Marketing do ódio.

O tema é repetido, mas o foco não: o trailer da nova versão da Pequena Sereia em versão filme pela Disney recebeu uma enxurrada de críticas não só no YouTube como em várias redes sociais. É claro que começou uma discussão sobre racismo, afinal, a nova Ariel é interpretada por uma atriz negra. A jovem apareceu chorando logo depois se dizendo arrasada pelas críticas. Eu fiquei triste por ela, afinal, é justamente quem não tem culpa nenhuma pela polêmica… ela foi usada.

Tema repetido de novo: não vai ser a primeira vez que eu escrevo sobre como acho errado pegar uma jovem e dar quantidade imensa de mídia para ela, foi o que falamos sobre a Greta Thunberg. Mas hoje eu não vou focar na pessoa, embora fique aqui minha empatia pela atriz Halle Bailey. É só uma menina (se tem menos de 30 eu chamo de menino ou menina) que agarrou uma chance incrível na carreira. A reação emocional dela pareceu bem sincera, e totalmente compreensível.

Não só um monte de gente foi cruel sobre a aparência dela, como muita gente racista estava explicitamente batendo nela por causa da sua cor de pele, o que é um nível bem acima de criticar seu visual. A reação de alguns internautas foi tão extrema que teve gente refazendo o trailer com inteligência artificial para fazer Ariel branca novamente. Por mais que eu ache que essa parte de alterar o visual do filme esteja numa área cinza que não necessariamente significa racismo, eu entendo quem enxergou dessa forma.

Toda essa introdução é para dizer que eu não vou morder a isca da polêmica criada intencionalmente sobre o filme. Ir até a menina para dizer que ela era feia, que ela não deveria fazer o filme, que ela não tinha talento e tudo mais é de uma babaquice enorme. A isca que eu quero morder é a da provocação evidente criada pela Disney nesse caso. Isso até poderia ter passado como gente escrota sendo escrota anos atrás, mas hoje em dia eu enxergo as patas sujas do Mickey sobre tudo isso.

A gente disse anos atrás que era uma decisão besta refazer a Pequena Sereia com uma atriz negra porque era duplamente inútil: não funcionaria para capturar a nostalgia pelo original e não adicionaria nada de verdade no campo da representatividade. O papel do negro é refazer as coisas que o branco já fez? Quer merda de princípio é esse? Criem outras histórias, criem outras memórias. Foi o que a Disney fez nos anos 90, quando “renasceu” diante do público com uma série de novos desenhos, alguns de muito sucesso, outros não, mas todos contando histórias diferentes das que já tinham contado antes.

Foi o que sustentou a marca até a era Marvel, onde o dinheiro voltou a fluir com as franquias de maior sucesso do cinema. Não era nada criado do zero, mas eram histórias novas. A Disney vivia de pegar material existente e elevar ele a um nível de qualidade enorme para fisgar novas gerações. Gigantes da indústria não precisam inventar a roda toda vez, o que não falta por aí é história que as pessoas vão gostar, e eu acho até saudável que tenha alguém no topo da pirâmide com dinheiro e poder suficiente para poder fazer coisas de altíssimo nível como o Rei Leão ou mesmo os Vingadores. Pode ser meio besta pra quem já é adulto, mas para criança é maravilhoso, inovador e tudo mais.

Só que o fôlego do novo renascimento com a Marvel começou a não ser mais suficiente. A empresa precisava manter sua gigantesca estrutura funcionando, e não havia material novo o suficiente. Poderiam ter feito como antes e investido em novas marcas para recomeçar o ciclo, mas da metade dos anos 2010 até aqui algo começou a chamar sua atenção: o marketing da polêmica.

“E se ao invés de investir em novas marcas, que pode demorar vários anos para dar frutos, a gente refizesse tudo da forma mais polêmica possível?”

E então, a Disney começou a refazer tudo, mas mais alinhada com as sensibilidades de uma nova era de polarização política. Usa as licenças que já têm, economizando muito dinheiro em direitos autorais, reutiliza atores, diretores e equipe que já sabe que funcionam, não precisa investir tanto assim em apresentar uma nova marca…

Basta dar uma lacradinha aqui e ali que a internet dá conta de chamar o máximo de atenção para seus produtos. Para a Disney, a pessoa que elogia a escolha de uma atriz negra para interpretar uma personagem ruiva e a pessoa que dá um chilique racista servem ao mesmo propósito: divulgação. Custa caro fazer todo mundo saber sobre seus novos produtos, se você conseguir pegar uma parcela mais apaixonada da população para fazer isso por você na internet, em tese você alcança mais gente com menos dinheiro.

E a polêmica tem outra funcionalidade: ela mascara seus problemas técnicos. Filme que já sai de fábrica com uma polêmica sobre raça, gênero ou sexualidade tem a desculpa perfeita para as críticas que vier a receber. “O filme é bom, quem não gosta é o racista misógino conservador, só porque é racista, misógino e conservador. Se você não for uma dessas coisas, não tem do que reclamar.”

Se você acha que escreveram mal uma personagem feminina, tirando dela fragilidades, dúvidas e defeitos, na verdade você não quer ver uma mulher forte na tela. Se você acha estranho fazer um deus da mitologia nórdica ser negro, é porque não quer ver os negros em posição de poder. Se acha que transformar uma personagem em gay aleatoriamente é uma piada, só pode ter algo contra todos os gays. É uma forma bem infantil de ver as coisas, esse absolutismo moral que combinou tão bem com a era das redes sociais.

Nunca presuma estupidez pura numa empresa tão grande. Com certeza tem os ativistas profissionais que inocentemente acham que estão mudando o mundo trocando sexo e cor de personagens de histórias que já foram contadas, mas também tem muita gente que percebeu uma chance de gerar exposição midiática com esse atalho da polêmica. E quem assina os cheques quase sempre está no segundo grupo.

É gente que obviamente sabe que está mandando a menina que vai estrelar a Pequena Sereia para o abatedouro da internet moderna. Eles sabem perfeitamente que dá para relaxar sobre a qualidade do filme e as ferramentas tradicionais de divulgação: o sofrimento da atriz vai virar notícia, e quanto mais gente horrível bater nela melhor! Quanto mais consumirem a saúde mental dela, maior o potencial do filme ser visto por gente o suficiente para sair no lucro. Quando refazem filmes com elenco “diverso”, estão jogando com as regras do jogo moderno: exposição é importante, não importa como ela aconteça e quem sofra no processo.

Claro que é melhor ser a atriz de um filme da Disney do que uma mãe de cinco filhos no meio de uma favela, minha simpatia à moça tem seus limites práticos, mas não deixa de ser uma maldade com ela.

E sim, eu estou mordendo a isca do mesmo jeito, mas essa é uma nota de despedida: estou me aposentando de analisar polêmicas criadas por grandes empresas promovendo diversidade. É uma estratégia de marketing do Século XXI, que eu nem sei se vale a pena no longo prazo, afinal, a Disney está patinando financeiramente num vácuo criativo há alguns anos e não parece ter nenhum produto novo para lançar no mercado. Continuamos quase não vendo histórias novas sobre a cultura de povos não europeus, o que obviamente seria o caminho para a diversidade caso a diversidade fosse um interesse. Parece que agora outros estúdios começaram a perceber o óbvio e arriscar mais nesse sentido.

Eu prefiro ignorar essa estratégia de marketing de ódio como fonte de polêmica por enquanto, acho que a Disney vai se afundar com ela apesar de alguns ganhos momentâneos, mas… o tempo dirá.

Para dizer que as memes compensam tudo, para dizer que até os racistas devem ser contratados da Disney, ou mesmo para dizer que não tem mais 10 anos de idade e quer que todos eles se explodam: somir@desfavor.com

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Comments (18)

  • Mas se o “marketing do ódio” funciona e da lucro pq eles não usariam essa tática? A função do marketing não é essa mesmo ? Quando não funcionar mais é só mudar de tática . Não ?

    • Há controvérsias. Se você colocar o preço da sua Ferrari em 1000 reais, vai vender muito rápido. Quer dizer que foi uma boa estratégia? O que eu argumento é que apostar no marketing do ódio agora pode atrapalhar a empresa no futuro. Para manter os acionistas calmos, eles apelam para polêmica, mas e se a polêmica apodrecer a marca? É vender o jantar para comprar o almoço. Uma hora a conta pode chegar…

      • Javaporco Antifa

        Que o diga o Bradesco, que primeiramente foi incluir lá naquele algoritmo para atendimento (inteligência artificial é MEUZOVO) algumas frases atravessadas pretensamente lacradoras e de quebra ainda fez comercial onde o banco se fazia de benemérito contra o assédio sexual (sendo que o Banco tinha seus próprios problemas com isso no que diz respeito ao pessoal que trabalha lá dentro) e depois foi lá jogar com a ideia lacradora de querer entrar na onda lacradora do “segunda sem carne”, o que fez com que o pessoal do agronegócio ameaçasse uma debandada, sendo que o pessoal das relações públicas teve que ir lá pra tentar apagar o incêndio e no fim a cabeça do diretor de marketing do banco rolou por conta disso.

  • Eu só espero que os estragos para a diversidade verdadeira não sejam permanentes… A ponto das pessoas evitarem traumatizadas conteúdos com características antes exploradas pela lacração.

    Histórias originais e legais com minorias não devem pagar o pato.

  • Quando o filme é ruim ou só mais do mesmo, é preciso inventar alguma outra coisa pra chamar a atenção do público, né? “Falem bem ou falem mal, mas falem de mim”.

    • Javaporco Antifa

      Método Jair Bolsonaro de Marketing.
      Deu certo pro Bolsonaro ser eleito pra presidência. Por que não daria certo pra alavancar “A pequena sereia” entre os hipsters metidos a conscientizados da Geração ZZZZZZZZZZZZ?

  • Falando ainda de “marketing da polêmica” da Disney com mudança de etnia de personagem, teve também o caso da “Fada Azul” no live-action de Pinóquio. Escolheram uma atriz negra com aspecto de guerreira forte e agressiva para viver uma personagem que era branca, loira, delicada e maternal no filme animado de 1940. E, de novo, tanto os que eram contra quanto os que eram a favor de representatividade “morderam a isca” e ficaram debatendo só essas alterações em vez de focar em questões como a da própria qualidade das obras cinematográficas ou a do “Atestado de Crise Criativa” que a Disney passa a cada vez que inventa de refilmar algum de seus clássicos em versão de carne, osso e CGI. Esse novo Pinóquio, no entanto, foi um retumbante fracasso comercial e crítico, apesar do visual deslumbrante e de contar com gente como Robert Zemeckis e Tom Hanks à frente do projeto.

    • Javaporco Antifa

      Eu já achei o live action do Rei Leão (que envolve apenas animais) um tanto quanto forçado, tanto que nem faço questão de acompanhar outros filmes nessa mesma linha.

  • A Disney já está levando paulada dos investidores por isso. Não duvido que mude assim que as ações despencarem ainda mais e perderem lucro

  • Talvez não queiram empoderar de verdade os africanos porque isso mexeria com a dinâmica de exploração e de racismo que até hoje existe. Não estou dizendo que os povos da África são burros e sem iniciativa e que precisam de filmes Disney pra se empoderarem, acredito que deu pra entender…

    • Se você precisa pegar uma história de outra cultura e enfiar uma pessoa negra ali, não é empoderamento. Se fosse ao contrário, se fosse uma história de uma princesa originalmente negra e enfiassem uma ruiva de olhos claros a militância já estaria berrando “apropriação cultural”.

      Empoderamento é exaltar e contar as histórias daquele povo, que de fato são muito interessantes e mereciam seus filmes próprios.

  • Empoderamento numa história que é sobre uma menina que deixou a família e alterou o próprio corpo pra ir atrás de homem.

    Pelo menos na história original o príncipe fica com outra e a sereia morre, é até didático.

    • A sereia abriu mão da voz por causa do príncipe. Empoderada demais, deixou de falar por causa de macho… hahahahahaha

    • Javaporco Antifa

      Empresas como a Disney pegaram de forma oportunista a onda e vendem a imagem de empresas inclusivas, vendendo TOKENISMO como empoderamento.
      E Marketing do Ódio é só mais um dos desdobramentos da Indústria do Factoide.

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