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Negócio da China.

Negócio da China.

| Somir | | 20 comentários em Negócio da China.

Boa parte do crescimento econômico mundial das últimas décadas pode ser traçado de volta à China: a economia crescendo sem parar por tantos e tantos anos aliada à voracidade com a qual consumia recursos mundiais. O Brasil se aproveitou muito disso, sendo um histórico vendedor de commodities. Mas agora começamos a ver algumas rachaduras no modelo chinês… e isso pode impactar e muito o nosso futuro.

Tempos atrás eu escrevi sobre a crise da Evergrande, a maior construtora chinesa. Na época já tínhamos avisos que algo estava fundamentalmente errado com o mercado chinês, mas com o passar dos meses fomos recebendo mais e mais informações preocupantes.

O que a maioria das pessoas ficou sabendo é que os chineses começaram a construir casas e prédios num volume absurdo, o mercado ficou aquecido, os preços explodiram e acabaram com várias “cidades fantasma”, construções caras demais para o chinês médio comprar. Isso com certeza é um dos fatores, mas o problema vai mais longe…

É parte da cultura chinesa investir em imóveis, o que é bem comum em países muito desiguais, mas tem um extra por lá: você só é considerado uma pessoa de sucesso se tiver um ou mais imóveis próprios. Tem algo de psicológico também, seu valor como cidadão é medido pelas suas posses nesse setor. Então, por mais que muitas construções estejam juntando teias de aranha por ninguém poder comprar, muitas também estão vazias porque eram as economias de cidadãos que não precisavam mesmo de uma segunda ou terceira casa. Muito imóvel “inútil” de quem comprou muito caro e não consegue sequer empatar com a venda.

E agora, o segundo nível do problema chinês: as construtoras foram incentivadas pelo governo a cuspir imóveis sem parar, e um enorme esquema se formou ao redor disso. Para manter a economia com números absurdos de crescimento, o governo chinês fez tudo o que podia para ajudar essa loucura de construção e venda de imóveis a continuar.

Como a China é comunista (em tese), toda a terra pertence ao Estado, que por sua vez “aluga” para a iniciativa privada construir. O Partido Comunista espertamente “fechou os olhos” para qualquer esquema dos governos locais em relação a esse aluguel de terra, deixando governadores e prefeitos fazerem a festa. Estima-se que em muitas províncias, mais da metade da renda vinha desses aluguéis de terra para construtoras.

E as construtoras também recebiam tratamento de vistas grossas: ninguém estava regulando o que eles faziam com o dinheiro. E aí se formou uma pirâmide. A construtora não parava de lançar novos projetos, e os bancos não paravam de financiar quem queria comprar. O problema é que nessa sanha de construir logo, as construtoras começaram a vender tudo na planta, vulgo antes de construir. E foram empurrando pra frente, na expectativa que sempre teria mais dinheiro entrando.

Eventualmente, as construtoras estavam lançando novos projetos com o dinheiro de projetos antigos, sem nenhuma garantia que teriam dinheiro para finalizar as obras já vendidas. E aí, a pandemia acontece. A economia chinesa, assim como todas as outras ao redor do mundo, começa a perder fôlego. E quando seu sistema todo depende de crescimento infinito (vulgo pirâmide), qualquer problema na captação de recursos faz o sistema quebrar.

A Evergrande era o canário na mina. Todas as outras construtoras estavam com o mesmo esquema de funcionamento, e todo o governo (nacional e regional) dependia horrores desse dinheiro. O que começou a acontecer? Calotes. Não só de débitos das construtoras, mas de entregas de construções que estavam sendo pagas. O chinês médio estava pagando por imóvel na planta que estava atrasado há 2, 3 anos… o grau de confiança deles era enorme, mas não resistiu ao tempo.

Nas últimas semanas, começamos a ver algo que era raríssimo na China: protestos. Grupos de compradores que se recusaram a pagar as parcelas de imóveis que não estavam sendo entregues. O Partido Comunista fez o seu habitual mandando gente para dispersar, mas a coisa está grande demais até para eles. Salvo uma ação à lá Praça da Paz Celestial (ah, a ironia), vai ser bem complicado acalmar o povo com essa situação.

E tem mais um problema: o governo chinês inventou a ideia de zero Covid. Veja bem, seria um objetivo nobre… se fosse possível. Via de regra não se almeja zerar o número de casos de qualquer doença que se transmite pelo ar. Seria como lançar um programa de zero gripe. Mas a cúpula do Partido Comunista Chinês cismou com isso. Zerar a Covid. Lockdown ajuda muito a segurar uma explosão de casos, mas não é razoável quando você tem meia dúzia de infectados. A teimosia do governo local de usar o combate à pandemia como ferramenta de propaganda ao invés de questão de saúde pública causou muitos danos à economia. Em tese eu até prefiro errar pra mais cuidado do que pra menos no caso de doença, mas claramente os chineses perderam a mão no “mais”.

Porque tem isso: o Partido Comunista se perde muitas vezes na sanha de fazer propaganda para o povo e para o mundo. Aquela coisa que vimos muito no tempo dos soviéticos: tirar dinheiro do bem-estar do cidadão para fazer pose para os “capitalistas imundos”. Esconde todos os problemas para manter uma imagem de sucesso. País com centenas de milhões passando fome e programa espacial é um bom indicativo dessa mentalidade.

E como esses pontos se conectam? A China conseguiu se manter estável com a mão forte do Partido Comunista, mas também pelo fato de que enquanto está entrando dinheiro e o povo tem esperança de ficar com um pouco dele, todo país costuma ser bem tranquilo. Abrir a economia e deixar a globalização entrar foi uma boa jogada no sentido do dinheiro, mas vai cobrar um preço na obediência do povão.

E o mundo todo pode ser impactado por isso. A visita da líder do Congresso americano à Taiwan semana passada foi uma prova de como as coisas estão ficando azedas por lá: primeiro que a China latiu, latiu, mas não mordeu. Afinal, eles não são loucos de mexer com os EUA dessa forma. Eu já escrevi sobre o potencial militar dos dois países, mas repito: a China não tem a menor chance de enfrentar os EUA e a OTAN. Só uma aliança com a Rússia daria um pouco mais de força para o país asiático, mesmo assim o resultado da guerra todos sabemos: vitória decisiva ocidental, mesmo que demore alguns anos.

Muitos criticaram a provocação americana, mas quanto mais você analisa a China, mais entende que tinha uma função: mostrar para a China que os EUA sabem que não estamos próximos de trocar de país mais poderoso do mundo. Foi uma cutucada na ferida. A economia americana tem vários problemas e bolhas, mas nenhuma tão gigantesca e assustadora como a bolha imobiliária chinesa. O povo chinês está ficando menos dócil. Menos fanático pelo seu governo.

E a parcela da população chinesa que ainda está cegamente influenciada pela propaganda comunista acordou de cabeça quente naquele dia da viagem. Muitos chineses fanáticos pelo Partido Comunista fizeram vídeos chorando de raiva pela China não ter derrubado o avião de Pelosi. Eles tinham certeza que seu país já tinha virado o dono do mundo, que seu exército não tinha medo de ninguém… e numa visita diplomática, os americanos colocaram todos esses chineses em modo de decepção total. Será que a China não é tão forte assim? Será que não tem medo da gente?

Nada acontece à toa nesse mundo. A China está com as pernas bambas, tentando resolver um desastre econômico que ninguém no mundo tem dinheiro pra pagar. Com uma população ficando mais e mais irritada por perder suas economias num esquema de pirâmide imobiliário incentivado pelo governo e perdendo o medo de protestar, começamos a ver as primeiras rachaduras na sustentação do poder vigente.

Quer dizer que eu achei inteligente visitar Taiwan para dar uma pancada no ego dos chineses? Não, nem um pouco. Parece inteligente enfraquecer as bases do Partido Comunista, mas não quando a resposta imediata para uma crise financeira e de imagem está há poucos quilômetros da costa chinesa.

Taiwan, para quem não sabe, é o refúgio do exército e cidadãos contrários ao comunismo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Comunistas e nacionalistas lutaram juntos contra os japoneses, mas no final da guerra os comunistas tinham números maiores e conseguiram tomar o poder. Os nacionalistas se mandaram para Taiwan e fundaram sua própria China. Os dois lados dizem que são a verdadeira China. Como os americanos adoravam criar problemas para qualquer comunista no século passado, ajudaram a ilha a se manter independente.

Através de uma estratégia de confusão diplomática, os EUA mantiveram relações com Taiwan e China Comunista ao mesmo tempo, o resto do mundo fez a mesma manobra. Taiwan se desenvolveu como uma democracia capitalista enquanto a China continental vivia as benesses genocidas de Mao e cia. Taiwan até relaxou com suas pretensões de trazer o lado continental de volta ao seu controle, mas o lado comunista nunca engoliu aquele território livre debaixo do seu nariz. O chinês médio aprendeu desde pequeno que Taiwan é um irmão rebelde que eventualmente vai voltar pra casa.

Trazer Taiwan de volta para a mesma bandeira que a China continental seria um feito histórico para quem quer que esteja no comando do Partido Comunista Chinês. O povo chinês (chinês médio como em brasileiro médio) realmente acredita que é o destino da nação anexar a ilha.

Depois de uma cacetada no ego com a visita de Nancy Pelosi a Taiwan, e com um sistema ameaçado nas suas bases financeiras pelos erros tremendos do Partido Comunista, a chance de uma invasão aumenta a cada dia. Não seria fácil, custaria bilhões de dólares para os chineses, arriscaria o começo de uma guerra contra a OTAN, mas se você estiver pensando apenas no curto prazo, seria uma injeção de patriotismo e objetivo conjunto para o povo chinês que daria uma bela sobrevida ao regime comunista.

Povo tolera perrengue financeiro enquanto tem uma guerra acontecendo. A máquina de propaganda chinesa ia falar que o país estava sendo atacado pelos americanos e que eles precisam se defender. Como eles controlam a mídia, é bem provável que a mensagem se espalhe e funcione, evitando revoltas populares. A guerra seria positiva para manter o poder.

E dos dois lados. Porque do lado americano, uma guerra também não iria mal para juntar um dinheiro e unir o povo. Ao contrário da Ucrânia, no caso de Taiwan já tem promessa explícita dos americanos que ajudariam a proteger o país. Se Biden não quiser ficar ainda mais fraco e odiado pelo povo, deixar Taiwan ser anexada não é uma opção.

O problema aqui é que a China sabe que vai perder no longo prazo. O truque seria começar a guerra, deixar o país pegar fogo por um tempo com o povo do lado do governo, e depois tentar um acordo honroso quando estiver todo mundo cansado de lutar. Nesse meio tempo, as duas maiores economias do mundo ficarão enroscadas numa batalha longa e extremamente custosa, o que quebraria o mercado internacional em poucas semanas.

Eu não acho que a China já está desesperada o suficiente para tentar isso, mas não se enganem, o clima está muito mais propício pra isso do que muita gente se dá conta. A coisa está ficando feia dentro da China e a pirâmide ainda nem acabou de ruir. Eu errei feio quando disse que não fazia sentido a Rússia invadir a Ucrânia, porque não fazer sentido não significa não fazer. Eu mantenho que agora não acho que faz sentido a China invadir Taiwan, mas já sou gato escaldado…

Uma hora a China vai pagar o preço pelos anos de bagunça, corrupção e expectativa irreal de crescimento que usou para chegar aonde está. E do mesmo jeito que ela enriqueceu o mundo crescendo, vai levar o mundo junto numa queda. Espero que apenas financeira, mas sei não… tem uma boa chance de ser algo militar também.

Para dizer que só muda a latitude e longitude, para dizer que vai comprar um carro alemão pra se proteger, ou mesmo para dizer que vamos todos morrer (um dia): somir@desfavor.com


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