Cidade Amazônica.

Há pouco tempo, estourou uma notícia sobre ruínas de uma civilização antiga na Amazônia. Rapidamente, os estagiários dos portais de notícias, os conspiracionistas malucos de redes sociais e todo tipo de golpista pegaram a oportunidade para soltar um monte de desinformação. Mas o que aconteceu de verdade?

Segundo as fontes mais confiáveis, a América foi o último continente a ser descoberto pelos humanos. Não, não estou falando dos europeus, e sim os humanos em geral. A teoria mais aceita é que asiáticos atravessaram pelo estreito de Bering (entre Rússia e Alaska) e foram descendo selva abaixo até colonizar toda a região.

Isso, segundos os registros encontrados, deve ter acontecido entre 12 e 11 mil anos atrás. Perto do resto do mundo, nossos povos nativos são dos mais jovens. Seja por fósseis ou por objetos antigos encontrados, não parece que nada humano mais antigo do isso passou pelo nosso continente.

Grandes civilizações se estabeleceram nas Américas. Desde as grandes tribos onde hoje é os EUA, até mesmo os famosos Astecas e Maias no México e Centro-América atuais. Na América do Sul, sempre consideramos que fora os Incas, mais nenhum povo tinha passado da fase de nomadismo, caçando e coletando.

O povo das florestas tropicais e subtropicais do outro lado da cordilheira sempre foram considerados mais primais. Os europeus não encontraram grandes obras ou sinais de cidades aqui. O que era inclusive a base da teoria que era ensinada em classe de aula no meu tempo de escola: o índio brasileiro era preguiçoso. As “outras crianças” construíam templos enormes, mas as nossas só ficavam na rede.

Mas uma coisa é o que fica no conhecimento comum do povão e outra completamente diferente é o que estudiosos do assunto consideram. Desde o tempo das colônias já se teorizava cidades no meio da floresta, cidades que só os índios sabiam onde estavam entre a espessa vegetação tropical. Muitos dos mitos de cidades douradas é baseado na informação que dentro da mata havia cidades intocadas pelos invasores.

E muita gente tentou achar onde estavam essas cidades. Várias incursões encontraram vestígios de manipulação em larga escala do terreno, mas como a floresta amazônica é literalmente um dos lugares com maior densidade vegetal do mundo, inclusive na imensa altura de suas árvores, era basicamente impossível mapear o que se desconfiava estar lá.

E por mais que os governos de Brasil, Bolívia, Equador e similares não sejam nenhum exemplo de preservação ambiental, simplesmente não dava para desmatar tudo aquilo para confirmar se havia mesmo a fundação de uma cidade no meio das árvores. E mesmo se pudessem desmatar, boa sorte levando o equipamento até lá.

O que muita gente não percebe é que a Amazônia é um labirinto verde que não tem a menor piedade com nossa tecnologia. O que mudou o jogo foi uma análise de um desses locais onde se desconfiava que havia sinais de uma civilização passada com a tecnologia de “Lidar”, um sistema que usar pulsos de laser para medir a topografia de uma região. É feito de cima para baixo com helicópteros e aviões.

Foi o mapa gerado pelo Lidar que deu a comprovação esperada há tanto tempo: tinha sim sinais de grande manipulação humana na região. O sistema permitiu que o solo fosse medido sem tirar as árvores, que depois foram removidas por software para gerar uma imagem.

Mas é aí que precisamos pensar um pouco para não falar bobagem. Sim, são sinais claros de que um povo se estabeleceu naquela região da Amazônia boliviana, e que montou algo bem parecido com uma cidade ali. Mas as semelhanças com os outros grandes povos americanos não vão tão longe assim. A pirâmide no centro não é feita de pedra, e sim de terra. Não tem sistema de irrigação, não tem nenhuma estrutura de pé, até porque obviamente eram feitas de terra e madeira também.

E por que eu disse obviamente?

É uma fuckin’ floresta tropical. Uma das mais terrivelmente fechadas do mundo, ao mesmo tempo um paraíso e um inferno verdes. Você não enxerga dez metros na sua frente a não ser que esteja no meio de um rio. Você passa por troncos gigantes de árvores que batem facilmente vinte metros de altura, cujas raízes sobem e descem pelo solo absolutamente lotado de folhas caídas e todo tipo de inseto e animal peçonhento.

O povo que morava lá, só de abrir uma clareira, já está pau a pau com gente que construiu estátuas de pedra gigante em outros lugares do mundo. Fazer uma fogueira é complicado no meio da Amazônia, quanto mais uma cidade. Os incas fizeram cidades lindas de pedra, mas os incas conseguiam enxergar onde tinha pedra, e mais: eles conseguiam fazer o caminho entre dois pontos com algo maior que uma lança.

Imagine-se no meio da Amazônia: é relativamente plano, não tem visibilidade de nada, fazer uma estrada é virtualmente impossível (o Brasil que o diga com a Transamazônica em pleno no século XX), você não acha sequer a pedra para fazer uma casa de pedra. Vai cavar alguma coisa? Tem mil anos de raízes maiores que uma pessoa debaixo do seu pé. Nem mesmo o povo que desmata hoje começa lá do meio, eles vão cortando pelas beiradas, para ter chão.

Então, eu digo duas coisas aparentemente contraditórias aqui: primeiro que não faz sentido esperar nada muito mais complexo do que um monte de terra no meio da floresta; e segundo que esse papo de índio ser burro ou preguiçoso é desinformação total. Considerando onde eles estavam, algumas camadas de terra em formato de pirâmide é basicamente o Taj Mahal em nível de esforço.

Mas não em nível de complexidade. Por isso, vamos deixar claro que o que foi encontrado na Amazônia boliviana é mesmo o sinal de uma cidade, mas nada fora do esperado para o povo daquela época (pouco antes da chegada dos europeus nas Américas). É um avanço da arqueologia, mas estamos falando de índios esforçados que empilharam terra e fizeram casas mais ou mesmo como sempre fizeram num lugar que não costumava ficar inundando em tempos de muita chuva.

A coisa para mais ou menos aí. Eu só quis estabelecer que para os índios da época foi um feito porque a Amazônia tem esse combo de ônus e bônus: tem comida e água basicamente infinitas o ano todo, mas é um dos, senão o lugar mais difícil do planeta de montar cidades e casas de pedra. Os Incas, Maias e Astecas tinham pedreiras à vista, tinham largas áreas abertas para planejar construções e praticar agricultura, os índios amazônicos “raiz” vivia numa realidade completamente diferente. Trocaram alimentação garantida por urbanização.

Tanto que até hoje a Amazônia é basicamente floresta. As cidades no meio dela são o resultado de séculos de teimosia, e todas ainda dependem demais dos rios para ter algum horizonte. Foi uma descoberta bacana, espero que continuem fuçando mais e mais para sabermos mais sobre a história dessa região além da parte em que os europeus chegaram.

Esse é o tema. É isso que aconteceu. Se você estiver ouvindo um papo sobre uma cidade chamada Rabanada ou algo do tipo, fica um aviso básico pra você: é coisa do Urandir, aquele estelionatário místico famoso pelo ET Bilu. De tempos em tempos ele reaparece com alguma coisa dessas, ganha dinheiro com otários e volta pro seu canto pra bolar o próximo golpe.

Já falamos bastante de Urandir, antes e depois da famosa saga do ET Bilu. Toda a história sobre a cidade antiga mágica na Amazônia é absurda e nenhum de seus pontos vale sequer uma análise. A não ser que essa história piore e acabe no Desfavor da Semana.

AH, MERDA!

Para dizer que a verdade é chata, para dizer que agora que pensou bem os índios não são preguiçosos, ou mesmo para dizer que está rezando para Bilu pra não virar DS também: somir@desfavor.com

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Comments (16)

  • Quando estavamos na faculdade, 30 anos atras, escrevemos um texto sobre os perigos do monóxido de dihidrogênio. Muitos anos depois achei essa brincadeira circulando como se fosse séria. A capacidade do ser humano em acreditar em qualquer coisa poderia ser usada para tanta coisa útil!

  • Às vezes, fico curiosa para saber se os povos antigos – não só os índios – realmente não tinham desenvolvido tecnologias que consideramos avançadas ou se apenas não sobreviveram registros sobre elas, desde que uma amiga historiadora falou que há alguns parcos indícios de que sim, mas nada impressionante o suficiente para sair do âmbito de discussão acadêmica. Por exemplo, alguns cristais comprovadamente lapidados com uma precisão impossível de ser atingida pela tecnologia e pela expertise que temos hoje. Mas não tem muita coisa além disso.
    Eu fico me perguntando se os futuras gerações humanas saberiam sobre até que ponto desenvolvemos nossos computadores e smartphones alguns milênios depois de alguma catástrofe que inviabilizasse coisas como eletricidade, internet e comunicações em massa. Mas isso se a própria civilização sobrevivesse a tanto. Acho que nunca terei uma resposta hahaha. Desde a pandemia, sinto que o que sustenta os avanços tecnológicos que temos hoje é muito frágil.
    Mas a tal Rabanada foi um hoax bem mal feito também. Estavam espalhando que datava de 600 milhões de anos atrás… antes dos dinossauros, da humanidade e da própria Amazônia se formar.

    • Tem algo que o povo que inventa explicações místicas ignora: tinha muita gente inteligente no passado. Muita gente que passou a vida (mesmo que curta) estudando alguma coisa, aperfeiçoando, inventando. Como a informação antes de termos escrita popularizada e foco em educação podia sumir do nada, deve ter muita ideia brilhante que aconteceu muito antes da gente ter registro, foi até aplicada, mas em uma ou duas gerações complicadas, desapareceu. Ou, como você sugeriu: ideias que nunca mais replicamos depois da era da manutenção da informação.

      E para explodir a cabeça: eu já vi estimativas que depois de algumas dezenas de milhões de anos, só arqueólogos esforçados achariam vestígios da humanidade como é hoje, se desaparecêssemos do nada. Não é provável que uma civilização inteligente existiu antes da gente, mas não é totalmente impossível também.

      • Depende de quantos anos. A existência de hominídeos antes de alguns milhões de anos atrás é uma impossibilidade evolutiva. Por conseguinte, uma civilização inteligente – humana – desaparecida há milhões de anos é sim uma impossibilidade.
        A não ser que fossem aliens (sem piada). Ou viajantes do tempo.

  • Nesses vídeos sobre ET Bilu, cidade mágica na Amazônia, vocês também ficam pensando qual é a proporção de pessoas nesses grupos que realmente acreditam nisso e de pessoas que só estão ali fingindo pra conseguir algum dinheiro? Será que a maioria acredita e a minoria é vigarista ou é o contrário? Ou é equilibrado?

  • “Foi os ET que construiu Ratanabá!”

    Não gente, pelo contrário… Enquanto acreditarem nessas coisas (NENHUM periódico revisado em pares? Nenhum currículo, de nenhum pesquisador? Um monte de informação que se contradiz tanto quanto a Bíblia, zero bom senso com conhecimentos básicos?), os ETs não vão sequer falar com a gente…

    Aliás, recomendo o vídeo do Sérgio Sacani (SpaceToday) sobre.

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