A escada.

Vitor estava andando de bicicleta, como fazia todo final de tarde após voltar do trabalho. Pretendia se encontrar com seu grupo habitual de ciclistas para um passeio noturno, mas poucos metros após a esquina da rua de casa, encontrou um veículo em alta velocidade furando o sinal vermelho. Sua consciência já estava perdida no meio da parábola que seu corpo fez depois do impacto. Depois disso, apenas uma luz branca.

Luz que perseguiu, ainda confuso. O corpo não doía, muito pelo contrário, nunca se sentira tão bem. As roupas que vestia pareciam borradas, por vezes desaparecendo para mostrar sua pele, por vezes variando entre o macacão que usava na hora do acidente e outras de suas vestimentas prediletas em diversas fases da vida. Aquilo não o assustava, muito pelo contrário. Quando se viu com um pijama de super-herói que adorava na infância, lembrou-se de momentos felizes.

A luz tomava conta de todo seu campo de vista. Ele tinha visões do carro se aproximando em alta velocidade, do sorriso que uma bela colega de trabalho havia dado para ele pouco antes, um jogo que adorava jogar na adolescência, um abraço apertado do avô… era como se o tempo estivesse saltando para frente e para trás a cada passo que dava.

Mesmo sem entender quanto tempo havia passado, eventualmente a luz tornou-se num ambiente gigantesco, aparentemente infinito. Ele podia ver mais pessoas, muito mais pessoas. O local parecia não ter paredes ou teto, tudo se unindo até onde a vista conseguia fazer senso. Milhares, talvez milhões de outras pessoas perambulavam pelo local. As dimensões superlativas permitiam um bom grau de separação entre elas. Algumas se aglomeravam, outras vagavam solitárias.

Ele podia até ver algumas pessoas surgindo como se num passe de mágica. Logo à sua frente, aparece uma idosa de longos cabelos ruivos, usando um chapéu espalhafatoso que complementava o visual típico de filmes de época. Ela olha espantada para ele, mas antes de qualquer menção de contato, ela começa a andar para longe. Muitas pessoas pareciam usar roupas e estilos de tempos passados, algumas pessoas até pareciam vindas do futuro, ou pelo menos de uma convenção de ficção científica.

Ele podia perceber o mesmo efeito das roupas se transformando em outras pessoas. Roupas e corpos: era como se estivessem vagando entre a mais tenra infância até a velhice em cada passo. A cacofonia de incontáveis conversas, gritos, choros e risadas ocupava seus ouvidos. A cena com certeza teria causado perplexidade ou mesmo nervosismo em outra situação, mas dessa vez Vitor encarava tudo com uma surpreendente naturalidade.

É como se entendesse instintivamente o que acontecia ali. Não era algo para se racionalizar, apenas sentir. Não conseguiria explicar para outra pessoa como aquilo era óbvio: o tempo era um ponto de vista, bastava olhar para outro ponto da história. Era como uma memória voltando depois de muito tempo esquecida. Ele observava seu corpo rejuvenescendo e envelhecendo através das mãos quando finalmente é interpelado por uma voz estranha.

Era outra língua, parecia chinês, ou talvez japonês. Mas, curiosamente, ele entendia perfeitamente:

“Recém-chegado?” – um homem borrado entre diversas idades, roupas e expressões está diante dele. Vitor se concentra um pouco e vê todas aquelas possibilidades colapsando num senhor de meia idade, feições orientais, cabelo raspado e uma série de tatuagens impressionantes cobrindo a pele dos braços e abdômen. Usava apenas uma calça jeans, sem sapatos.

“Sim. Estamos mortos?” – Vitor se vê estabilizando na sua última imagem, a do homem que andava de bicicleta antes do acidente.

“Tudo indica que sim. Já te falaram sobre a escada?” – o homem diz sem emoção.

“Escada? Não. Espera, eu te conheço?”

“Aqui todo mundo se conhece, mesmo quem nunca se viu antes. Você vai acabar se acostumando com essa sensação. Você precisa ir até a escada.”

“Onde fica essa escada?” – Vitor olha ao redor, apenas espaço vazio e pessoas.

“Ali.” – o homem aponta para cima, e como se fosse mágica, uma escada gigantesca surge diante de seus olhos. Ela parece ter quilômetros de altura, e muitas pessoas estão subindo.

“E para onde ela vai?”

“Você vai nos ajudar a descobrir. Quer que eu te acompanhe?”

“Eu não estou entendendo muito bem…”

“É normal, quando você estiver no topo, vai entender.”

Vitor começa a andar em direção à escada. Ela é toda branca, assim como o resto do ambiente. A falta de sombras fortes tornava difícil perceber onde estava, apenas as pessoas subindo davam alguma indicação de sua localização. O que chama atenção é que a escada não tem suporte abaixo dos degraus, sobe no ar como se fosse sustentada por mágica.

Diante da escada, ele começa a perceber que na verdade, ela é formada por blocos. Inúmeros blocos. Pode-se perceber pequenas linhas onde eles se encaixam. Ele sente um peso nos braços, e ao olhar para baixo, percebe-se segurando um desses blocos. Todo branco, um cubo de aproximadamente 40 centímetros, liso e brilhante como se fosse plástico, pesando mais ou menos o que se esperaria que fosse caso fosse totalmente sólido.

Não era um peso muito incômodo, mas era desajeitado para segurar. Ele se volta para seu recém-conhecido colega de vida após a morte.

“Deixa eu entender, eu tenho que levar esse bloco até o topo da escada?”

“Sim.”

“Por quê?”

“Não sei. Quando eu cheguei aqui estavam fazendo isso. Ninguém sabe quem começou a construir essa escada, mas todo mundo que chega coloca mais um bloco nela. Quer dizer, quase todo mundo.”

“Tem gente que não faz isso?” – Vitor começa a sentir o peso do bloco ficando um pouco maior.

“Sim. Eu já vi gente ficando presa com esse cubo nas mãos. Parece que ele vai ficando cada vez mais pesado com o passar do tempo. Chega uma hora que você não consegue mais tirar ele do chão.”

“Eu estou sentindo isso…”

“Se alguém não avisar logo, pode ser que ele fique pesado demais até chegar no topo da escada. A cada dia que passa fica mais difícil para os que chegam… não é todo mundo que fica procurando os novatos para explicar essa parte.”

“Poxa, obrigado. Eu… eu não entendi muito bem, mas agradeço que você tenha me procurado logo.”

“Eu não fui uma pessoa boa durante a vida. Espero que o que eu esteja fazendo aqui compense.” – o homem abaixa a cabeça, como se estivesse envergonhado. Vitor percebe sangue nas mãos dele. O sangue surge e desaparece seguidas vezes enquanto seu corpo rejuvenesce e envelhece.

“Então é só levar o bloco até o topo da escada?”

“Isso.”

“Certo. Então eu vou… eu vou subir…”

“Boa sorte, irmão. E lembre-se: quando você colocar o seu bloco, ele tem que estar no ponto mais alto. Senão você não vai poder voltar pra cá.”

“Ok, o mais alto. Obrigado de novo.”

O homem acena com a cabeça.

Vitor começa a subir a escada. Ela é imensamente larga, o suficiente para milhares de pessoas ocuparem seus degraus sem se atrapalhar. Por vezes, ele percebe algumas pessoas paradas na escada, a maioria com expressão desanimada. Muitos parecem presos num degrau, fazendo força para mover um bloco travado no chão.

Ele percebe uma criança tenta carregar um bloco com imensa dificuldade. É uma menina de no máximo uns 8 anos de idade. Ela parece estar no limite de suas capacidades físicas, praticamente rolando o cubo degrau a degrau para cima. Vitor se aproxima e coloca o próprio cubo no chão. Ele coloca as mãos debaixo do cubo que a menina tentava carregar para ajudá-la. Ela olha para ele e sorri. Vitor sorri de volta.

O cubo dela era pesado, mas com sua força era possível levantar do chão. Ele tenta iniciar uma conversa, mas subitamente a menina não está mais lá. Ele olha ao redor e percebe que a menina estava levantando seu cubo com facilidade do chão. Em segundos, a menina se transforma numa mulher adulta. Ela olha de volta para Vitor.

“Desculpa.”

E sai correndo escada acima com o cubo dele. Vitor demora alguns segundos para entender o que está acontecendo, mas logo dispara em busca da ladra. Ela parece ter desaparecido na multidão. Sem qualquer aviso, ele se vê aparecendo em um lugar diferente, cercado por outras pessoas. O cubo está em suas mãos, com o peso que ele lembrava ter quando começou a subir a escada.

Ele ouve um grito feminino estridente vindo dos degraus inferiores. Vitor sorri, feliz pela justiça imposta seja lá por quem estivesse no controle da situação. Segue seu caminho, degrau a degrau. A maioria das pessoas parece compenetrada no esforço de carregar o cubo, algumas poucas almas trocam olhares e reconhecem a presença uns dos outros. Quanto mais ele sobe a escada, menor o número de pessoas conversando. A compenetração na tarefa aumenta a cada passo.

De tempos em tempos ele percebe algumas imperfeições na escada, como um ou outro bloco duplicado, aumentando o tamanho do degrau. A largura da escada começa a variar também. Quanto mais sobe, mais enxerga pessoas aparentemente presas aos seus blocos, a imensa maioria num estado quase catatônico. Ele tenta puxar conversa com um rapaz sentado numa das pilhas de blocos, mas não é sequer reconhecido.

Já perdera totalmente a noção de tempo antes de começar a ver o formato da escada ficar completamente caótico. É possível ver mais e mais pessoas desesperadas por não conseguir carregar o bloco, e construções cada vez menos lógicas dos degraus. Alguns lugares têm apenas uma estreita passagem entre blocos empilhados, o que gera filas e até mesmo algumas brigas por espaço.

Não é mais uma escada na altura que está, é como se fosse uma montanha de blocos sustentados no ar, colocados de forma quase que aleatória, mas sempre subindo. Ninguém mais parece capaz de conversar, ou mesmo se lamentar. O silêncio é a norma. Ele finalmente consegue ver o final da construção. Agora apenas algumas dezenas de pessoas estão a sua frente, o grosso dos peregrinos parece ter ficado pelo caminho. Ele se sente sortudo por ter sido avisado logo que chegou. O peso do seu bloco já está no limite de suas capacidades. Não sente cansaço, não sente dor, apenas a dificuldade de mover a peça.

A escada, ou pelo menos o que começou como uma escada e agora é uma montanha de blocos, termina num precipício. É praticamente impossível discernir as pessoas no chão, são menores que formigas. Ele nunca foi muito corajoso com alturas, mas não sente medo de cair.

Uma mulher acaba de colocar seu bloco no ponto mais alto. Ela desaparece assim que faz aquilo. Um rapaz coloca o bloco que carregava acima dele e também desaparece. Vitor faz um esforço final para colocar a sua, mas logo antes de soltar, ele se lembra do homem que disse para ele subir a escada. Como ele não tinha desaparecido? Como é que ele não estava preso ao seu bloco como todo mundo que viu subindo a escada?

Ele se volta para um homem que estava prestes a colocar seu bloco e pergunta:

“Quem te disse para colocar o bloco aqui?”

“Uma senhora de cabelos ruivos, usava um chapéu bem curioso.”

“Ela te disse algo em especial?”

“Não, apenas que estava me ajudando porque queria redenção dos seus pecados… me desculpa, está muito pesado… depois a gente conversa.”

O homem coloca o bloco no ponto mais alto, e desaparece também. Vitor está no limite da capacidade de carregar o seu, mas algo não fazia sentido. Subitamente, vem uma sensação de compreensão poderosa. A mulher ruiva com o chapéu… ela esteve aqui. O homem oriental também. Não era sobre o destino, era sobre a jornada.

Ele coloca o seu bloco não acima do mais alto, mas ao lado dele. Para onde ele foi depois, as pessoas lá embaixo só podem imaginar.

Para dizer que eu continuei o texto do Minecraft, para dizer que tem certeza que o final não faz sentido, ou mesmo para dizer que esse texto também não chegou a lugar algum: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Por favor perdoe-me se eu estiver enganado, Somir, mas acho que o cerne da mensagem que você quis passar se encontra nessa frase: “Não era sobre o destino, era sobre a jornada.” E esses tais blocos que na sua história vão ficando cada vez mais pesados com o passar do tempo seriam uma metáfora para nossas próprias vidas? Ah, e eu também gostei da forma como você descreveu o que pode vir a ser o “lado de lá” que talvez nós encontremos quando não estivermos mais neste plano…

    • Mesmo se você entendesse algo totalmente diferente do que eu pensei, seria interessante do mesmo jeito. Ficção tem dessas.

      E quando Vitor percebeu que era sobre a jornada, não o destino, ele percebeu que a escada não ia dar em lugar nenhum, e era isso que ele precisava entender. Quanto mais ele teimava contra essa realização, mais pesado o bloco ficava.

      Mas onde colocar o bloco também é um indicador do “teste”: colocar ao lado é totalmente diferente de colocar acima dos outros.

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