Vagalhões.

Depois do grande tsunami que atingiu a Indonésia, no ano de 2004, o termo se popularizou e qualquer onda grande passou a ser chamada de “tsunami”. Porém, além de ser incorreto tecnicamente, ainda é injusto: existe uma onda muito mais perigosa e assustadora que a tsunami. Desfavor Explica: Vagalhões.

Vagalhões são ondas muito grandes, mas que não surgem em decorrência de um evento anormal, como é o caso das tsunamis. Um terremoto, um meteoro que atinja a água ou um grande deslizamento, podem desencadear um tsunami. Um vagalhão costuma ser causado por uma confluência de fatores normais, como correntes marítimas e ventos, que se combinam de forma a criar uma única onda gigante que destoa de todas as que vieram antes e de todas as que virão depois.

No caso de tsunami, um fenômeno externo empurra a água em direção à costa criando uma onda que vai aumentando progressivamente até atingir a terra. O Vagalhão não. Ele se forma de uma hora para a outra, em uma localização limitada e dura muito pouco (não o suficiente para chegar à costa). É rápido, é do nada, é imprevisível.

“Mas Sally, as ondas do mar têm oscilações de tamanho, isso é normal”. Sim. Em alto mar, por conta da oscilação natural das marés, uma em cada 23 ondulações tende a ter o dobro da altura das outras. Só que normalmente isso significa uma variação de centímetros. Um Vagalhão é uma onda de mais de 20 metros, que destoa absurdamente de todas as demais.

Justamente por não terem uma explicação visível ou compreendida, durante muito tempo os Vagalhões foram considerados lendas, mitos, mentiras ou exageros. Inclusive pela ciência, que, durante séculos, insistiu em dizer que as ondas do mar seguiam um padrão linear e não seria possível que uma onda, aleatória, destacada das demais, variasse tanto de tamanho.

Para piorar, são fenômenos imprevisíveis (não dá para saber exatamente quando e onde vão acontecer), são repentinos (de formam rapidamente) e são rápidos (duram pouco tempo, é uma única onda que sobe, colapsa e some). Some-se a isso o fato de que dificilmente quem cruzava com um Vagalhão sobrevivia para contar a história, então, era quase impossível conseguir provas ou relatos.

E, mesmo os poucos que sobreviviam, eram desacreditados. Em 1933, o navio militar americano USS Ramapo, navegava entre as Filipinas e os Estados Unidos quando percebeu a formação repentina de uma onda muito, mas muito maior do que as outras. Manobraram o mais rápido que podiam, para tentar subir na onda de frente (com a proa), pois, se estivessem de lado, a onda poderia virar o navio.

Tiveram sorte, o barco não afundou e quem passou pelo Vagalhão sobreviveu para contar a história. O problema é: não acreditaram. Na época, os instrumentos de navegação eram rudimentares demais para poder dimensionar o tamanho da onda, restou apenas o relato dos marinheiros, que afirmaram que o Vagalhão era mais alto que o mastro do navio. O mastro do navio tinha 30 metros.

Pelos cálculos da tripulação do USS Ramapo, a onda que atingiu o navio tinha em torno de 34 metros de altura. Mas não tinham como provar. Rapidamente começaram a ser desacreditados: muitos os chamaram de mentirosos, exagerados e até levantaram a hipótese de que estavam todos bêbados.

Só se passou a acreditar na existência de Vagalhões em 1995, após o caso da Plataforma de Draupner. Este caso tirou os Vagalhões da categoria de “lendas” e lhes garantiu um lugar no mundo real.

Uma plataforma de petróleo localizada em alto mal, nas proximidades da Noruega, chamada de Plataforma de Draupner, foi atingida por um Vagalhão. Como ela tinha um bom sistema de monitoramento, foi possível identificar uma onda que se formou totalmente fora do padrão e atingiu a plataforma. Esta foi a primeira vez que um Vagalhão foi detectado por um instrumento de medição. Agora não tinha o que questionar, o fenômeno estava documentado.

A onda recebeu o apelido de “Onda do Ano Novo”, pois se formou em 1° de janeiro de 1955. O mar estava com ondas em um determinado padrão de tamanho, até que, do nada, se formou uma onda com mais de 25 metros de altura, algo que equivaleria mais ou menos a um prédio de dez andares.

O evento foi confirmado por uma leitura feita por um sensor a laser, por vídeo e fotografias, por imagens de satélite, por radares da superfície do oceano, por sistemas de imagem de ondas estéreo, por transdutores de pressão no fundo do mar e por navios de pesquisa oceanográfica. Diante de tantas evidências, cientistas tiveram que admitir que Vagalhões existem.

Sim, é possível que apareça uma onda absurdamente maior do que as demais e do nada. Não é progressivo. É ondinha, ondinha, ondinha, ondão de mais de 20 metros e ondinha, ondinha novamente. Porém, não se preocupe, as chances de que você cruze com um Vagalhão são muito, mas muito pequenas. Aproximadamente 0,0001%. Este texto não é para te criar medo de viajar em navio, é apenas para te contar que essas ondas existem, mas são muito raras.

Vários fatores podem ocasionar o surgimento de um Vagalhão, mas são fatores que nós não controlamos e às vezes nem percebemos. Um estudo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts até conseguiu desenvolver algoritmos para prever o surgimento de Vagalhões, na intenção de alertar os navegantes, mas o estudo concluiu que a previsão máxima possível seria de apenas dois ou três minutos, ou seja, não ajuda muito. No relatório final eles ainda colocaram um adendo: “no mar, é preciso ser humilde”.

Considerando que é algo que só foi documentado em 1995, é compreensível que ainda não se saiba muito bem de onde vem. Sabe-se que podem influenciar no surgimento de Vagalhões (mas não se sabe muito bem como): vento (geralmente contrário à direção das ondas), correntes marítimas (principalmente quando se forma uma corrente forte contrária à formação de ondas), oscilações de temperatura e até de pressão. E, que fique claro: não é preciso uma tempestade para que elas se formem. Há casos de Vagalhões que apareceram em meio a céu azul e calmaria do mar: do nada, sobre um paredão de água.

De uma forma bem simplificada, o que costuma acontecer é a junção de várias ondas pequenas que acabam se transformando em uma onda muito grande. Alguma coisa faz com que várias ondinhas se acumulem e formem um ondão: uma combinação errada das correntes marítimas no fundo do oceano já basta.

Para quem quiser aprofundar, é possível entender como as ondas “se juntam” através da Equação de Schrödinger (aquele do gato), onde ele explica com um cálculo como uma onda começa a absorver a energia das ondas ao seu redor, se tornando muito maior do que elas. Não vou aprofundar isso aqui, pois não seria didático, mas, para quem tem curiosidade, vale aprofundar.

Vagalhões são perigosos não apenas por terem força para virar um navio, eles também podem quebrá-lo ao meio ou destruí-lo por completo, dependendo da forma como a onda bata. Estima-se que ondas com mais de 30 metros possam chegar a uma força de mais de cem toneladas por metro quadrado quando batem em algo. Além disso, sua força de sucção é tão grande que, quando a onda está “subindo” pode sugar o navio como se fosse uma canoa.

Para piorar, não são apenas grandes, são íngremes. Parecem um paredão de água. Isso torna o impacto pior, pois é como se fosse uma parede de água desabando na cabeça de quem está embaixo.

Como dissemos, as chances de alguém cruzar com um Vagalhão grande (mais de 30 metros) são muito pequenas, por isso, os navios são construídos para resistir a ondas de, no máximo, 15 metros. Isso significa que um navio exposto ao dobro de força para a qual foi projetado quebraria como um palito de picolé.

O que fazer se você se deparar com um Vagalhão? Não vai acontecer. E se acontecer, escolha uma religião e reze, pois não vai dar tempo de muita coisa. Em tese, a melhor saída é fazer o que o USS Ramapo fez (tanto que sobreviveram): surfar a onda, virar a proa (parte da frente do navio) em direção à onda e tentar ser levantado por ela, em vez de que ela caia na sua cabeça. Mas, isso é mais sorte do que juízo, na prática, é muito improvável que alguém consiga, pois o paredão de água se forma muito rápido.

Até hoje, não há nenhum registro oficial de Vagalhões no Brasil. Normalmente estas ondas também chamadas de “ondas loucas” costumam aparecer na costa da África do Sul, no Atlântico Norte e o entorno da Antártica, pontos de confluências de diferentes correntes marítimas. São mais comuns ao longo da costa da África do Sul, onde dois oceanos (o Atlântico e o Índico) se encontram com o plus de correntes marinhas vindas da Antártica. O recorde de danos é dessa região: nos último 30 anos mais de 20 navios afundaram ou ficaram danificados por Vagalhões na região da África do Sul.

Acredita-se que até o mito da Terra Plana esteja relacionado com Vagalhões. Imagina só, séculos atrás, pessoas viajando em caravelas pelos mares, até que, do nada, se deparam repentinamente com um paredão de 30m de altura de água. Seria muito fácil confundir isso com a borda do planeta: várias ondinhas pequenas e, repentinamente, um paredão desse tamanho. Mais ainda para quem estava em uma caravela mais distante, observando o coleguinha ser sugado pelo Vagalhão. Compreensível dar meia volta e narrar o que viu com sendo a borda do planeta.

Várias histórias “misteriosas” de navios que desapareceram sem deixar rastros também começaram a ser revistas e os indícios quase sempre apontam para os Vagalhões. O caso mais famoso foi o do navio inglês Waratah, que desapareceu por completo, sem deixar nenhum vestígio em 1909, quando fazia o trajeto da Austrália para a Inglaterra e, coincidentemente, navegava na costa da África do Sul, com mais de 200 passageiros a bordo.

Quando o navio não chegou a seu destino, começaram a buscas. Mas nada foi encontrado: nem um palito, nenhum vestígio. Algum tempo depois, um homem mentalmente confuso foi encontrado vagando numa praia da África do Sul, dizendo coisas sem nexo e as palavras “Waratah” e “onda grande”. Acabou internado em um hospício e nunca se teve certeza se era um sobrevivente ou apenas uma pessoa sugestionada com o caso.

Desde 2001 fizeram várias expedições tentando encontrar esse navio, mas até hoje, nenhum vestígio foi encontrado, e não tem nada de paranormal aí. Um Vagalhão pode simplesmente moer um navio (com tudo que tem dentro) e/ou pode puxá-lo para uma profundidade onde dificilmente ele será encontrado e pode inclusive arrastá-lo para muito longe do lugar onde ele afundou.

A verdade é que o ser humano tem um histórico de resistência a fenômenos que ele não pode prever e controlar, então, ainda vai ter gente duvidando da existência dos Vagalhões ou evitando o assunto. Mas eles existem. São assustadores, mas também são fascinantes.

Para dizer que vai matricular seus filhos na natação hoje, para dizer que é tudo invenção da indústria que vende coletes salva-vidas ou ainda para dizer que isso pode explicar muita coisa no triângulo das bermudas: sally@desfavor.com

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Comments (24)

  • Ótimo texto, muito didático e gostoso de ler. Não sou biológico, geólogo, nem nada do tipo, mas sou apaixonado pelo mar. Pensar que existe uma onda que chegue a 30 metros é sensacional. Se eu acabar morrendo afogado, a maneira mais irada seria morrer afogado por um vagalhão. Seria uma morte dolorosa, mas a última visão que terei enquanto um homem vivo seria sensacional…

  • Costumava ter muitos sonhos com essas ondas. Creio que, pelo menos no meu caso, elas estavam relacionadas ao meu emocional.

    Quando comecei a dar atenção para minha (i)maturidade emocional, esses sonhos diminuíram.

    Se eu chegasse perto do mar em um sonho, essas ondas surgiam tentando me levar com elas ou causando alguma destruição. Agora consigo entrar no mar sem que elas apareçam sempre.

  • Seu texto me lembrou de uma conversa que tive com um marinheiro da marinha mercante. Ele falou justamente sobre a dificuldade de se navegar em regiões que fazem ponta, como é o caso do Estreito de Magalhães e o Cabo da Boa Esperança (chamado de Cabo da Tormenta, no passado) na África. Ele não entrou no assunto vagalhão, mas falou das ondas grandes e do mar muito mexido.
    Faz total sentido a explicação, é só lembrar de ondulatória das aulas de física… a soma de uma ondinha com várias outras ondinhas dá um ondão. Se eu não estiver enganada, a energia na onda não se perde… divaguei…

      • Ele não entrou no assunto vagalhão, mas falou em ondas muito grandes que eram maiores que o navio mas que nessas regiões já era o esperado. Então, a tripulação está preparada para lidar com essas ondas grandes, porém esperadas. Eu me lembro dele falar que no Estreito de Magalhães é pior que no Cabo da Boa Esperança. Não foi uma conversa muito profunda, não.

  • Ótima explicação, Sally. Aprendi uma porção de coisas que eu não sabia e seu texto também deixa bem clara a diferença entre tsunamis e vagalhões. O que mais assusta é saber que os dois fenômenos são super-destrutivos e que, contra eles, não há muito a se fazer.

    • Observe os animais. Os turistas da Indonésia que observaram os animais se salvaram. Horas antes da tsunami começar a se formar os animais estavam todos subindo para as montanhas.

    • W.O.J., contra os Elementos da natureza nada se pode fazer, são imprevisíveis os momentos exatos dos seus arrebatamentos.
      A esses Elementos eu chamo de Deus, é o que mantém o equilíbrio da ordem e da desordem.
      Terra, água, fogo, ar e éter.
      Basta um perder o foco e tudo se desequilibra, e nós, insignificantes micro partícula de nada, já era.
      Sempre imagino a Terra perdendo seu centro gravitacional e todas as coisas e pessoas da Terra sendo lançadas no ar.
      Dou risada imaginando a cena.
      Hahahaha, os deuses são cruéis.

      • Adorei seu comentário, Io. Filosófico e faz pensar. Não somos nada perante a Natureza, que pode se livrar de nós quando quiser.

  • Hoje, só de imaginar os seres que habitam os mares me recuso a entrar neles além dos tornozelos,
    (coisa que até os meus 20 anos eu entrava no mar e voltava jacarezando em grandes ondas sem um pingo de medo), e agora ainda tem VAGALHÕES?
    To fora, só na areia e de havaianas.
    De longe tudo é mais bonito.

    • As chances de você se deparar com um Vagalhão são menores do que as de ganhar na loteria, mas eu entendo seu ponto: também me gera receio meter meu corpo em um lugar que eu não sei o que está acontecendo e cheio de bicho estranho.

  • Agora eu sei como chamar aquela onda gigante que aparecia do nada na praia nos meus pesadelos recorrentes da infância. Muito interessante!

      • “De onde será que veio esse sonho???” Sally, tendo como inspiração essa pergunta, será que poderia rolar um “Desfavor Explica: Sonhos” para tentar responder de onde será que veio esse, e todos os outros que nós temos? Eu lembro que você já escreveu não faz muito tempo sobre sonhos lúcidos, mas que tal agora um texto sobre a origem dos sonhos em geral?

      • Pode ser apenas um simbologia de sonho, ou talvez veio do tal inconsciente coletivo (antepassados vieram de outro continente em navios, deviam ouvir muitas histórias naquela época).

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