Controle da vida.

O Texas, estado dos EUA, passou uma lei restringindo o direito ao aborto. Embora a legislação nacional ainda preveja a possibilidade, os estados têm muita liberdade para criar dificuldades para quem quer (ou precisa) realizar o procedimento. A legislação texana não só cria um período muito reduzido para aceitar o aborto (6 semanas) como ainda permite que qualquer pessoa abra um processo contra a clínica de aborto, e se ganhar, um prêmio de 10 mil dólares. Será que adianta alguma coisa?

Vejam bem, onde tem dinheiro tem vontade. Da noite para o dia cria-se uma indústria de processos contra as clínicas de aborto: o reclamante não precisa ter nenhuma conexão com a pessoa que fez o aborto. Em tese os altos custos de entrar com uma ação nos EUA deveriam controlar a situação, mas quem quer reprimir o aborto em geral pode se organizar para pagar pelas custas, muitos advogados vão trabalhar de graça por questões religiosas, e considerando o prêmio, pode até se tornar algo lucrativo.

Já se tem notícias de clínicas de aborto interrompendo seus serviços prevendo que não vão ter como aguentar os custos dos processos que fatalmente irão levar a partir de agora. Sim, provavelmente advogados vão se juntar para defender essas clínicas e criar alguma forma de equilíbrio, mas convenhamos que quem era contra o aborto já estava muito mais organizado nos EUA, quem é a favor no Texas vai ter que começar a se organizar agora.

Trump criou uma Suprema Corte muito mais conservadora com suas indicações, o que coloca em xeque o prospecto de derrubar a lei texana. É provável que salvo uma troca de partido no poder do estado historicamente dominado pelos republicados, a lei continue em vigor por muito tempo. Para quem é contrário ao direito do aborto, é uma grande vitória. Vai criar complicações sérias num dos estados mais ricos e populosos do país.

Quem é contrário à prática acredita que um ser humano está sendo literalmente assassinado. Por mais que eu não concorde com essa conclusão, eu sou capaz de me colocar na pele de uma dessas pessoas e entender o grau de ofensa que o aborto pode gerar. Se você achasse que um grupo de pessoas está matando bebês, provavelmente também acharia que são pessoas muito ruins. Entendo essa parte, sou um misantropo casual, odeio pessoas quando elas fazem algo que considero ruim.

Há uma questão de difícil resolução aqui: o início da vida. Não que seja uma imensa complicação do ponto de vista científico, mas infelizmente a sociedade humana vai muito além dos fatos. Cientificamente, você pode definir vários parâmetros básicos para considerar um ser humano vivo e ir traçando as linhas de corte. Socialmente, o buraco é mais embaixo: a pessoa está viva a partir do momento em que alguém a considera viva. Em linhas gerais, um embrião pode não ser muito mais humano que as bactérias do seu estômago, mas para a pessoa que considera aquilo como uma vida humana, é uma vida humana.

Tem gente que acha que cachorro é filho, tem gente que casa com boneca de silicone… o ser humano tem esse poder e maldição ao mesmo tempo: consegue humanizar o que bem entender. Na verdade, podemos até ir mais longe: conseguimos humanizar até mesmo ideias. A ideia de que fomos criados com um propósito e não estamos sozinhos acaba virando uma entidade mágica humanizada. Religiões criam representações humanas de conceitos abstratos.

E considerando que boa parte da população mundial acredita em pelo menos uma dessas personificações de ideias, não é de se estranhar que muita gente atribua humanidade a um punhado de células estacionadas num útero. De uma certa forma, é vivo o que queremos que seja vivo. Então, é basicamente impossível usar argumentos científicos contra os detratores do aborto. Não é como se eles definissem suas crenças com essa base.

Na verdade, é até o pior caminho, porque tira da pessoa um poder imenso: o de atribuir humanidade ao que quiser. A pessoa antiaborto cria vidas com um mero pensamento. Isso não só é a base da sua ideia do que configura ser humano, como também é a raiz da sua crença em algo sobrenatural. Se ela não pode tornar vivo e humano aquele embrião, começa a ficar bem difícil de defender a transformação de uma ideia em uma divindade, não?

Deixar a “ciência ganhar” nesse caso pode ter consequências gravíssimas dentro da mente da pessoa. Algo que dificilmente sua mente consciente sabe, mas é provável que esteja ao alcance do subconsciente. A reação primal contra o suposto assassinato de bebês provavelmente tem raízes bem mais egoístas. O aborto joga luz sobre uma questão filosófica profunda, a qual boa parte das pessoas não parece capacitada para lidar.

E isso gera um ciclo vicioso: a pessoa tem medo de se aprofundar e descobrir algo desagradável, por isso fica mais e mais focada em elementos superficiais da história, o que vai gerando reações cada vez mais raivosas e difíceis de se defender intelectualmente com o passar do tempo. E é aqui que eu volto para a pergunta do parágrafo inicial: será que medidas desse tipo contra o aborto realmente mudam alguma coisa?

Sem querer generalizar, mas já generalizando, o público antiaborto normalmente não concorda com educação sexual e medidas contraceptivas amplamente disponíveis para jovens. São ideias que não batem com as crenças religiosas e o conceito de moral que julgam corretos para a sociedade. Você pode até achar que ser antiaborto é ser pró responsabilidade, mas é muito mais simples: é literalmente a ideia de que pessoas estão matando bebês. Não importa o que vem antes e não importa o que acontece com o bebê depois; é sobre aquele momento e só sobre ele.

Nos EUA, muitas entidades religiosas colocam ativistas nos arredores das clínicas de aborto, e até mesmo criam falsas clínicas para tentar pegar as mães antes delas fazerem o ato. Mas não estão distribuindo camisinhas ou oferecendo outras formas de contracepção para as mulheres, essa parte fica intocada, porque a doutrina oficial é não fazer sexo se não quiser ter filho. O foco é total na mulher que está grávida e na manutenção daquela gestação “em risco”.

Se a criança vai virar outra pessoa que vai procurar uma clínica de aborto quinze ou vinte anos depois, tanto faz. A missão era simples: evitar o aborto. Isso já parece marcar os “pontos com Deus” que tanto procuram. O resto é resto. Eu não estou dizendo que acho horríveis as pessoas que são contra o aborto, eu também gostaria que nunca acontecesse, parece uma experiência traumática para todos os envolvidos.

Mas, tem uma diferença absurda entre impedir um aborto e diminuir o número de abortos. A lei texana foi pensada por gente que quer a primeira coisa. Não importam as consequências, querem impedir qualquer aborto. Ignora que antes da mulher chegar na clínica, muita coisa aconteceu. Provavelmente muitos erros facilmente corrigíveis com um pouco mais de educação e estrutura. E, curiosamente, com menos mentalidade antiaborto: quando sexo se torna algo proibido e perigoso, a pessoa tende a baixar o grau de proteção. Já está muito pressionada por outros elementos sociais para pensar em coisas básicas como camisinha e outros anticoncepcionais.

E, se não consegue ou é demovida de fazer o aborto, a mulher corre um sério risco de passar essas escolhas ruins para frente. Proibição de aborto tende a manter ou elevar o número de pessoas querendo fazer aborto. Liberação tem a possibilidade (se unida com políticas decentes) de reduzir o número de pessoas que acabam naquelas clínicas. Ou se cuidaram melhor, ou tem muito menos pressão social e vergonha daquilo para poder tomar uma decisão mais serena. Muita mulher que abortou poderia ter sido convencida a manter a criança se soubesse que teria ajuda depois. Uma rede de proteção social decente pode reduzir bastante o número de abortos. Mas, é claro, o religioso moderno acha tudo isso coisa de comunista…

Porque não é e nem nunca foi sobre reduzir o número de pessoas que querem fazer abortos, é sobre impedir que as que querem consigam. E pode ser uma ou mil mulheres, desde que a prática seja proibida, para eles dá no mesmo. Ninguém pode desafiar sua criação de vida no útero alheio, e por tabela, ninguém pode tirar deles o poder de escolher quando o outro é humano ou não. O que, convenhamos, sempre foi algo muito útil para quem tem ou almeja o poder: deixar na mão da ciência a definição de quem é vivo e quem é humano é tirar muito poder das elites.

Talvez não precisem do poder de dizer quem merece viver ou morrer agora, mas se um dia precisarem, é bom que as pessoas continuem acreditando que são eles que podem tomar a decisão. O aborto tira da mão de figuras de autoridade políticas e especialmente religiosas a capacidade de nos dizer quem salvar e quem matar. Não é sobre crianças, não é sobre moral, é sobre poder.

Para dizer que é sempre sobre poder, para dizer que isso não chega no Brasil porque estamos atrasados demais, ou mesmo para dizer que a vida começa quando se paga impostos: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • O negócio é que eu não “me coloco no lugar” dessa turma pró-vida (chamo de pró parto, é o mais adequado ao meu ver), justo porque tudo isso é sobre controle da vida sexual alheia, o embrião/feto vem em último lugar. Os mais endinheirados do (mais uma vez) desgracado Texas irão levar suas filhas/namoradas/amantes pra outros estados abordar e depois voltarão a fazer seu papel de santinhos pela vida, moral e bons costumes nas portas das clínicas de aborto do estado deles. Tudo pelo controle alheio, nada a ver com a “vida” – já que depois q o bebê nasce, f*da-se, não ligam mais, pois não serve mais como ferramenta de controle do corpo da mulher…

  • Ao menos nos Estados Unidos em tese é possível sair do “Bible Belt” e buscar guarida em estados com legislações mais sensatas e menos fundamentalistas cristãos. No Brasil, a centralização do tema na União emperra qualquer debate com efeitos práticos, muito embora a contaminação fundamentalista esteja em todas as unidades da federação.

  • Se já é toda essa briga pra impedir um aborto, imagina quando finalmente os cientistas conseguirem criar uma vida humana em laboratório. Pronto, Terceira Guerra Mundial.

  • Só quero deixar uma historinha para reflexão sobre isso de “salvar vidas”.

    Pai estupra filha de 10 anos. Filha de 10 anos não pode contar o abuso na escola, pois ela “pecou” e todos vão odiá-la por isso. Ainda assim, uma professora percebe e a faz falar.

    Pastor da igreja da menina processa a prof por ter induzido a menina a matar um inocente. Pai da menina e pai do seu próprio neto, também processa, pois ele é o pai e está arrependido de seu pecado. Um erro não deve definir a vida de um homem, e orientam a menina a não procurar a polícia. Eventualmente ele é preso, pois vitimou outras 5 meninas e uma delas contou à polícia mesmo sob ameaças. Com a repercussão, a dedo duro destruídora de lares, se mata dias depois.

    A professora é multada em 10k. Em casa, ela tem filhos e um marido com doença degenerativa que dependem da sua renda. Pesquisas com células embrionárias poderiam ajudá-lo, mas, é antiético usar células de bebêzinhos e ele não se chama Trump. O parto acaba por matar a menina agora com 11 anos. Seu útero sofreu uma ruptura, e a hemorragia saiu do controle. Não conseguiram salvá-la.

    A igreja lamenta ameçaas à vida do precioso bebê by incest. A mãe, bem, “ela pagou pelo seu pecado de tentar matar seu filho”, mas para outros “Deus sabe o que faz”. Ninguém ajuda nem com um 1 litro de leite. “Deus proverá”. O garoto, sustentado só pela avó cada vez mais velha, passa fome e comete pequenos furtos na rua; um deles foi a carteira de um republicano distraído com outro, enquanto reclamavam dos impostos altos para pagar “assistência pra vagabundo”.

    Bebê by incest amado por ninguém cresce ouvindo que ele é um desajustado. Ele tem inveja do vizinho, que é adotado e querido por seus dois pais. Não entende como que na sua igreja esse amor é pecado e porque ele não poderia ter sido adotado por eles. Foi perguntar sobre à avó, e acabou rechaçado. “Para de ser viadinho!”

    Na escola, ninguém gosta dele. As meninas o olham com nojo. Um dia descobrem que ele é filho de um estuprador. Os jocks batem nele, e os nerds dão risada. Revoltado, vira um school shooter. Como ele vive sem atenção, ele consegue fácil pelo menos um revólver. Nada que alguns furtos não pague sua compra, seja no beco, seja em uma loja. Ele treina atirando nos animais da vizinhança. Gatos, cachorros, pássaros. Se sente pronto.

    12 pessoas acabam mortas no tiroteio. Outras estão no hospital. Pelo menos uma delas perdeu permanentemente o movimento das pernas, devido lesão em sua coluna por uma das balas.

    Ele vai preso. Querem matá-lo na cadeia. “Bandido bom é bandido morto”. Quem é contra a pena de morte e a favor de ressocializá-lo “não pensa nos inocentes mortos ou feridos no atentado”. Agora, que ele queime no inferno.

    • Ok, mas e se a mãe (maior de idade) quiser ter o filho mesmo sendo pobre e fodida? E se a mãe quiser ter o filho mesmo que o pré-natal tenha detectado uma doença/deficiência? Porque esses casos existem e as próprias mulheres dizem que não se arrependem.

      Vão fazer o que, obrigar a mulher a abortar?

  • É por esse tipo de coisa que eu mantenho a minha opinião descrente a respeito daquelas projeções sobre as religiões no futuro, em que a religiosidade tradicional será substituída por robôs ou sei lá o quê. Se tem uma coisa que não está ameaçada hoje em dia é a religião.
    Pegam uma reportagem de alguma escolinha aleatória na Europa que trata os alunos com pronomes neutros pra dizer que “é o futuro”, enquanto isso centenas, milhares de escolas cristãs e islâmicas mundo afora. E levando em conta que o cristianismo está crescendo a todo vapor na África subsaariana e no sul da Ásia, não duvidaria que criticar o cristianismo seja considerado racismo daqui a algum tempo.

    • Nos EUA, tá nesse nível. Uma amiga minha aqui que mora nos EUA disse que um negro foi assediar ela na cara dura e que ela tentou cortar o cara de toda forma no assédio, mas o mesmo continuava insistindo e insinuando que o namorado dela seria branco pra continuar forçando a barra e de quebra insinuando que se chamassem a polícia pra ele, ele iria incriminar ela por “racismo”, que era a carta na manga do negão malandro lá das bandas de Miami.
      E se vocês acham os brasileiros “macaquitos” é porque vocês não tem ideia do que fazem os macaquitos yankees segundo o relato dessa minha amiga, que chegam ao ponto de jogar merda no cesto de lixo do banheiro e de encher de merda as paredes, sendo que ela, como “latina”, acabava tendo de limpar tudo pra manter as aparências.

  • Só acho engraçado como as ativistas feministas jogam toda a culpa da restrição do aborto nos homens, sendo que o que mais tem em passeata pró-vida é mulher. Inclusive, acredito que muitos de vocês, assim como eu, conhecem pelo menos um casal em que a mulher é toda religiosa, se dedica aos rituais (casamento, batizado, missa etc.) enquanto o marido tem uma postura bem “tanto faz”.

    Lembrei de Persépolis, onde a Marjane diz que várias mulheres se manifestaram a favor do uso compulsório do véu islâmico fora de casa, na época da revolução iraniana. Posteriormente, várias mulheres ficavam ​fiscalizando e denunciando outras mulheres sobre o uso do véu nas ruas de Tehran.

    Enfim, não vou ficar aqui fazendo juízo de valor sobre nenhum lado, eu também não sou lá uma das pessoas mais boazinhas do mundo. Feministas, religiosos, conservadores, LGBT, BLM… No fim, a maioria é gente que genuinamente acredita estar fazendo o certo. Não adianta demonizar.

    • Esse comportamento feminino (especialmente em casos como o do segundo parágrafo) pode ser explicado por uma demanda de autopreservação que conduz à adesão inclusive àquilo de que se tem ojeriza. É basicamente o mesmo mecanismo que fez com que roupas elegantes e formas de tratamento formais desaparecessem em Barcelona no início da Guerra Civil Espanhola.
      Pode ser Síndrome de Boiada também, além de educação sinistramente conservadora.

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