Conforto social.

Como a Copa do Mundo está acontecendo num país onde mulheres não tem direitos básicos e homossexualidade é literalmente crime, o mundo ocidental está lidando com mais um choque cultural. Como é que pode um país com tanto dinheiro como o Catar ainda ter esse tipo de mentalidade?

Aqui a gente poderia começar uma longa análise ideológica/histórica sobre a modernidade pregada pelo mundo ocidental, o impacto das religiões e até mesmo o resultado das colonizações e da cultura europeia sendo espalhada pelo mundo. Poderia, mas eu quero olhar para outro ângulo nessa história: o conforto.

Quando você olha para o Catar, o que você percebe é uma minoria muito confortável de nativos vivendo sobre as costas de uma enorme maioria de imigrantes pobres. 90% da população é composta de gente que foi trazida para lá para fazer os trabalhos que os sheiks e suas famílias e amigos não queriam fazer. Especialmente depois da escolha do país como sede da Copa.

O dinheiro do petróleo que brota por baixo das areias do país é distribuído para um grupo relativamente pequeno de pessoas, de pessoas nascidas lá mesmo, o país tem menos que algumas cidades brasileiras. E essas são as pessoas com algum poder por lá. Mesmo as mulheres – que precisam de permissão de um “dono” para sair na rua – gozam de um padrão de vida com o qual a maioria de nós nem sonha em ter.

E isso nem quer dizer que eu concorde ou não com essa troca de liberdade por conforto, só quer dizer que se você não for um dos coitados trazidos da Índia ou de Bangladesh para se matar debaixo do sol do deserto, boas chances da vida no Catar ser bem mansa. A empresa do dono do país explora petróleo e uma considerável parte dos cidadãos recebe dinheiro por isso sem fazer nada.

É tanto dinheiro que eles podem gastar quase 300 bilhões de dólares refazendo o país por causa de um torneio de futebol. E saber que vai ficar com um monte de elefantes brancos depois disso. Para o Brasil fez falta aqueles bilhões nos estádios inúteis da Copa de 2014, para o Catar está tudo bem: eles iam gastar em bobagem mesmo.

E isso tem muito a ver com a mentalidade vigente no país: não precisa mudar nada, porque quem tem poder para mudar está muito confortável. E aqui a parte mais especulativa: inclusive para muitos gays e bissexuais. Veja bem, se você tem muito dinheiro, sempre tem alguém disposto a fazer o que você quer e manter segredo. É virtualmente impossível que longe do escrutínio público, muito catariano não seja tão muçulmano como brasileiro é cristão. Ou acham que é só aqui que a pessoa vota em candidato que quer proibir o aborto e manda a filha fazer um numa clínica clandestina?

O ser humano vai ser humano. Conservador em público, degenerado no privado. As estruturas de poder no Catar permitem que os privilegiados tenham as vantagens de leis implacáveis para punir os inimigos e a leniência dos amigos para fazer o que quiserem, desde que façam escondidos.

Isso gera conforto. Não só nos homens poderosos, mas nas classes ditas oprimidas que os circundam. Uma mulher que sabe explorar as regras do jogo catariano e tem dinheiro para bancar pode muito bem viver de forma parecida com suas contrapartes ocidentais.

Evidente que não estou dizendo que todo mundo no Catar é cúmplice da opressão e se beneficia disso, estou dizendo que tem um número suficiente de pessoas nessa condição para que nem os bilhões de dólares do petróleo consigam trazer o padrão de direitos humanos dos países ocidentais modernos. Para quê? Com essa ideia de sociedade vem junto muitas coisas desconfortáveis como democracia e culpabilidade.

Todos os países que vivem no padrão arco-íris de inclusão em dado momento foram basicamente teocracias cristãs, muita gente teve que entregar o poder contra a vontade para instaurar Estados democráticos de direito. Ou cortaram cabeças de seus líderes, ou ameaçaram fazer isso. Como a Sally sempre me disse: não existe evolução na zona de conforto.

E como o mundo depende do petróleo de países como o Catar, não é razoável esperar muita pressão para cima deles. No máximo uma lacradinha aqui e ali, mas nada de substancial. O conforto vem até mesmo da relação internacional: um lugar calmo no meio desse barril de pólvora que é o Oriente Médio sempre tem sua utilidade.

Então, mesmo que eu já tenha escrito várias vezes aqui que riqueza e recursos são essenciais para o avanço de uma sociedade, se isso vier de forma muito confortável a lógica não é a mesma. Este texto é sobre o Catar, mas pode ser aplicado a qualquer outro país em situação parecida: desde que haja um nível de conforto básico entre a parcela mais poderosa da população, a tendência é sempre a da inércia cultural.

E isso é fácil de entender: se um candidato a presidente do Brasil disser que para resolver os problemas do país precisamos pagar o dobro de impostos, você não vai gostar, né? Sim, eu sei que aqui tem o “bônus” de saber que vão roubar o dobro, mas mesmo num mundo hipotético onde você soubesse que o dinheiro vai ser utilizado para ajudar os mais pobres… o dobro de impostos? É natural não gostar da ideia de mexer nas coisas se elas parecerem piores no curto prazo.

O Catar não tem motivos para se adaptar ao mundo moderno nessas questões de direitos humanos. Está confortável para quem tem poder lá dentro e o mundo topa fazer vistas grossas. A não ser que os imigrantes comecem a se organizar e criem um enorme caos no país árabe, é virtualmente impossível que mudem suas leis. E mesmo assim, sem apoio externo consistente, é bem provável que os ditadores locais resistam.

Não é à toa que os países ditos de primeiro mundo têm em comum uma classe média muito grande: é gente que unida tem poder, mas que vive desconfortável o suficiente para ficar exigindo mudanças. Não adianta fazer protesto contra o Catar, não adianta lacrar, usar braçadeira de arco-íris, xingar muito na rede social… isso mal adianta em sociedades que tem condições de fazer mudanças, imagine só onde a pessoa supostamente oprimida vive com mais dinheiro que você?

Como eu já disse, não quer dizer que mulheres e gays catarianos não queiram ter mais direitos, é claro que a maioria quer; quer dizer que existe tanto conforto ao redor deles que simplesmente não aparecem oportunidades de mudar as coisas. Talvez essas pessoas nem sintam tanto assim o problema como sentiriam numa sociedade mais moderna.

Eu não fico em cima do muro: sou contra conservadorismo religioso e quero que esses regimes acabem todos, mas não vou ficar me enganando achando que é só questão de ignorância sobre as minhas visões de mundo; essas pessoas vivem em realidades diferentes, e enquanto a realidade não mudar, a ideologia de nada vale.

Nem todo muçulmano vive debaixo das garras do Estado Islâmico, nem todo africano está correndo de guerras civis, nem todo brasileiro está passando fome… tem muita gente relativamente confortável com o estado das coisas no mundo, agora mesmo. Hastear bandeira colorida é um privilégio que poucos têm, é a liberdade de se incomodar com isso.

E não é só uma liberdade que vem de ter dinheiro, é uma liberdade que precisa de “massa crítica” também, precisamos de países com classes medias maiores, maiores o suficiente para terem variações políticas e tempo disponível para ficarem desconfortáveis com coisas diferentes. O Brasil é um exemplo de país com classe média pequena demais para gerar esse tipo de mudança social: a maioria é conservadora demais por medo de perder o pouco que tem, e quando se animam com alguma coisa, é acampar na frente de quartel, cantar hino para pneu e sinalizar com a lanterna do celular para chamar alienígenas para prender o Alexandre de Moraes.

Só coisas que não mexem muito com o status quo. Fetiche autoritário que almeja conservar o mínimo de conforto que já conseguiram. Classe média não tem medo de comunismo à toa: é meio como aquela coisa de dobrar os impostos que eu escrevi alguns parágrafos acima. Tem pouco, não sentem segurança nenhuma que manter o padrão de vida é viável.

Conforto não quer dizer necessariamente o que te deixa feliz, as pessoas entram em zonas de conforto até mesmo em estados depressivos. Conforto é uma ilusão de segurança que faz parte da natureza humana: precisamos disso para não ficar pensando sempre no pior. O Catar tem conforto, o Brasil tem conforto, até mesmo a Índia tem conforto. Não precisa ser algo que você concorde, só precisa dar essa ilusão de estabilidade.

É muito difícil fazer uma mudança na sociedade, e não tem só um fator mágico que permita ou proíba isso, é uma conjunção de fatores que faz com que as pessoas com poder para mudar as coisas se sintam incomodadas. Os catarianos estão rindo dos lacradores ocidentais e suas bandeirinhas coloridas. Eles sabem que a Copa vem e vai, e que nada vai mudar por lá por muitas e muitas décadas.

Para agradecer pela injeção de ânimo, para dizer que eu estou recebendo dinheiro para escrever isso (quem me dera), ou mesmo para dizer que colocava uma burqa fácil fácil pra ter esse dinheiro todo: somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • Já tenho probemas suficientes aqui no Basil para me preocupar com o que acontece no Qatar.
    Sugiro ao resto do mundo seguir no mesmo raciocínio.

  • É o chamado ganho secundário. Opressão sexista se torna irrelevante quando você está coberta de diamantes e não convive com a violência urbana das plebeias de boa parte do mundo.

  • Mulher ocidental olha pra catari e pensa: coitada, tem que se cobrir toda e fazer a vontade do marido.
    Mulher catari olha pra ocidental e pensa: coitada, tem que mostrar o corpo pros machos, trabalha que nem homem ganhando menos que homem e se humilha pra manter casamento.

    Não estou escolhendo lados, é só uma reflexão.
    Ter dinheiro é bom em qualquer país que não esteja em guerra.

  • E desde quando o ocidente tem que ser referência pra tudo? Não se lembram do que acontece quando ocidentais tentam se meter nas outras nações? Cada povo tem seu sistema, nem tudo funciona pra todo mundo. Não é porque as mulheres e meninas muçulmanas não estão rebolando seminuas em público pra virar material de punheta pra macho babão que isso significa que elas estão sofrendo.

  • Por baixo daqueles véus pretos tem roupas, sapatos e joias caríssimas que os maridos pagam. E não é como se todo homem catari fosse um abusador que odeia a esposa e as filhas e as espanca o dia inteiro. Aliás, criminosos tem penas rígidas por lá e o país é muito seguro, o que também contradiz aquele argumento de que tem que construir prisões disneylândias pra reduzir a criminalidade. As mulheres de lá também já podem estudar, trabalhar, participar da política e até se divorciar.
    Sob essas condições, vai militar pelo feminismo pra quê? O que exatamente está faltando pras mulheres do golfo?

    • SIM!
      Se for na lógica dos extremos, no Brasil mesmo com tanta liberdade temos mulheres espancadas e até assassinadas pelos companheiros aos montes.

      Honestamente não vejo muita diferença do Isla pro Pentecostalismo, e esse segundo está bem aqui debaixo do nariz e não vejo ninguém se interessando em salvar mocinhas crentes.

  • Dinheiro compra tudo mesmo. Até o conformismo. E a realidade, essa desgraçada, tá pouco se fudendo pros chiliques dos lacradores inconformados com o modo de funcionar do país da Copa, cuja simples existência eles mesmos ignoravam até uns meses atrás.

    • Não acho que dinheiro realmente compre tudfo. Mas que compra o silêncio e o conformismo de muita gente, lá isso comrpa.

  • Anos atrás, quando foi anunciado que o Qatar foi escolhido pra ser a sede da Copa, muita gente criticou por causa dessa questão dos direitos humanos e teve aquele povinho progressista acusando os críticos de islamofobia. Agora, esse povo está fazendo as mesmas críticas. O mundo dá voltas…

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