Piratas modernos.

Você sabia que piratas ainda existem? Quando falamos em piratas muitos pensam no Johnny Depp de tapa olho se portando de forma caricata, mas os piratas modernos são bem diferentes.

Os piratas modernos, ao contrário dos antigos, não costumam roubar pertences dos navios. Sua atuação se baseia em sequestrar navios de cargas, exigindo regates para liberar o navio e sua tripulação. São, basicamente, sequestradores dos mares.

E sua proposta compensa: eles sempre pedem bem menos do que vale o navio e a carga, fazendo com que seja mais negócio pagar o resgate do que perder tudo. E é aí que reside o problema: se a comunidade internacional se unisse e se dispusesse a nunca pagar o resgate, a atividade pirata acabaria, mas, na prática, cerca de 90% dos sequestros efetivados obtém o resgate pedido.

Como vocês podem imaginar, não é algo fácil de fazer, mas, por ser muito lucrativo, em alguns países ser “pirata” é quase uma profissão, é um tipo de bandido comum, como são no Brasil os traficantes. É como uma empresa, recrutam diferentes tipos de funcionários: desde guerrilheiros para fazer as invasões até nerds para interceptar a comunicação dos navios e saber onde eles estão.

E, à medida que eles fazem incursões bem-sucedidas, recebem bilhões em resgates e investem mais no seu “negócio”, sofisticando seu pessoal e aparelhagem e melhorando atuações futuras. Não demora muito até que uma grupo pirata tenha mais tecnologias e armas do que a maioria dos países.

Piratas “novatos” que não tem o capital inicial para começar suas investidas tem inclusive financiadores, que bancam os gastos iniciais (barcos, armas, etc.) em troca de parte do resgate. É um tipo de agiota especializado que tem até nome próprio na Somália: hawaladar. Obviamente eles lucram muito com isso: acabam recuperando quase 10x do valor que investiram nos piratas.

Normalmente os piratas preferem agir em águas internacionais (parte do mar distante do continente, que não pertence a ninguém), onde os navios estão mais vulneráveis, o socorro é mais demorado e o patrulhamento é quase inexistente.

Temos piratas de todas as nacionalidades, mas os maiores “especialistas” são da Somália, um país falido, que já teve 17 guerras civis, sem uma liderança forte, onde jovens não tem muita perspectiva de vida e acabam enveredando para esse caminho. Sua base é na Somália, mas eles costumam atuar em águas internacionais.

Em águas internacionais há um passe livre, ou seja, navios de qualquer nacionalidade podem navegar por ali. Em águas territoriais (parte do mar que pertence a um país) valem as regras que aquele país estipula. No mar da Somália nenhum navio de outro país pode entrar sem autorização prévia. Isso quer dizer que barcos piratas podem partir do mar somaliano para atacar navios em águas internacionais e, se der errado, correr de volta para casa sem que ninguém possa persegui-los até a costa sem ter que pedir autorização e retardar o processo.

O planejamento dos piratas não requer muita estratégia: existem rotas definidas para os navios cargueiros e elas são padronizadas. Se você está dirigindo seu carro por uma estrada e quer mudar de caminho, pode fazê-lo com facilidade, pois a estrada delimita quem pode ir por onde. Mas, quando falamos de navios ou aviões, é preciso reportar isso para as entidades que gerenciam as rotas, até mesmo por questões de segurança, para que não ocorram colisões.

Então, o navio já parte com uma rota definida, o que o torna vulnerável. E, mesmo que um navio queira se desviar da rota ou fazer um trajeto completamente diferente, ele é obrigado a reportar essa mudança por rádio e os piratas mais competentes possuem escutas nas principais frequências/canais de rádio por onde essas informações são passadas. Então, não tem muito como fugir, um bom pirata sabe exatamente por onde um navio vai passar e quando.

Um pirata ralé tenta chegar ao navio com um barquinho. Às vezes consegue. Entra, aponta uma arma e, se conseguir algum dinheiro como pagamento por liberar o navio, vai embora. Raramente piratas se dão ao trabalho de fazer essa incursão arriscada para roubar pertences. Seu lance é sequestro mesmo, de bens ou de pessoas.

Um pirata VIP usa um rebocador que leva várias lanchas pata alto mar, nas proximidades de onde o navio supostamente deve passar e, quando o alvo se aproxima, o rebocador solta as lanchas lotadas de piratas, que invadem o navio e, sendo o caso, usam o rebocador para levar o navio embora depois que ele estiver tomado. Assim, pedem o resgate pelo navio e pela tripulação.

Eventualmente, piratas organizam verdadeiras ações táticas. No sequestro do navio saudita Sirius Star, que, na época era o maior petroleiro do mundo, fizeram uma verdadeira operação de guerra.

O navio levava uma carga de US$ 100 milhões em petróleo e 25 tripulantes. Os piratas se posicionaram a quase mil quilômetros de distância para surpreender o navio – e conseguiram. Renderam o navio com apenas 6 barcos piratas. Eles pediram um resgate de 20 milhões de dólares, muito menos do que valia o barco e seu carregamento.

Normalmente, piratas costumam atacar de noite ou de madrugada, quando a visibilidade é menor e quando há menos pessoas acordadas no navio. Muitas vezes usam cordas com ganchos para subir no navio ou até escadas que eles mesmos levam.

Se forem silenciosos e rápidos, podem subir sem que ninguém perceba. Nem sempre dá certo, mas a taxa de sucesso é bastante alta. Muitos recebem ajuda ou consultoria de pescadores, que ficam de olho nos navios que estão transitando sem levantar suspeitas e repassam informações. Depois dividem o lucro com seus “olheiros”.

Em alguns casos reportados, piratas nem precisaram subir escondidos: se aproximaram com lanchas, colaram vários explosivos no casco do navio e depois avisaram o que fizeram, pedindo que a tripulação dê acesso ao navio, caso contrário explodiriam tudo e o navio afundaria. Rapidamente desce uma escadinha com tapete vermelho para que eles subam.

Em outros fazem um crime duplo: rendem uma embarcação média com a bandeira de algum país para poder se aproximar de navios sem despertar desconfiança e daí pulam para o navio alvo. Seria algo como roubar um carro para assaltar um banco. As táticas são diversas, pensadas por estrategistas competentes: antigos militares combatentes, ex-funcionários das empresas que gerencial os transportes marítimos e quem mais possa ser comprado com muito dinheiro.

Piratas competentes invadem o navio muito bem armados, papo de bazuca, fuzil e granada. É basicamente o traficante carioca no mar, inclusive no layout. Gritam, tocam o terror, apontam armas, e tomam o controle do navio. Não é como se um botão de alarme resolvesse, navios estão a muitos quilômetros de distância da costa, o socorro demora a chegar e muitas vezes não tem o mesmo poderio bélico que os piratas. E, mesmo que o socorro chegue a tempo, não tem muito o que fazer quando tem reféns com armas apontadas para a cabeça.

Na base da intimidação, ameaçam matar os tripulantes e/ou danificar o barco até afundá-lo, situação na qual os tripulantes também poderiam morrer. Normalmente a tripulação não reage, nem teria muita motivação para isso, afinal, está transportando os bens de terceiros, que provavelmente tem seguro. Além disso eles sabem que piratas não tem código de ética e não fazem qualquer cerimônia para matar alguém. Quando a tripulação mostra que vai cooperar, os piratas começam a tratá-los melhor.

No geral, a relação dos piratas com os tripulantes sequestrados é polida, se eles concordarem em cooperar, pois os motivos da ação são meramente patrimoniais. Inclusive reféns bem tratados facilitam a negociação, agem com mais boa vontade e causam menos problemas. Eventualmente, se as negociações demoram, o barco é rebocado e a tripulação é levada para o país dos piratas e mantida em cativeiro.

O litoral da Somália possuí vários points de cativeiros devidamente aparelhados para receber os sequestrados. Alguns dão direito até a marmita ocidental, para que os sequestrados não estranhem a comida. Em outros até disponibilizam prostitutas. Hoje, os piratas não são mais “homens do mar”, muitos nem sabem conduzir um barco. São uma milícia mesmo, com uma grande infraestrutura.

Como as negociações podem durar meses, eles têm que se assegurar de que os reféns sobrevivam. Inclusive em alguns casos, as pessoas valem até mais do que a carga, por exemplo, comandantes experientes ou técnicos que possuem conhecimento avançado.

E nem sempre o dinheiro é pedido à empresa que faz o transporte, muitas vezes o pedido é feito ao país dos sequestrados. Será que algum país vai deixar que um cidadão seja morto por piratas por se recusar a pagar o resgate? Normalmente os países pagam, mas pedem que a situação não seja levada a público, para evitar polêmicas.

Normalmente, é jogo pagar o resgate. Pagar 20 milhões de dólares para recuperar uma carga de 100 milhões de dólares ainda é “menos pior” do que perder tudo (mais o custo do navio, que não é barato). Por isso, uma vez que os piratas conseguem entrar e render a tripulação, o resgate acaba saindo, mesmo que demore.

Atualmente, o resgate vem sendo pedido em drones, que sobrevoam o navio e soltam caixas com o dinheiro, mas, no caso de piratas mais modestos, o resgate é arremessado por helicópteros em sacos ou até colocado em balsas a determinada distância para que eles possam ir buscar. Obviamente, se alguém tentar prendê-los durante o pagamento, eles explodem os reféns e o navio.

Depois que o dinheiro é recebido, ele ainda passa por um processo de conferência. Primeiro a autenticidade das notas, depois, ele é contado em aquelas máquinas que contam notas. Se for falso ou o valor estiver errado, também explodem o navio e os reféns. Se estiver tudo certo, eles organizam uma baita festa de despedida com tudo do bom e do melhor para os reféns e, no dia seguinte, os devolvem.

Como vocês podem imaginar, para ser pirata é necessário algum preparo físico e juventude. Não é qualquer pessoa que consegue escalar um navio, carregar armas ou intimidar reféns. No geral, o pirata moderno não passa dos 30 anos, costuma ficar na faixa etária dos 20 aos 25.

São jovens sem qualquer perspectiva que se deslumbram com a possibilidade de muito dinheiro de forma rápida. Eventualmente, para grandes operações, recrutam profissionais de outras áreas para dar suporte, mas na linha de frente, invadindo os navios, são eles.

E não adianta pedir ajuda à Somália para capturar os criminosos, o país vive em guerra civil, sem uma liderança forte. É mais fácil ajudarem os piratas em troca de dinheiro do que se indisporem com criminosos que tem armamento de guerra. E, mesmo que fossem honestos, não teriam poderia bélico para fazer frente às armas que os criminosos usam.

Você pode estar se perguntando como conseguem esconder um navio petroleiro de tamanho gigante ao sequestrá-lo. É simples: não escondem. É muito difícil “recuperar” um navio, por suas dimensões. Se alguma autoridade tenta se aproximar para capturar os criminosos ou reaver o navio, eles jogam granadas afunda a embarcação com o que tiver dentro, causando muito mais prejuízos e, dependendo da carga, um grande desastre ambiental. Por isso, depois que piratas conseguem dominar um navio, raramente eles são punidos.

A maioria dos ataques acontece nas proximidades da Somália, mas existem outros pontos populares onde piratas costumam atuar, como o mar do Caribe, certas regiões do mar da Arábia e litoral do Peru. Todo mundo sabe que os piratas estão por ali, todo mundo sabe que tem ataques.
Daí você pode perguntar por qual motivo os navios mantém as mesmas rotas se frequentemente são interceptados nelas. Primeiro que o oceano não é terra de ninguém, não se pode fazer o trajeto que quiser de improviso. Segundo que se desviar muito do trajeto padrão, gasta muito mais combustível, demora muito mais tempo e encarece demais o transporte, fazendo com que seus concorrentes vendam o mesmo produto muito mais barato e arruinando seu negócio.

Ainda existem alguns ataques para roubar a carga do navio também, mas estes não são considerados “piratas”. Inclusive os piratas não admitem que se dê esse nome a esses “ladrões de galinha do mar”. São vistos como criminosos ralé, sem ambição e sem planejamento. São chamados apenas de ladrões, não lhes é dado o status de um pirata.

Ataques piratas são frequentes? Depende do que você considera frequente. Há relatos de mais de 200 ataques em um único ano. Se você pensar na infraestrutura que um ataque pirata a um grande navio demanda, é bastante. E se você pensar que cada resgate está na casa dos milhões, dez resgates por ano já seria muito mais do que o PIB de muito país. Sim, pirataria movimenta bilhões pelo mundo.

E, para piorar a situação, com o dinheiro que eles conseguem nos resgates, investem em tecnologia. Atualmente, piratas top de linha tem acesso até a foguetes e armamento pesado de guerra, que são disparados para obrigar o navio a reduzir a velocidade, permitindo que eles se aproximem e entrem sem nem ao menos precisarem ser discretos. Também utilizam drones, rebocadores de última geração e até armas químicas. Estima-se que, atualmente, um sequestro por piratas “profissionais” não dure mais do que 15 minutos.

Pelo tamanho da indústria de piratas, por sua estrutura e por seus recursos é cada vez mais difícil combatê-los. Não é prioridade no mundo neste momento (e com razão) solucionar esse problema, mas, em algum momento vai ser necessário olhar para isso. Até lá os piratas faturam em 15 minutos o que a gente não vai ganhar trabalhando uma vida toda.

Para perguntar onde se inscreve para ser pirata (vá para a Somália), para dizer que deveriam fazer um filme sobre piratas modernos ou ainda para perguntar onde está o Somir: sally@desfavor.com

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Comments (16)

  • Achei o texto incrível!
    Imagino que os navios atacados sejam os “pequenos”-médios cargueiros, pois os grandes devem ter seguranças altamente armados.
    É fácil de imaginar que no futuro os piratas utilizarão Drones para interceptarem os navios e os navios utilização Drones para impedirem os piratas de se aproximarem. Não acho que essa será uma guerra perdida para sempre.

    • Muito legal esse site, Desfavorecido. E, ao entrar lá, a primeira coisa que eu fiz foi conferir isso que você disse sobre a Somália, que fica ali bem no “Chifre da África”. Aquela área do “Continente Negro” é chamada assim porque seu formato no mapa se assemelha ao de um chifre de rinoceronte.

  • “Como vocês podem imaginar, não é algo fácil de fazer, mas, por ser muito lucrativo, em alguns países ser ‘pirata’ é quase uma profissão, é um tipo de bandido comum, como são no Brasil os traficantes. É como uma empresa, recrutam diferentes tipos de funcionários: desde guerrilheiros para fazer as invasões até nerds para interceptar a comunicação dos navios e saber onde eles estão”

    O curioso é que isso se iniciou no século XVII. Os holandeses, logo imitados por franceses e ingleses, criaram as primeiras sociedades anônimas, a Companhia das Índias Orientais (VOC – 1609) e, depois, das Índias Ocidentais (WIC-1621), com esse propósito: levantar fundos para, além de fazer comércio, financiar invasões e interceptar navios da Espanha e de Portugal.

    Dessa forma, seus acionistas, dentre eles até empregadas domésticas, recebiam dividendos dessas atividades. Um dos maiores sucessos da WIC foi a captura da frota de tesouro da Espanha em 1628 no litoral de Cuba. Com apoio de bases na Bahia, capturaram cerca de 90 toneladas de ouro e de prata (praticamente o fluxo anual de riquezas da Espanha), que renderam 50% de dividendos aos acionistas da WIC.

    (já pensou se a milícia carioca ou o PCC passassem a vender ações na Bolsa? Fundos Imobiliários de Milícias…olha, eu compraria hahaha).

    Além disso, os governos viam nos piratas um meio fácil e barato para enfraquecer o inimigo, por perturbar as suas rotas marítimas. No caso, os piratas que trabalhavam para governos eram chamados de corsários e tinham com arcar com os custos relacionados com a manutenção de seus próprios navios, recebendo dos governos uma permissão, chamada de carta de corso ou letter of marquee. A vantagem para os corsários é que, além de ganhar com as pilhagens, não poderiam ser sumariamente executados como os piratas e invariavelmente voltavam a atuar.

  • “Iô-rô-rô e uma garrafa de rum”, Sally! Já sabia a existência dos piratas somalis, mas nem imaginava que o problema fosse desse tamanho. São impressionantes tanto a logística dos ataques quanto a freqüência com que acontecem, bem como a quantidade de dinheiro movimentada. E também é preocupante saber que diversas autoridades do mundo inteiro não tem feito muita coisa a respeito. O “monstro” que estão deixando crescer vai, cedo ou tarde, fazê-los se arrepender dessa omissão toda.

    • É algo muito distante da nossa realidade, pois nós não transportamos fortunas entre continentes, mas acredito que seja um grande problema para quem lida com isso

  • “(…) Para dizer que deveriam fazer um filme sobre piratas modernos”. Já fizeram ao menos um: “Capitão Phillips”, de 2013, dirigido por Paul Greengrass e estrelado pelo Tom Hanks no papel-título. Eu mesmo não vi ainda, mas, depois deste texto, pode ser que eu resolva dar uma olhada.

    • Dadas as críticas (que o real capitão foi muito mais cagão, que o curso dos eventos foi diferentes, etc.), eu fico pé atrás com o filme. Vi, mas achei muito mais um épico de Hollywood que algo baseado em fatos reais (e dada a explosão de críticas, tem motivo).

      • Nenhum filme “baseado em fatos reais” é 100% fiel à realidade. Alguma romantização feita por roteiristas para tornar certos trechos de uma história mais “cinematográficos” é até esperada. Mas tem uns e outros por aí que exageram.

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