A nova rua.

O YouTube lançou até uma página própria para comemorar: os vídeos sobre o jogo Minecraft alcançaram um trilhão de visualizações. Se considerarmos uma média de 5 minutos de atenção por cada uma dessas visualizações, o ser humano já passou quase 10 bilhões de anos vendo esse tipo de conteúdo. O que explica essa popularidade absurda?

Já tem um texto explicando o que é Minecraft, e eu acho que hoje em dia já é pop o suficiente para todo mundo saber que existe. No texto de 2015 eu já falava sobre como o jogo criou o conceito de “youtubilidade”, que definiu o sucesso de vários games desde então. Se o jogo permite criar muito conteúdo em vídeo, criadores pulam na oportunidade e por consequência, vão aumentando a base de jogadores.

Com a marca de um trilhão de visualizações, minha ideia é ir além daquela análise anterior, onde eu explicava que o conceito básico de “fazer o que quiser” era a grande sacada do jogo. Sim, ainda é um dos maiores atrativos, mas desde então o mercado percebeu isso e começou a oferecer milhares de produtos que seguem a mesma ideia. O estilo de liberdade total e mundo modificável já está muito bem definido no mercado de jogos.

Mesmo com a concorrência cada vez maior, as visualizações de vídeos do Minecraft continuam subindo. Segundo o YouTube, até 2018 o jogo tinha alcançado metade da marca, e em pouco mais de 2 anos já tinha dobrado! Minecraft fica mais velho, clones surgem por todos os lados, e a popularidade continua aumentando. Não é algo que se espere do ciclo de vida da maioria dos produtos, especialmente num mercado como o de games. Minecraft é atualizado algumas vezes por anos, mas a ideia básica do jogo é a mesma desde 2009.

E aqui, entra minha teoria: Minecraft é a nova rua. Meus pais me contaram histórias sobra suas infâncias, histórias de total selvageria em comparação com a minha. Voltavam da escola e sumiam no mundo com os amigos da rua. Andavam pela cidade toda, passavam oito, nove horas por dia na rua sem nenhum adulto por perto. E as histórias que eu ouvi dos meus avós? Eram coisas de passar dias fora de casa antes de completar 10 anos. Pegar carona numa carroça e ir para outra cidade, sem plano nenhum de como se virar por lá. Acabavam dormindo em casas aleatórias e comendo o que davam para eles na rua.

Minha experiência com rua foi um pouco mais limitada: tive minhas aventuras quando pequeno, mas com o passar dos anos fui ficando cada vez mais fechado em casa. Saindo para lugares específicos como shoppings com meus amigos. Dos anos 1980 pra frente as crianças começaram a vir para dentro de casa numa velocidade cada vez maior. Não era assim que nossos antepassados viviam. Crianças eram livres para serem animais selvagens pelas ruas das cidades.

Não sei se o mundo ficou mais perigoso ou se todo mundo percebeu os riscos que deixavam os filhos correr, mas o resultado foi o mesmo: quanto mais alta a classe social da criança, menor a chance dela ter esse tipo de liberdade. Já estamos num ponto onde mesmo crianças de classe média baixa de cidades grandes estão vivendo uma vida de isolamento em casa. Claro, temos milhões de opções de distração com a popularização da internet, mas tem um elemento da vida infantil que não tem substituição: a vontade de explorar.

Criança quer ver o mundo, porque quase tudo a deixa impressionada. Durante quase toda a história humana, crianças saciavam esse desejo saindo de casa e indo procurar suas aventuras por aí. O que fazer quando não se pode mais deixar a criança atravessar a porta da casa e procurar seu próprio destino? Bom, Minecraft pode ser uma solução.

Mesmo que muitas dessas crianças nem joguem o jogo, que por si só permite um pouco dessa sensação de exploração e surpresa a cada canto, o simples fato de ser um jogo onde se pode fazer basicamente qualquer coisa com um pouco de imaginação já faz com que vídeos sobre ele tratem um pouco dessa vontade. Para muitas crianças nesse mundo, a rua não é mais uma possibilidade. As cidades são muito grandes e a quantidade enorme de pessoas esmagadas em espaços pequenos reduz o grau de confiança entre as pessoas.

Sim, nossos bisavós e avós podiam ser meio malucos deixando criança sumir no mundo como deixavam, mas em defesa deles, as comunidades eram menores e as pessoas se conheciam muito melhor. Tem uma diferença absurda entre ver um estranho por mês e ver cem estranhos por vez que sai de casa. O conselho de não conversar com estranhos fazia muito sentido quando a criança conhecia quase todo mundo que via na rua, hoje em dia é basicamente a mesma coisa que não conversar com ninguém.

Faz sentido que tantos pais tenham aceitado as soluções digitais para esse problema de curiosidade excessiva de seus filhos. Os vídeos de Minecraft são parte integrante desse processo. E a chegada em um trilhão de visualizações é a prova de como todo mundo parece contente com a solução encontrada. Manda as crianças para o mundo virtual, porque lá o risco é bem menor. Sim, ainda existem muitos predadores online, mas o grau de estrago que eles podem fazer com a criança se ela nunca sair de casa é bem menor.

Minecraft, e é claro, o resto do ambiente virtual no qual essas crianças estão crescendo, nada mais é do que um substituto da rua. A rua que alguns de nós mais velhos conhecemos um pouco, e que provavelmente os leitores mais novos não entendem de verdade. A rua era o lugar onde você não estava protegido, e você se acostumava com essa sensação. A de ser você mesmo e começar a conectar os pontos entre ações e consequências. A gente batia e apanhava na rua. O que é muito diferente de bater e apanhar na escola, no shopping, no clube… a rua não tinha “corte superior” para apelar. Ganhou, ganhou, perdeu… perdeu. No máximo tinha correr pra dentro de casa, mas já adianto que as outras crianças não eram muito clementes para quem trazia adultos para o meio das suas questões.

Aqui eu poderia começar um papo de “as crianças estão ficando moles”, mas isso é verdade há incontáveis gerações. Meus bisavós provavelmente trabalhavam no campo e já tinham vencido doenças mortais sem vacina antes de eu ter aprendido a limpar minha bunda. Minha geração foi uma decepção para a geração anterior nesse sentido, e eu espero que esse ciclo continue: crianças ficam mais moles, mas a média de Q.I. aumenta a cada geração. Eu aceito a troca. O problema é que parecem estar esquecendo que crianças precisam de adversidades para crescer. Excelente que a criança precise de menos agressividade e sorte para sobreviver, mas como estamos lidando com essa parte essencial do desenvolvimento humano que é lidar com problemas e dificuldades?

Não culpo um pai que quer colocar o filho numa bolha de segurança e fazer todas suas vontades. Deixar quem a gente ama feliz é uma das melhores coisas da vida. Essa mentalidade sempre foi muito válida porque a criança sempre tinha a rua. Pode ser a praga mais mimada do mundo em casa, mas a rua vai ensinar a fazer aliados, enfrentar inimigos e prever consequências. A rua acabou para uma boa parcela da humanidade. Mesmo quem não tem acesso à tecnologia já está mais preocupado em deixar a criança solta.

A rua está virando o Minecraft. Que cobre sim a necessidade de exploração e o fogo criativo da mente infantil, mas que não lida muito bem com a questão das adversidades. O YouTube tenta proteger cada vez mais as crianças de vídeos impróprios, qualquer servidor online onde ela esteja vai ter alguma forma de moderação. A experiência de estar por conta própria não vai mais ser conhecida pelas próximas gerações.

E eu acredito que isso já esteja dando frutos: percebem como as relações de rede social se assemelham muito a crianças dedurando umas às outras? A expectativa constante de que alguém veja o que está acontecendo e tome uma providência? A pessoa quer fazer o que ela quiser sem consequências. Quer postar foto sexy no Instagram pesando dez arrobas? Não só pode como tem uma patrulha em tempo integral garantindo que ninguém fale mal do seu peso.

Já temos muitas pessoas na “rua da internet” que cresceram sob a vigilância constante de alguma forma de moderação. Gente que não aprendeu algumas das regras instintivas de autoproteção do ser humano, como se esforçar para fazer aliados, escolher suas batalhas e se expor de forma controlada. Na rua, a gente aprendia isso.

Sim, eu detestava provocar um menino maior e levar porrada, mas o lado positivo era aprender que tinha um limite do que eu podia fazer. E que se eu quisesse fazer as coisas do meu jeito, tinha que subir numa pilha de tijolos e jogar na cabeça de quem era mais forte que eu. Ok, o método era errado, mas a mensagem foi essencial: a sua força tem fim. Se quiser ir além dela, é bom começar a pensar.

E depois de jogar tijolos no menino mais forte, acabamos ficando amigos. Além de desbloquear a conquista “mãe de amigo que sempre faz bolo”, eu ainda aprendi uma lição que serviu para a vida: fazer aliados é a melhor resposta para quase qualquer problema. Eu só aprendi a ficar amigo de meninos mais fortes que eu porque eu passei pelo problema de ter um adversário assim. O problema foi ruim, mas a solução foi uma maravilha na minha vida: nerd que não apanha é nerd que tem amigos maiores que a média. Eu nem sabia quão sortudo era por ser nerd que não apanhava até chegar à vida adulta.

Lição da rua. Lição que o Minecraft vai ter dificuldade de ensinar. Lição que qualquer ambiente virtual vai ter dificuldade de ensinar. Tem coisas que a gente só aprende quando dói de verdade. Talvez estejamos seguindo para um mundo menos brutalizado onde aprender sobre violência física não seja tão essencial assim, mas adversidades são inevitáveis. E é muito difícil esperar que os criadores de ambientes virtuais permitam que essas adversidades existam impunemente em seus ambientes controlados.

Como eu já disse, é natural que pais queiram proteger os filhos de tudo e fazer todas suas vontades. É instintivo querer que tornem todos os ambientes assim para suas crias. Só que isso tem efeitos colaterais: gerações e mais gerações vivendo na base do Rivotril, com imensas dificuldades de formar relacionamentos sólidos e lidar com situações difíceis.

Quando escrevemos aqui que existem vantagens em fazer alguma vista grossa para o bullying, não estamos dizendo que gostamos de ver gente sofrendo, na verdade, queremos que elas desenvolvam algumas ferramentas para se proteger futuramente. E não dá para desenvolver essas ferramentas “de adulto” em ambientes muito controlados. Eu já estou indo longe aqui, mas até mesmo a polarização política com ranço autoritário de esquerda e direita pode ser traçada de volta para pessoas com cada vez menos experiência de rua.

Quem se acostuma a ter supervisão constante e não desenvolve capacidade de formar aliados a partir de inimigos (afinal, são protegidos dos inimigos pela supervisão) não vai estar preparado para os problemas da vida adulta. Pelo menos da vida adulta não virtualizada. Eu sempre argumento que viver em realidade virtual é o futuro justamente porque parece ser muito mais difícil ensinar essas novas gerações como viver “na rua” do que mudar a rua de vez para dentro de um ambiente protegido.

Vai ter cada vez menos gente na rua, na física e na ideológica. A rua das novas gerações parece ser o Minecraft e similares mesmo. Acho muito difícil eles quererem experimentar outra coisa depois de aprender sobre o mundo no ambiente que aprenderam. Não é questão de se preparar para a possibilidade de cada vez mais virtualização, é entender que não tem volta, talvez por muitas e muitas gerações ainda.

E se a história nos ensina algo, é que depois que o humano se acostuma com algo menos perigoso e mais fácil de fazer, não tem mais volta.

Para dizer que percebeu o momento que bateu a motivação, para dizer que ainda não sabe o que é Minecraft, ou mesmo para dizer que o mundo sempre piora: somir@desfavor.com

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Comments (18)

  • Eu acho que o autor do texto nunca conviveu com uma criança na vida…
    Gente que não sai de casa e é viciada em internet e joguinhos é exceção, não regra. Nem mesmo num Japão ou numa Coreia da vida.

  • Esse texto é bem interessante, até porque vejo tais coisas acontecendo com minha filha de 6 anos. Ela é fanática por Minecraft e Roblox, e não perder uma oportunidade para ficar horas e horas nestes jogos (não temos tablet ou videogame em casa por causa da possibilidade de criar uma “pequena viciada”).

    Num primeiro momento eu até tenho vontade de censurá-la, tirar o Roblox do celular de minha esposa ou criar “n” medidas para restringir a tecnologia à disposição de minha “pequetita” – até me lembrar de quantas vezes eu fugi de coletivos, quando não queria sociabilizar com gente chata, ou quando me sentia em situações desconfortáveis ou desagradáveis. Se estivesse na idade dela, provavelmente, faria o mesmo.

  • Que diferença tais cogitações fazem se o mundo pré-2020 “não volta mais”, conforme proclamado aqui quase diariamente?

      • É ironia ou preguiça de pensar? Se a pregação aqui é que “não pode sair de casa”, reflexão sobre os efeitos deletérios de não estar na rua se torna elucubração ou simples mania de criticar.

        • Acho tão bonitinho quando usam palavreado erudito para me impressionar. Agradeço você ter se arrumado para me encontrar!

          Mas, sugiro trabalhar primeiro em compreensão de textos e ideias em geral: o texto não é sobre os anos de pandemia, é sobre um processo que vem se desenvolvendo há muito mais tempo, tanto que o gancho do texto é um jogo lançado em 2009. Não sair de casa por motivos de pandemia é uma questão pontual, não conhecer “a rua” por causa de uma mudança de comportamento humano em larga escala, especialmente nas gerações mais jovens, é um fator de impacto em todas as relações humanas a partir daqui, não por limitação externa, mas por escolhas pessoais se acumulando com o passar das gerações.

    • Pera, deixa eu tentar fazer um exercício interpretativo.
      O que eles proclamam aqui diariamente que o mundo não volta mais ao que era antes de 2020 é em relação à pandemia, organização social, festas e eventos, trabalho, e mesmo estudos.

      Considerando que essa nova geração fica cada vez mais online, não só em função da pandemia, acho que essas cogitações têm sim relevância se a gente considerar a premissa do texto de que minecraft é a nova rua em que as crianças brincam e aprendem sozinhas.

      • Resta saber se tudo isso que as crianças estão aprendendo nos joguinhos vai ter alguma aplicação prática, na vida real…

  • Desista, nerd. Gente que fica o dia inteiro trancada em vez de sair pro mundo vai continuar sendo alvo de zoação pros normies.

    • Quem me dera você estivesse certo. Nunca foi sobre a atividade, sempre foi sobre relações de poder que vão se desenvolvendo, criança sente cheiro de fraqueza e ataca. Não duvido que em uns 50 anos, a criança com amigos ciborgues vai ser sacaneada pelas crianças com amigos holográficos… ou vice-versa.

  • Nunca joguei, só vi uns vídeos de curiosidade, parece mesmo ser um jogo ideal pra crianças. É um brinquedo infinito.

    Mas duvido que a virtualização vá tão longe. A empolgação com Metaverso já aconteceu com Second Life anos atrás. Criança ainda vai ter necessidade de sair pra explorar e brincar na rua, gastar energia. Aqui onde eu moro a rua nunca está vazia, exceto quando chove ou o sol está muito forte. E olha que é uma capital na dita região mais violenta do país, por isso que não se deve ficar muito abalado com essas estatísticas. Só segue a vida.

    • Second Life foi um dos hypes mais falsos da história. A loucura foi gerada por gente que não tinha a menor ideia do que era aquilo e os espertos que conseguiram arrancar dinheiro de otários. Hoje em dia Second Life continua funcionando, mas com um público muito de nicho (vulgo pessoas que fazem os anônimos das chans parecerem pessoas bem resolvidas e estáveis da cabeça).

      Minecraft e as opções de mundo virtual atuais são outros quinhentos: estamos criando crianças com esse universo virtual. Não é febre de momento, é criação.

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