Informações órfãs.

No estado americano da Geórgia, até pouco tempo atrás, havia um monumento no mínimo curioso: um grupo de seis enormes blocos de granito com inscrições feitas diretamente na pedra. Em cada uma delas, dez instruções sobre como guiar a humanidade rumo ao futuro. Em cada bloco, a informação se repetia em línguas diferentes. Muita gente chamava esse monumento de misterioso… alguns até de satânico.

E eu disse até pouco tempo atrás porque em julho deste ano, 2022, as autoridades locais desmontaram esse monumento, depois de um atentado explosivo contra um dos blocos. O monumento ficava no meio de uma propriedade rural, longe de qualquer centro populacional, mas argumentaram que não queriam mais ter que se preocupar com gente explodindo coisas.

E até faz sentido, porque há décadas o monumento era ponto focal de várias conspirações sobre illuminati, satanistas e toda coisa que vem nesse pacote de americano conservador maluco. O local onde ele se encontrava era interior de estado do sul dos EUA, é claro que a imensa maioria das pessoas ao redor dele eram cristãs e republicanas, o que é um combo perfeito para esse tipo de conspiração satanista. O povo ia continuar incomodado com aquelas pedras para sempre, e não tinha como convencê-las do contrário.

A imagem do monumento vivia aparecendo em postagens conspiratórias de redes sociais, especialmente por causa do primeiro “mandamento” escrito nelas: “mantenha a população humana abaixo de 500.000.000 em perpétuo equilíbrio com a natureza.” – o que obviamente era conectado com planos da elite em exterminar a maioria da população humana. As pedras guias da Geórgia eram apresentadas como prova incontestável de que havia sim um plano de reduzir a população.

Agora, as pessoas mais atentas podem estar sentindo falta de eu falar sobre a história desse monumento. E essas pessoas estão certas: é bizarro ficar falando sobre o assunto e discutindo planos malignos sem estabelecer quem fez esse monumento, não?

Fiz de propósito. Enquanto eu descrevia o que era o monumento e chamava atenção para uma de suas frases e a reação de tanta gente sobre ela, eu estava te entregando uma informação órfã. Se você não estiver minimamente treinado para lidar com as informações que recebe por aí, é muito fácil cair nessa armadilha. Você começa a pensar sobre as consequências daquele dado sem prestar atenção de onde ele vem.

Essa é uma das formas mais eficientes de empurrar conspirações e manipulações ideológicas. Se eu começasse a te contar a história desse monumento por uma sequência lógica, eu aposto que você não teria sequer considerado o aspecto “mágico” dela. Então, vamos para a história:

Em 1979, um homem usando o pseudônimo de Robert C. Christian entrou em contato com uma empresa que trabalhava com granito pedindo o orçamento para o monumento. Todos os detalhes da versão final estavam no pedido, nos mínimos detalhes. O pessoal da empresa achou papo de doido e deu um orçamento absurdo para ele não encher mais a paciência. O doido topou pagar. A empresa foi lá no terreno indicado e construiu.

Em 1980, o monumento estava pronto. Um deputado americano foi no dia da inauguração cortar a fita e tudo, com plateia de umas 200 pessoas. Como quase tudo nos EUA, acabou sendo monetizado como atração turística, embora não das mais populares. Em 1986, o suposto financiador do projeto escreveu um livro explicando melhor suas sugestões escritas nas pedras.

Se você puxar pela época que o monumento foi construído, vai perceber que naquele tempo o medo de uma guerra nuclear que acabasse com a humanidade estava muito em alta. No final das contas, a ideia das pedras era ser tipo um Stonehenge: algo que durasse milênios e sobrevivesse a praticamente qualquer catástrofe. As informações escritas na pedra eram guias para pessoas do futuro reconstruírem o planeta.

Ninguém tem certeza absoluta de quem era esse tal de Robert C. Christian, mas jornalistas correram atrás dos dados e acharam algumas pessoas que podem ter sido as financiadoras do monumento e autoras do livro. Não há indicação que seja qualquer coisa além de uma pessoa ou grupo de pessoas com dinheiro para pagar pelas pedras (que nem é tanto dinheiro assim) e com uma ideologia de como fazer o mundo funcionar (que não é nem um pouco raro).

Se eu te contasse agora que algumas pessoas achavam que eram inscrições de origem divina ou satânica, você provavelmente não daria tanta bola assim, não? Com a informação de onde esse monumento vinha e a lógica por trás de suas mensagens, volta a ser um monte de pedras no meio do mato. Uma extravagância aleatória no meio dos EUA, como tantas outras.

Essa é a diferença entre uma informação sólida e uma informação órfã. Sua imaginação tem menos o que fazer com algo mais bem explicado. A lógica volta a tomar conta. O que a era da internet nos trouxe é uma possibilidade sem igual na história de disseminar informações órfãs. Foi isso que fez com que as pedras da Geórgia deixassem de ser uma atração turística meio vagabunda em um possível sinal das elites satânicas sobre seus planos malignos!

Pensa comigo: antes das redes sociais, você provavelmente entraria em contato com esse assunto num material escrito por alguém que estudou o monumento. Que sabia a história e por lógica simples colocaria ela ali. Mas com o passar do tempo, a informação ficou mais e mais simplificada, tanto que muita gente ainda usa as pedras da Geórgia como “prova” de que tem algum plano secreto para matar bilhões de pessoas.

E adivinha se isso não explodiu em popularidade ao mesmo tempo que os antivacinas estavam berrando para o mundo que tinha veneno ou chips de controle mental nas vacinas conta a Covid? Não precisa estabelecer nada, basta escrever uma frase como “eles nem escondem que querem te matar”, colocar uma foto do monumento com foco na frase dos 500 milhões e pronto: mais e mais gente começa a ficar desconfiada. Recebeu uma informação toda desconjuntada, não foi pesquisar mais (porque todo mundo que diz que faz sua própria pesquisa não pesquisa porcaria nenhuma) e aceitou toda a bobagem que vinha junto.

A coisa foi ficando tão séria que começaram a atacar o monumento, culminando na explosão que fez com que as autoridades locais decidissem se livrar daquela porcaria de uma vez por todas. E sabe o que eu desconfio? Que considerando que é interior de um estado caipira americano, muito religioso, aproveitaram a chance para eliminar as “palavras do demônio” por tabela. Uma candidata republicana tinha prometido acabar com aquilo por ser satânico pouco tempo antes.

É fascinante como escolher o ângulo pelo qual você passa a informação muda tanto sua recepção. Se você começa falando do extinto monumento da Geórgia pelo seu começo histórico, é só um maluco americano qualquer. Se você começa falando pela mensagem que está na pedra, é algo misterioso que pode ser uma conspiração maligna.

Informação tem fonte antes de ter repercussão. E fonte não é só quem está dizendo, fonte é de onde aquela ideia veio. E ninguém está isento dessa sequência lógica básica: informação vem de algum lugar, é analisada e só depois impacta outras coisas. Mas como o cérebro humano é especialista em completar vazios para formar padrões, se uma informação órfã cai na sua mão, é muito provável que você invente toda uma árvore genealógica para ela.

Se você só vê o monumento de pedra numa foto, isso evoca ideias sobre antiguidade, afinal os monumentos que sobreviveram às eras são justamente os de pedra; evoca também a noção de mistério, porque todos eles vêm com dúvidas sobre como foram feitos, quais seus motivos, etc. E disso para trazer pensamento supersticioso e conspiratório é um pulo.

Antes de pensar “quem fez isso e quando”, é possível que você pense no significado das mensagens já aceitando inconscientemente que são antiquíssimas e misteriosas! Foi um Zé Ruela que mandou uma empresa fazer em 1979. A pessoa que fez as inscrições provavelmente parou para tomar um café entre uma letra e outra e fez piadas com os colegas sobre como aquilo era um desperdício de dinheiro e tempo.

Informação com berço é informação que a racionalidade consegue lidar, informação órfã é um prato cheio para confusão e misticismo. É muito fácil ser enganado com esse tipo de coisa porque é natural querer completar as lacunas, duvido que os conspiradores habituais saibam que estão usando essa estratégia, afinal, todo o sistema de pensamento deles é baseado em preencher o desconhecido com sua imaginação, mas mesmo sem querer, eles são atraídos por esse modelo de compartilhas ideias.

Cheias de buracos. E infelizmente, os políticos e ideólogos de redes sociais aprenderam que isso funciona. Tanto que no mundo todo estamos vendo polarização e acusações de Fake News pipocando por todos os cantos. Talvez nem sejam mentiras deslavadas, e sim informações órfãs passadas entre as pessoas com apenas uma minoria parando para se perguntar o que elas querem dizer de verdade.

Se a gente quisesse ganhar cliques, escreveria um texto curto sobre o monumento, não diria que ele já foi destruído e colocaria algo como “suas origens são um mistério” logo no começo. Povão ia adorar. Você pode acabar com um material desses se for um golpista ou se for um preguiçoso que não verifica fontes e estuda sobre um tema antes de escrever. Se eu fuçar bem no meu histórico de textos, aposto que vai ter várias informações órfãs com conclusões idiotas, por mais que eu tenha me esforçado. É impossível ser perfeito, mas é bem possível tentar o seu melhor quando você sabe que precisa fazer isso para não acabar enganado pelo que se lê ou escuta.

Porque não tem atalho. Informação precisa ter família. Preste atenção em que etapa você está, sempre: fonte, análise ou consequência? Se tudo o que você tem de uma informação é a consequência dela, não é uma informação completa, é uma ideia de outra pessoa tentando infectar sua mente. Espero que você pelo menos confie na pessoa… senão vai acabar pensando, ou pior, fazendo besteira.

Para dizer que eu não expliquei o significado de todas as palavras que usei, para dizer que deveria ter parado na parte divertida, ou mesmo para dizer que eu estou protegendo os reptlianos: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • Ok, agora vocês vão querer ganhar dinheiro escrevendo o Código Des Vinci. Turum tsss.

    Tem uma fuckin’ PIRÂMIDE acima da entrada do túnel da Linha Amarela. Esses aliens!

    Para que procurar monumentos norte-americanos bizarros, se existe o Livro de Mórmon?

  • Sensacional o texto! Se Somir não tivesse usado esse exemplo, eu jamais saberia que tais pedras existiriam (ou existiram ou ainda existem). Só existe UMA coisa pior do que o gringo médio: o gringo médio do “cinturão da Bíblia” ou de qualquer outro desses estados dominados por protestantes fanáticos ou que abriguem suas sedes. Maginem o tanto de coisa que não acontece nessas comunidades de lunáticos e que jamais transpiram para fora de suas bolhas…
    A informação truncada (ou a que chega a certas pessoas pela metade da cadeia de transição – ou do “telefone sem fio”) é terrível. Conheço gente que jura de pé junto (e diz que é confidencial!) que o tal de heleno (aquele) tem armas dentro de maletas enterradas em certos sítios de cidades do interior do estado de SP a serem usadas em caso de colapso da segurança nacional, por ocasião das eleições. E que apenas “certos agentes” muito especiais e selecionados pela sua “fidelidade ao b******** e à ordem democrática” teriam capacidade de acessá-las e manipulá-las de modo a reconstruir a ordem desfeita por supostos (grifo meu) ‘comunistas’ e ‘globalistas’ infiltrados em território nacional”. Agora, quais os dados que permitiram que essa pessoa chegasse a tal conclusão… fica por conta do combo (justamente as etiquetas deste artigo) “conspirações, desinformação e fake news” com que buzinaram na cabeça doente do sujeito.
    Vou parar por aqui. Me senti mal de divulgar esse segredo!

  • “Porque não tem atalho. Informação precisa ter família. Preste atenção em que etapa você está, sempre: fonte, análise ou consequência? Se tudo o que você tem de uma informação é a consequência dela, não é uma informação completa, é uma ideia de outra pessoa tentando infectar sua mente. Espero que você pelo menos confie na pessoa… senão vai acabar pensando, ou pior, fazendo besteira”.

    Excelente, Somir. Me deu até vontade de imprimir várias cópias desse último parágrafo, mandar emoldurar e sair pendurado nas paredes de um monte de redações de portais de notícias, jornais, agências, rádios, TVs e faculdades de comunicação que tem por aí…

    Informação nunca “brota do nada” e sempre carrega consigo intenções. E para se conseguir separar o joio do trigo é preciso observação, investigação, dedução com base em fatos em vez de em suposições e cruzamento de dados de várias fontes sem deixar que preferências ou interesses “contaminem” a pesquisa. Tudo isso dá trabalho e leva tempo, mas TEM que ser feito. Sempre! O problema é que essa é uma tarefa difícil, que exige um nível de bom-senso e uma capacidade intelectual que a muitas pessoas não tem.

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