essa coisa ajuda ou atrapalha, não sabemos, mas que está lá, está.
Dizer que existe uma conspiração para esconder que a Terra é plana para uma pessoa que detesta seus governantes é mais fácil do que para alguém que está pelo menos neutro sobre o assunto. Se você desconfia de uma coisa, é provável que desconfie de outra relacionada. Os terraplanistas ainda usam o poder da familiaridade das informações de cunho religioso: pregam que dizer que a Terra é redonda é uma forma de enfraquecer a fé das pessoas, que é contra a vontade do deus deles. Deus que calha de ser o mesmo de boa parte das pessoas do mundo ocidental. Como o cristão parece ser criado para achar que está sendo perseguido (faz parte de toda a mitologia deles serem perseguidos pela fé), é mais fácil pra ele consumir essa informação conspiratória. Já tem algo na cabeça da pessoa “lubrificando” a entrada da informação.
E no sentido oposto, por mais óbvia que uma informação pareça para você, sempre há o risco dela não ser fácil de aceitar para outra pessoa. Já que eu bati nos conservadores religiosos, vamos equilibrar batendo nos progressistas lacradores: qualquer criança é capaz de perceber que a maioria dos transexuais são homens de peruca e maquiagem. Não é muita gente que troca de sexo impunemente e passa por baixo do radar da maioria das pessoas. Agora, vai dizer que percebe claramente que é um homem para uma ativista dos transexuais? Ou qualquer pessoa alinhada com a cultura lacradora? Ela não vai aceitar essa informação. Porque essa informação bate de frente com uma crença de que todo mundo pode ser o que quiser e o mais importante é não reprimir as pessoas.
Está lá o Arnold Schwarzenegger de vestido na sua frente, e se você não disser que não tem absolutamente nenhuma diferença dele para qualquer outra mulher, você é um opressor preso na Idade Média. Veja bem, você não tem dificuldade de aceitar que aquela pessoa se sente feliz vestida de mulher, você não quer que alguém a force a viver uma vida de opressão e medo, mas você sabe que aquela pessoa tem características masculinas exacerbadas o suficiente para ser muito diferençável de outras mulheres.
Essa ideia maluca de que mulheres trans são exatamente a mesma coisa que mulheres que nascem mulheres só passa na cabeça de quem já tem familiaridade com o dogma progressista moderno. Assim como a ideia ridícula que existe um homem barbudo morando nas nuvens que fica bravo quando você se masturba também só cola para quem aceitou os dogmas bizarros da religião.
Eu falo de tudo isso para te apresentar o sistema que eu uso para catalogar informações na mente. Não vou dizer que sempre faço isso, porque na maioria das vezes é automático, mas quando eu fico em dúvida sobre alguma coisa que li ou ouvi, eu faço esse exercício prático:
– A informação é generalista ou especialista?
Se for generalista, isso é, se não precisar saber de muitas outras coisas para realmente entender, eu normalmente jogo em algum assunto com pessoas conhecidas e vejo qual é o consenso. Normalmente é fácil de se posicionar sobre essas informações, e é raríssimo ficar em dúvida se é verdade ou não. E se ficar, tem uma ferramenta maravilhosa para se decidir: a navalha de Occam. É um conceito filosófico que diz que entre duas explicações para a mesma coisa, a mais simples costuma ser verdade. Se for mais fácil que as coisas aconteçam do jeito A do que do jeito B, vá de A.
Se for especialista, do tipo que precisa ler pelo menos alguns livros para entender, tire a pressão de cima de você. Ninguém é obrigado a ter todo conhecimento específico. Talvez você nem precise ter uma opinião sobre isso, especialmente se não vai tomar nenhuma decisão baseada nela. É normal não saber, e pra ser bem honesto, é normal não ter vontade de aprender sobre aquilo. Se não tiver, só mantenha na cabeça que achismo não substitui aprendizado real. Quanto mais complicado for a informação, maior a chance de você tomar uma decisão errada se chutar a resposta. Se estiver curioso(a) de verdade, procure especialistas que você confia, e nunca faz mal ler um pouco sobre o tema, nem que seja para desistir de se aprofundar caso pareça muito chato.
– A informação é fácil ou difícil de digerir?
Se for fácil, é muito importante entender o porquê: se for fácil porque já combina com outras coisas que você já acredita, muito cuidado. Existem inúmeras armadilhas nesse processo. Você tende a aceitar muita bobagem se a bobagem for parecida com outras coisas que você já sabe. Não é porque é fácil de acreditar que é verdade. Pra ser sincero, é onde mora o maior risco de absorver informação ruim. Desconfie o dobro de uma informação que você não consegue confirmar, mas que parece fácil de aceitar. São essas que eu coloco em quarentena na mente e minto que não sei nada sobre até conseguir maturar mais a ideia.
Por exemplo, eu tenho tendência a glorificar lógica fria e a achar sentimentos uma coisa confusa. Se eu tiver que escolher entre a informação que parece mais fria com a que parece mais emocional, é muito fácil ir para o lado da lógica. O que muitas vezes me deu problemas sérios em relações com outras pessoas: ao invés de escutar o que a pessoa estava sentindo, eu criava teorias sobre o que realmente estava acontecendo na mente dela. E aí, não lidava com o problema real. Não importava se era lógico ou não, o problema era emocional e ponto. Aprendi a segurar toda informação “lógica demais” em quarentena quando lido com outras pessoas. Até porque nem eu sou lógico quando o emocional toma conta. Impossível esperar isso dos outros.
Se a informação for difícil de engolir, mas ficar naquela área cinza da mente onde você não sabe porque está indo contra ela, é hora de ligar todos os alarmes: está chegando em você um possível momento de mudança de opinião. Eles são raros, eles são muito valiosos. Evidente que nem sempre isso quer dizer que você vai mudar a forma como pensa, mas são esses os momentos onde isso pode acontecer. Informação que cai como um tijolo na sua cabeça porque te incomoda e você não sabe explicar bem o motivo é informação que pode mudar sua vida. Talvez só 1% das vezes que isso acontece seja realmente válido, mas eu acredito que nunca podemos perder essas oportunidades.
Via de regra não precisamos fazer essa ginástica mental, mas com informação vindo de todos os lados o tempo todo, é estatisticamente impossível que você não acabe com alguma coisa mal resolvida na cabeça de tempos em tempos. Quando essa sensação vier, atenção para esses dois eixos: facilidade ou dificuldade de entender pela lógica e pela emoção. Não quer dizer que você vá sempre saber como se posicionar depois disso, mas vai te deixar num lugar muito mais seguro da mente. A realidade agradece.
Para dizer que não soube lidar com essa informação, para dizer que eu estou exagerando essa semana, ou mesmo para dizer que pelo menos eu ofendi todo mundo: somir@desfavor.com
W.O.J.
Ainda que eu não consiga dizer bem como poderia ser feito, acho que esse “exercício prático” para saber como lidar com dados novos que você menciona no final deste texto deveria ser ensinado nas escolas, Somir. Se mais gente adotasse esse seu modo de “catalogar informações na mente”, muitos dos problemas da Humanidade seriam, se não totalmente resolvidos, pelos menos minorados.
E, aproveitando o ensejo, acho que seria interessante você escrever agora algo mostrando as semelhanças e as diferenças entre a atual “Era da Informação” e a do século XV que se iniciou com a invenção da Prensa de Gutenberg. A máquina de tipos móveis do ourives alemão contribuiu para o fim da “Idade das Trevas” e eu a considero um marco tecnológico que, guardadas as devidas proporções, revolucionou a forma como o conhecimento chega às massas de forma quase tão profunda quanto o que a internet fez em nossos dias.
W.O.J.
Vídeo bem bacana sobre Gutenber e sua máquina de imprimir: https://www.youtube.com/watch?v=Z3BswXJvakE&list=PLp4749mncPKn1RznbY-KHc6r–EFsLfoz&index=17
Anônimo
Estou desconfiado das informações que você passou nesse texto.
Somir
Eu criei um modelo de análise da realidade em quatro páginas de Word, o que pode dar errado?