Direito ao silêncio.

Espero que vocês não sejam tão masoquistas como eu, mas sempre dou um jeito de ver um pedaço da CPI da Covid na TV. Tem muito papo furado, tem chilique, tem bate-boca, e ultimamente, tem muito convocado dizendo que vai usar seu direito de ficar calado. O que me fez pensar: por que diabos existe esse direito?

Numa análise bem superficial: se a pessoa fez coisa errada, o mínimo que tem que fazer para compensar é assumir as responsabilidades. O reflexo condicionado da mente da maioria de nós é esperar uma confissão do bandido quando confrontado. Essa deveria ser a ordem das coisas num mundo baseado em senso de justiça.

Mas é claro, isso só acontece em filme e série americana, o culpado “quebrar” na sala de interrogatório e admitir tudo o que fez de errado para os policiais… na vida real, só gente arrependida, muito limitada intelectualmente ou maluca admite seus crimes. As pessoas tendem a negar até não poder mais, mesmo diante de provas inquestionáveis. Qualquer advogado decente vai te dizer para não falar nada de nada para ninguém até ter um plano desenvolvido por ele.

No final das contas, confessa quem quer. Eu sei o que alguns de vocês estão pensando: no Brasil confessa quem é torturado pela polícia, mas eu vou eliminar essa categoria, porque gente torturada confessa o que fez e o que não fez. É um dos métodos mais estúpidos para encontrar a verdade, além de ser a pior coisa que um ser humano pode fazer com o outro. Até execução é mais humanitário.

Com isso fora do caminho, voltemos à confissão: ela simplesmente não é comum em condições normais de temperatura e pressão. A gente nega até mesmo quando falou uma palavra meio errada numa conversa, imagina só se existe uma consequência legal para isso? Não é lógico esperar que um processo judiciário dependa de uma confissão para funcionar. Por isso existem diversas outras formas de definir uma solução para o caso. Testemunhos, provas, teses bem fundamentadas… o sistema só tem razão se for capaz de estabelecer com o mínimo de dúvidas possíveis a culpa de um cidadão.

O que me leva a considerar: por que se preocupar com algo como direito de permanecer em silêncio se no final das contas não existe nenhuma forma (legal) de forçar a pessoa a dizer alguma coisa? E como eu já disse antes, mesmo que seja forçada, nada garante que seja a verdade. E além disso, não se espera mesmo que a pessoa confesse, o sistema legal já percebeu isso há milênios e foi desenvolvendo suas outras ferramentas. O ser humano médio não vai se incriminar se não quiser.

Aí, começa a parecer um direito maluco: direito de não fazer algo que virtualmente ninguém quer fazer pra começo de conversa? Precisa colocar o direito de não comer cocô na Constituição também? E o de não topar o dedinho no pé da mesa? Pra quê proteger as pessoas de algo que elas não querem fazer? Bom, os mais atentos provavelmente já responderam: para evitar que outros me forcem a fazer isso. Mas pensa comigo: é proibido forçar pessoas a fazerem qualquer coisa, salvo algumas raras exceções, e quase todas são de exclusividade do Estado. O Estado pode te forçar a ficar preso, a dar dinheiro pra ele… é a prerrogativa do sistema no qual vivemos. Fora o Estado e situações onde sua vida ou a vida de outros esteja em risco, não se pode forçar ninguém a fazer nada.

Não pode forçar a confessar um crime, mas também não pode forçar alguém a tomar um sorvete. Por mais gostoso que seja o sorvete, sagrado direito de qualquer um não querer. Não pode forçar uma pessoa a receber 100 milhões de reais na conta. Não pode forçar nem uma noite de sexo com a pessoa mais atraente do mundo… não pode nada. Ache você uma coisa boa ou não, o direito de fazer o que quiser dentro da lei se sobrepõe a tudo.

Precisa dessa lei mesmo? A lei de não poder forçar as pessoas já daria conta disso. Temos direitos fundamentais, e virtualmente tudo o que fere eles está previsto nesse direito de não precisar confessar seus crimes. O mundo seria um lugar bem mais fácil de viver se todo mundo assumisse as coisas que faz e aceitasse as consequências, mas não é uma expectativa realista.

Com ou sem habeas corpus, os convocados da CPI poderiam falar ou não falar o que quisessem. Os senadores têm o poder de prender quem acham que está mentindo, mas pra dar em alguma coisa, eles vão precisar provar que é uma mentira. Ninguém (em um mundo ideal) vai ficar preso por um político achar que você mentiu sem conseguir nenhuma prova. Precisa de um sistema muito corrupto e/ou autoritário para fazer uma coisa dessas, e em países democráticos, sem a imprensa saber também.

Não parece bizarro que a pessoa fique lá se esquivando de responder a verdade usando um documento legal que a permite omitir ou mentir? Bom, foi aí que eu comecei a pensar melhor sobre isso. Não, ninguém pode te forçar a fazer algo, seja tomar sorvete ou confessar um crime, mas quando o Estado está envolvido, surgem algumas zonas cinzas. Como ele tem o monopólio da força, o Estado pode usar até mesmo métodos violentos para garantir que você faça alguma coisa.

E em tese, existem métodos considerados humanitários para o Estado controlar uma pessoa. Você nunca pode torturar o cidadão, mas pode fazer várias coisas desagradáveis como privação de liberdade e cortar acesso a serviços oferecidos pelo Estado. Se o Estado tentar fazer isso para te forçar a tomar um sorvete, fica claro para todo mundo que tem algo bizarro acontecendo, mas se ele fizer isso em nome de algo como solucionar um crime, talvez as pessoas não fiquem tão incomodadas assim.

O diferença entre a justiça do cidadão médio e a Justiça do Estado é que a do cidadão não tem regras: é justo o que ele quiser que seja justo, quando quiser. Se você tiver gente suficiente para linchar alguém que jogou um papel no chão, a pessoa vai ser linchada. Se o cidadão cismar com uma regra social e conseguir muitos adeptos, ela vai ser aplicada por pura pressão social. Já o Estado precisa provar que suas regras obedecem uma lógica básica da Constituição e ter vários mecanismos de correção de erros no caminho entre acusação e punição.

É por isso que o Estado trabalha com regras que parecem desnecessárias: não por causa da sua lógica como entidade, mas por causa das pessoas que compõem o Estado. Todas podem falhar e não se espera que saibam tudo sozinhas, afinal, nem teríamos Estado se pudéssemos confiar tanto assim no cidadão médio.

Você tem o direito a permanecer calado porque só a existência dele permite que o cidadão não estrague a lógica do Estado. Na primeira chance, o povão vai querer linchar todo mundo que acha que é culpado. Quanto mais brutalizada uma sociedade, maior a chance de acusação e condenação serem a mesma coisa. Deixa na mão da pessoa que vê o Datena todo dia decidir como lidar com criminoso, deixa…

Já escutei de algumas pessoas que tudo bem matar um inocente ou outro para punir quem é bandido de verdade. Não é muito a cara do nosso público médio, mas não duvido que vocês conheçam alguém assim. O problema é que pessoas assim estão sendo eleitas, eleição após eleição. Chega a ser assustador pensar o quão perto estamos da barbárie se não tivermos regras bem específicas evitando que ela se instale.

Se deixar para o cidadão médio pensar sobre o tema, ele pode chegar na metade do caminho que eu desenvolvi e achar que tudo bem punir quem mente para se proteger, afinal, mentira é errado. O problema é que não vão passar desse ponto e perceber a verdadeira armadilha: quando você dá ao Estado poderes desse tipo, está deixando que cidadãos que ganharam um concurso de popularidade tenham controle absoluto sobre sua vida.

É muito fácil criar leis e mecanismos para forçar adversários políticos a se incriminar se não tivermos proteções desse tipo. Muitos dizem que as leis existem para proteger bandido, eu digo que na verdade, elas protegem bandidos como efeito colateral de proteger inocentes. Porque a lógica é sempre essa: não descuide do inocente, porque quando ele puder virar alvo, ninguém está a salvo. Não adianta ser “cidadão de bem” num país onde “cidadão de bem” é oprimido como qualquer outro, não?

O Estado não existe para nos proteger dele, existe para nos proteger de nós mesmos. O perigo, como sempre, são as pessoas. O ditador é seu amigo até não ser mais…

Para dizer que falei, falei, mas me reservei ao direito de ficar calado; para dizer que bandido bom é bandido que te ajuda, ou mesmo para dizer que crime mesmo é ver a CPI: somir@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Desfavores relacionados:

Etiquetas: , ,

Comments (8)

  • Na real, esse “cidadão médio” que você mencionou é o mais lúcido sobre o sistema. Num país fodido que nunca vai dar certo, ele entendeu como o jogo funciona, paga o menos possível de imposto e serviços e de certa forma acaba vivendo melhor que quem acredita no Bolsonaro vencendo a lacração globalista ou o Lula vencendo o nazismo.

    Vejam as favelas por exemplo, é praticamente anarcocapitalismo. Lá tem tudo sem a mão do Estado, tem droga, não tem IPTU e IPVA. Quer fazer prédio e sei lá quantos puxadinhos? Faz e foda-se. Divide uma instalação de net pra rua inteira, não tem dinheiro faz gato pra ter luz e ar condicionado o dia inteiro, abre comércio sem nota fiscal, põe os filhos pra cuidarem um do outro… ​E em cidades pequenas é praticamente o mesmo se não pior.

    Eu mesmo passo por essas comunidades no ônibus e o povo está sempre lá sentado em cadeira de balanço, tomando cerveja, mexendo no celular apoiado na pança, ouvindo forró e um bando de criança correndo e brincando em volta. Não entendo porque ainda tem gente que finge se importar com os pobres, eles são a personificação do “foda-se”

    • Fascinante essa comparação do pobre brasileiro com os ancaps. Até mesmo na parte de que você deixou passar: não há vácuo de poder, o gato de luz, água e até tv a cabo é gerenciado pelo tráfico e/ou milícia.

      Ser pobre é ser ancap sem pacto de não agressão…

  • É isso que dá destruir a economia e não dar condições e poder de compra pra população. Aí como as pessoas não tem o que fazer acabam focando direto pra política. Se todos estivessem bem financeiramente e com poder de compra nada disso iria acontecer.
    Duvido que o povo lá na Noruega ou no Japão passem o dia na internet ou no Whatsapp debatendo política, eles devem é estar curtindo a vida, comprando coisas, viajando, tendo hobbies. Porque os políticos deles roubam, como todo político, mas pelo menos deixam alguma coisa pro povo.

    • Ah, cara, não sei não, viu… País muito rico e desenvolvido significa que os habitantes tem mais tempo livre pra pensar merda e enxergar problema onde não tem. Esses QAnons dos EUA que o digam (e o pior é que gado bolsonarista fica trazendo essas bobeiras pra cá tb).

    • Há bons anos atrás um movimento de aceitação hiponga se instaurou primeiramente nas regiões mais ricas da Europa. Depois que perceberam que não é só convidar o outro a morar em sua casa (ele tem de seguir suas regras), posturas mais reacionárias ganharam força e até cargos políticos (Macron, alguém?).

      Certeza que a parte rica da Europa não perde tempo com discussões vazias sobre política? Eu posso perder muito tempo falando sobre toda a merda que ocorreu quando abriram as fronteiras e o choque cultural, mas acho que (se você quiser pensar um pouco, claro) meu ponto está dado

      • “posturas mais reacionárias ganharam força e até cargos políticos ”
        Milhares continuam migrando pra lá de qualquer jeito ¯\_(ツ)_/¯

        • Em menores números e (dependendo do país) começam a ser responsabilizados pelos seus atos sem essa baboseira de “é a cultura deles”.

Deixe um comentário para Torpe Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: