O dodô era uma espécie de ave que habitava a ilha de Maurício, no Oceano Índico. Era. Talvez um dos animais extintos mais famosos de todos os tempos, a ave virou ícone do impacto humano sobre a natureza, mas também ganhou a fama de ser um animal estúpido. Está na hora de corrigir essa injustiça histórica.

As ilhas Maurício são um local bem remoto, o local mais próximo é outra ilha: a de Madagascar, no sul do continente africano. Tão remoto que só se foi criar uma colônia por lá em 1638, apesar de existirem relatos de visitas ao local desde a antiguidade. Os primeiros habitantes fixos (humanos) foram os holandeses, que até 1710 tentaram fazer a ilha se tornar lucrativa, sem sucesso. Os franceses assumiram a partir dali, depois os britânicos tomaram conta, até que em 1968 a ilha se tornou uma república independente.

Mas não é a história humana que realmente deu notoriedade ao local, desde os primeiros desembarques nas ilhas, os marinheiros se depararam com um animal único: o dodô. Uma grande ave que não voava. Existem várias teorias sobre como o nome dodô surgiu, mas a minha preferida é a que vem do holandês “Dodaars”, que significa traseiro gordo. Vou esconder todas as outras porque quero que todo mundo repita essa a partir de hoje. Dodô significa traseiro gordo!

Apesar de muitas ideias iniciais sobre a família a qual a ave pertencia, desde um avestruz pequeno até mesmo uma espécie de galinha, o dodô pertencia à família dos pombos. Desde o primeiro contato com humanos, a característica mais chamativa do animal era sua docilidade. O dodô se aproximava curioso das pessoas, e nada parecia assustá-lo. Alguns relatos antigos até o descreviam como incômodo, por se aproximar dos acampamentos humanos e ficar por lá como se nada.

Diziam até que o animal não tinha conceito de perigo: você podia matar um dodô na frente de vários outros e nenhum tentava fugir. Não era nem que o dodô não se importava com a presença das pessoas, ele ficava muito curioso e buscava o contato ativamente. Para marinheiros esfomeados depois de meses no mar à base de biscoitos e rum aguado, era uma refeição fácil. O dodô não precisa sequer ser caçado: bastava esperar eles virem para o abate e escolher o que parecia mais suculento.

Até por isso, ficou no imaginário popular a ideia de que o dodô foi extinto por ser muito burro. Que todos correram para a morte na mão dos humanos. Essas ideias estão erradas por dois motivos: primeiro que os dodôs não eram burros, e segundo que não foram os humanos que acabaram com eles diretamente. Mas, para explicar isso, vamos falar um pouco sobre a história do dodô na ilha e sobre biogeografia em geral.

Nenhuma espécie descobriu o teleporte, então temos que sempre considerar como um animal chega em qualquer lugar onde é encontrado. Biogeografia é o estudo da distribuição… geográfica… da vida no planeta. Como e por que eles estão onde estão. Como as ilhas Maurício são muito remotas, das duas uma: ou havia uma ponte de terra entre outro lugar já habitado alguns milhões de anos atrás, ou quem quer que chegou lá, chegou voando.

No caso dos dodôs, foi a segunda opção. As ilhas Maurício foram formadas por erupções vulcânicas há uns 10 milhões de anos atrás, então sempre estiveram isoladas de qualquer outro local com vida. A vida vegetal chegou voando também, seja diretamente pelo vento (sementes são leves) ou mais provavelmente pelas aves, únicos animais que conseguiriam chegar até lá com consistência milhões de anos atrás. Com milhões de anos e terra vulcânica fértil, a ilha conseguiu formar uma cobertura vegetal decente, e começou a ficar ainda mais atrativa para as aves que passavam por ela, especialmente para se reproduzir.

Aves adoram ilhas remotas, por motivos óbvios de segurança. Nenhum predador terrestre consegue chegar até lá. Maurício foi e ainda é um berçário de aves, que lentamente foram trazendo vida para o local. O dodô chegou como um pombo, mais do que capaz de cobrir a distância entre Madagascar (ou mesmo o continente africano) e a ilha. A diferença é que o ancestral da ave extinto eventualmente percebeu que era vantajoso ficar por lá mesmo.

E milhões de anos se passaram. O suficiente para começar a alterar a fisiologia daquele pombo até se tornar o dodô. Animais que ficam em ilhas acabam criando estratégias muito próprias de evolução. Existem dois casos muito comuns: nanismo e gigantismo. Ou o animal vai diminuindo para usar os recursos normalmente mais limitados de uma ilha, ou, como no caso do dodô, vai crescendo por um combo de excesso de recursos e nenhum predador.

Ficar maior tem algumas vantagens: se você tiver comida o suficiente e seu tamanho não for um problema para se manter vivo, existe mais eficiência energética e estabilidade num corpo maior. O elefante pode até precisar consumir muito alimento, mas esse muito é proporcionalmente mais eficiente que a quantidade de alimento que um beija-flor precisa, por exemplo. Um beija-flor aumentado para o tamanho de um elefante precisaria de uma usina hidrelétrica de energia para continuar vivo…

Mas estou desviando o foco: voltemos ao dodô. O animal voou para a ilha e resolveu ficar por lá. Não faltava comida. E então o pombo começou a crescer. Cresceu tanto que nem mesmo outras aves tinham qualquer chance de atacá-lo. O dodô começou a evoluir com os seguintes parâmetros evolutivos: comida abundante e ausência total de predadores. Foram milhões de anos com essas condições.

Qual o resultado? Uma ave enorme que não precisava voar e não tinha utilidade nenhuma para qualquer instinto de sobrevivência contra predadores. A natureza acaba jogando fora qualquer coisa que não está usando. Quando o ser humano deu de cara com o dodô, o animal sequer tinha noção que existia algo maior que ele no universo. Nada atacava o dodô, nada atacava o dodô há milhões de gerações.

Será que dá pra chamar o animal de burro? Eu argumento que não. A estratégia evolutiva que funcionou por milhões de anos foi ser curioso e agir sem nenhuma preocupação com a morte. No meio do caminho tinha o maior predador de todos, o único animal terrestre que consegue chegar em qualquer ilha desse mundo. Não tinha como prever a interação com seres humanos porque evolução não prevê porcaria nenhuma.

Se amanhã o oxigênio da Terra desaparecer por mágica, morre todo mundo. O ser humano seria burro por não ter adaptado um sistema alternativo de respiração antes disso? O dodô fez tudo certo e continuou vivendo muito bem por milhões de anos, mas o ambiente mudou. E mudou rápido. De repente, macacos pelados gigantes entraram no seu ambiente perfeito, e eles estavam com fome.

Não se muda o comportamento instintivo de milhões de anos em algumas gerações. O dodô simplesmente não estava aparelhado para enfrentar predadores. Tanto que nem fugia. Uma das crueldades dessa história é que o que chamavam de burrice na verdade era curiosidade: o dodô queria ver as novidades, e não deixava o medo atrapalhar. E eu digo que é crueldade porque foi muito do que transformou o ser humano. Quanto mais eficientes nos tornávamos em viver em sociedade e reduzir os riscos de fome, exposição aos elementos e predadores, mais eram selecionados os indivíduos curiosos. Curiosidade fez com que nos tornássemos animais racionais.

O dodô não foi extinto por ser burro, foi extinto por ser confiante e curioso. Faltou um polegar opositor ali. E falando em polegares opositores, também é importante desmistificar outra ideia: não foi a caça dos humanos que acabou com o dodô. Sim, o ser humano devastou a população local para comer e até mesmo para proteger suas plantações e criações, mas a ilha é relativamente grande e tinha espaço para a espécie sobreviver se só os humanos fossem o problema.

Só que humanos nunca vêm sozinhos. O que realmente definiu o fim da espécie foram os animais que trouxemos juntos nos barcos. Para um animal sem conceito nenhum de predador, até mesmo uma população de ratos pode ser fatal. Mas os humanos trouxeram coisas ainda piores: cachorros e gatos. O ser humano tende a não dar bola para um animal inofensivo, mas outros animais carnívoros, especialmente os que vão se tornando selvagens por abandono (os humanos iam embora da ilha e deixavam ela vazia por décadas), esses não vão perdoar uma espécie assim.

O ser humano deu um golpe violento na população de dodôs, mas foram os animais que colocamos lá que finalizaram o trabalho. Não deu tempo da simpática ave se adaptar a uma ilha que em questão de séculos ficou cheia de predadores. As outras aves ainda tinham o instinto de fuga, o dodô não. Quando o ser humano finalmente começou a pensar em proteger espécies ameaçadas, já era tarde demais. Hoje em dia, temos apenas desenhos e ossos para estudar.

A extinção do dodô pode ter sido o primeiro impacto real que uma extinção teve no imaginário humano. Mesmo que tenha ficado famosa pelos motivos errados (dizendo que o animal sumiu por ser muito burro), é uma das primeiras histórias que a maioria de nós ouve falar quando o assunto é extinção. E nem que seja por dó do “bichinho burro”, é uma forma de percebermos o impacto que temos no mundo. O dodô morreu para nos ensinar que a vida de outros animais acaba, que os recursos não são infinitos. Talvez sua extinção tenha sido útil para evitarmos a nossa.

Talvez.

Para dizer que estou ecochato, para dizer que percebeu o paralelo com o ser humano moderno (sim!), ou mesmo para dizer que seria um excelente animal de estimação (aves só cagam onde querem): somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • Dava pra fazer um texto inteiro, ou até dois, só falando de animais que são mais inteligentes do que o imaginário coletivo pensa.

    Em 2019, registraram porcos usando ferramentas. E também teve a gorila Koko, que aprendeu a se comunicar com humanos em linguagem de sinais, e até adotou um gatinho de estimação.

  • Levando em conta que os recursos são finitos, então se acontecer um grande regresso na humanidade (guerras, meteoros, vagalhões, qualquer coisa), não haveria mais recursos pra voltarmos pra onde paramos e continuar? Medo.

    • Depende de quanto tempo estamos falando. A parte civilizada da humanidade não tem muito mais que 10.000 anos, um piscar de olhos na idade da vida na Terra. Acredito que mesmo diante de um grande regresso, se aguentarmos mais um milênio ou dois vivos, dá pra voltar com tudo.

  • Com os ossos que restaram, a tecnologia e o conhecimento em genética que os cientistas tem hoje (já que já conseguiram clonar animais como ovelhas e gatos), não seria possível recriar os dodôs? Ou por enquanto esse negócio de “ressuscitar” animais extintos com biotecnologia é só ficção de filmes como Jurassic Park?

    • Eu sei que já estão pensando em fazer isso com os mamutes, porque os elefantes são bem próximos geneticamente. Já o dodô pode ser mais complicado, por ser uma espécie muito específica daquela ilha.

      • Mas você viu o valor ridículo que eles pediram? Por alguns milhões mal mal vão começar o projeto. Aquilo me cheira muito mais a golpe que algo sério.

        Ainda mais considerando que vão colocar os mamutes em ambientes climatizados (novamente, cada redoma dessas custaria, ao menos, umas dezenas de milhões) ao invés de um local com clima mais próximo ao que seria o ideal daquela espécie.

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