Melhor série latina.

O mundo latino consegue produzir boas séries? Sally e Somir concordam que sim, embora a média não seja lá essas coisas. Agora, ao escolher uma como a melhor, apelam para o corporativismo linguístico.

Tema de hoje: qual é a melhor série de origem latina?

SOMIR

Brasileiro esquece, mas é latino sim. O português é derivado do latim e a América Latina é o nome que se dá à nossa parte do mundo. Sendo assim, eu vou escolher uma série latina, uma série brasileira: 1 contra todos. A série começou na Fox (pré-Disney) e continuou sob a batuta da Prime Video, todas as temporadas podem ser vistas no streaming de Jeff Bezos atualmente.

1 contra todos conta a história de Cadu, um pacato cidadão que é preso injustamente por tráfico de drogas. Bônus: com uma quantidade imensa de drogas dentro da casa onde mora com a mulher grávida e um filho. Não é mistério nenhum que ele seja inocente, sabemos disso desde o primeiro capítulo. Mas considerando quanta droga acham em sua casa, também fica difícil discutir com a lógica da polícia. Sabemos que ele é inocente, mas sabemos também que é virtualmente impossível provar isso.

Estou focando nesse ponto porque o roteiro é bom o suficiente para fazer isso valer o tempo todo: não só Cadu chega na cadeia com a pecha de mega traficante internacional, como vira tema preferido da imprensa. O que acontece quando um Zé Ruela todo certinho vai para uma prisão sob a presunção de ser um barão do tráfico?

Bom, essa é a primeira temporada. O estilo da série é bem parecido com Tropa de Elite, aquela visão mais crua e sarcástica da realidade brasileira. A diferença é que vemos o “sistema” em São Paulo ao invés do Rio de Janeiro. Menos fuzis, mais intrigas e política.

Esse é um bom ponto de partida para quem quer ver a série sem nenhum spoiler. A partir daqui eu vou ter que entregar um pouco mais sobre o roteiro e as reviravoltas para poder explicar melhor. Continue por sua conta e risco.

Ok então: tem mais uma série que podemos usar de comparação. E ao dizer o nome dela, você vai entender para que lado ela vai. Para dar o melhor senso de comparação, eu diria que essa série é meio Breaking Bad à lá brasileira. E algo que eu achei ainda melhor, não é uma transformação linear, a personagem principal é ainda mais realista nos altos e baixos de sua sorte e sua visão de mundo.

Não estou dizendo que é melhor que Breaking Bad, mas tem alguns pontos mais bem resolvidos na minha nunca humilde opinião, talvez porque esteja mais próximo da realidade brasileira: todo mundo é um pouco mais “cinza” do que na série americana. Quem está no Brasil normalmente é mais vulnerável à criminalidade, não precisa ser um perdedor zé droguinha para se afundar como se presumia na série estrangeira.

E até mantendo a comparação, 1 contra todos tem aquele misto de tensão e confusão que aumenta exponencialmente aumentando o perigo com uma dose de humor negro “bandalheira”, não é uma série que tenta ser engraçada, mas a situação vai ficando tão caótica que você começa a rir, talvez até de nervoso.

Mais spoilers: a virada da primeira trama para a segunda é excelente, a série consegue se refazer inteira para entrar mais a fundo na questão política, é meio como se Tropa de Elite continuasse a partir do final do segundo filme. Sim, estamos falando de Brasília. A alma da série se mantém, mas os bandidos são de outro nível. Eles conseguem manter a tensão e o absurdo rodando em outro ambiente como se nada. Tinha tudo para dar errado, mas na minha opinião, até eleva o que já foram boas primeiras temporadas.

Do ponto de vista técnico, altíssimo padrão. Desde a fotografia muito bem-feita até mesmo as atuações: só gente que sabe o que está fazendo, você nunca se distrai da história por tosquices técnicas ou atuações horríveis (estou olhando pra você, 3%!), se a série fosse em inglês (ou espanhol) com certeza seria um sucesso internacional. Brasileiros podem sim fazer coisas de alto nível.

E já pisando um pouco no pé da escolha da Sally, 1 contra todos faz tudo isso sem ser pretensiosa e rocambolesca. Tensão e reviravoltas não precisam de bagunça no roteiro, dá pra fazer muito bem com uma trama bem focada, sem ficar jogando coisas aleatórias pra complicar todo de 5 em 5 minutos. 1 contra todos sabe o que está fazendo e te dá confiança que sabe o que está fazendo com o roteiro. Não sei como a Casa de Papel ficou tão famosa, eu estava quase dormindo na metade da primeira temporada… nem tive saco de terminar.

Eu acho espanhol um povo muito chato para fazer filme e série. Dá um pulinho pro lado e os franceses fazem muito melhor tudo o que os espanhóis tentam fazer, igualmente pretensiosos, mas muito mais talentosos na execução. Já o brasileiro achou um jeito de fazer bons filmes e séries na brutalidade e na esculhambação à lá Cidade de Deus e Tropa de Elite, é uma identidade triste por ser realista, mas é uma identidade mesmo assim, algo que o brasileiro sabe projetar numa tela com competência.

1 contra todos é provavelmente a melhor série brasileira que eu já vi, porque pega boas ideias de todos os cantos do mundo e as condensa num formato que é divertido de ver sem tirar (muito) os pés do chão.

Para dizer que a Amazon está me pagando, para dizer que nunca ouviu falar, ou mesmo para dizer que é claro que o elitista compulsivo não ia gostar de algo que as pessoas gostam: somir@desfavor.com

SALLY

Qual é o melhor seriado de origem latina?

La Casa de Papel. Eu tinha muito preconceito com esse seriado, achando que panfletava ideologia de esquerda, mas quando finalmente venci esse preconceito e assisti, vi como é bom.

Se um seriado é capaz de me fazer torcer pelos supostos “bandidos”, como foi o caso de “Dexter”), podem ter certeza de que ele é muito cativante. Dificilmente eu simpatizo com gente que está fazendo merda.

A beleza desse seriado vai muito além da trama central, sempre crimes grandiosos, roubos impossíveis. A construção de cada personagem, os diálogos, a forma como é narrado, são uma aula de roteiro. Muito além das explosões, plot twists ou da constante tensão, a parte humana é muito bem representada.

Não tem bons nem maus. Todo mundo faz cagada. Todo mundo tem incoerências. Todo mundo se engana em algum momento, tendo absoluta certeza de algo e sendo obrigado a repensar isso. É uma lição de como ter certezas é um atalho para se ferrar na vida, sobre como a falta de flexibilidade te afunda.

E olha que eu nutri uma profunda antipatia pela personagem que narra o seriado (Tokio). É bem difícil você gostar de um seriado onde você torce para a mocinha morrer a cada episódio. Mas esse é o ponto: mesmo sendo a narradora, Tokio está longe de ser uma mocinha, ela tem suas coisas boas e suas coisas ruins, como toda pessoa.

Em diversos momentos pensei que a temporada seguinte não valeria a pena. Quando mataram meu personagem favorito, na primeira temporada (não vou dizer quem é para não dar spoiler para quem ainda não viu a série) eu achei que não valia à pena continuar vendo. Quando a trama da Casa da Moeda se esgotou eu pensei a mesma coisa, afinal, dificilmente eles conseguiriam bolar outro assalto tão interessante – mas conseguiram.

Não, o seriado não é panfletário. Os personagens não podem ser vinculados a nenhuma posição política. Cada um deles tem um motivo para ser daquela forma, estar naquele lugar e reagir daquela maneira – e tudo é mostrado no seriado. Não tem absolutamente nada a ver com política, ideologia ou partido.

Na verdade, eles não se encaixam em nenhum rótulo além de seres humanos, com seus defeitos e suas virtudes. E os atores são muito bons, bons naquele nível de você não conseguir imaginar aquela pessoa sem estar no personagem, aquele tipo de ator que apanha quando vai na padaria pois a pessoa não consegue compreender que ele não é um vilão.

Eu já vi gente criticando “La Casa de Papel” dizendo que é muita mentira junta. Sim, tem alguns planos espetaculares, mas tudo que está ali seria possível tecnicamente. Foram contratados especialistas em diferentes áreas (novamente, não entro em detalhes para não dar spoiler) para assegurar que não fossem filmadas coisas impossíveis. Com recursos, perícia e um pouco de sorte tudo que você verá é executável.

Os personagens também seguem a mesma linha, são pessoas que poderiam ser reais. Não é como um James Bond da vida, são pessoas possíveis, o que é um baita mérito se pensarmos que o seriado foi escrito do outro lado do mundo. Os roteiristas souberam pescar características humanas universais, com as quais diferentes culturas se identificam, sem criar estereótipos nem clichês.

Outro ponto alto é o cuidado com a identidade visual do seriado. A forma como trabalham as cores, os cenários, a iluminação e até a música são sensacionais. Além disso, o timing do seriado é muito bom, tem sempre algo acontecendo, tensão, emoção, reviravoltas. Quando você acha que consegue prever algo, é surpreendido.

Ajudou ser falado no meu idioma materno, o espanhol. Suponho que muita coisa se perca na tradução. Mas, na real, a maioria dos seriados bons são falados em outro idioma que não o português, então, idioma não pode ser uma barreira para brasileiro escolher seriado. Ainda pode ser uma boa oportunidade para você aprender um pouco de espanhol.

E não é apenas a minha opinião. A série foi muito premiada, chegando a conquistar até um Emmy Internacional de melhor série e é uma das mais vistas na Netflix. Os anti-heróis caíram no gosto do povo de vários países, inclusive do Brasil, onde o povo até se fantasiou deles no carnaval. Sim, meus queridos, La Casa de Papel uniu esquerda e direita, ambos acham o máximo o seriado.

Não assista esperando nada profundo ou filosófico: ainda é um seriado tiro/porrada/bomba, porém com um roteiro muito bem construído que certamente será capaz de te surpreender em algum momento. Não tem nada de político: o que os personagens fazem, fariam se fosse a esquerda ou a direita no poder, eles não o fazem por uma ideologia e sim por interesses próprios.

E o final, meus queridos, o final entrega tudo. Não posso me aprofundar para não dar spoiler, mas o final diz muito sobre a sociedade atual e pode te fazer refletir.

“La Casa de Papel” é entretenimento puro: muita ação, romance e violência, além de ser uma aula sobre o ser humano. Impossível não se identificar com cada um de seus personagens em algum momento do seriado, o que nos mostra que, independente de cultura, travamos todos as mesmas batalhas internas.

Para dizer que não gostou, para dizer que não viu nada disso que eu narrei ou ainda para dizer que meu personagem favorito vai ganhar um seriado próprio em 2023: sally@desfavor.com

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Comments (12)

    • “Destoa de qualquer produção nacional.” Porque, apesar de ter alguns rostos conhecidos no elenco, não tem aquela “cara” pasteurizada de novela global, conta histórias mais densas e as atuações mais orgânicas transmitem mais veracidade às narrativas, certo?

  • Voto em La Casa de Papel so pq eu ja assisti tudo (mas vou dar uma conferida em 1 contra todos). A série, de maneira geral, é muito boa, mas infelizmente, na minha opinião, foi perdendo o folego a partir da 4 temporada. Não que isso comprometa a obra inteira, mas a dona Netflix esticou o enredo alem da conta e colocou umas coisas mirabolantes ali que não me desceram. Mas apesar disso, eu assistiria a série outra vez.

    • Esse é o mal de muita série de sucesso: tentando manter a popularidade, às vezes forçam a barra esticando demais a história.

  • Assisti a primeira temporada de La Casa de Papel e adorei. Comecei a assistir a segunda temporada e meio que perdeu o sentido para mim. Se me lembro bem meteram um sequestro no meio que eu achei muito nada haver com a serie. Ela continua melhorando da segunda temporada em diante?

  • Fico com a Sally nessa! É uma série que as vezes pode vir a dar sono porque o desenvolvimento é lento, as coisas acontecem devagar, e os episódios soa longos. Mas quando acontecem também, olha… E a fotografia e trilha sonora são sensacionais.

  • Adendo: gosto das séries espanhóis de terror. Todas que assisti só tem 1 temporada pois deixam claro que não tem como vencer uma entidade com no mínimo séculos de existência, todos os “mocinhos” ali vão perder.

  • Antes de mais nada, é interessante notar que só os tocadores de castanhola têm apresentado certo empenho em se mostrar pro mundo por meio de suas séries e desmanchar aquela coisa sacal e clássica de “Gaudi”, “Dalí”, “3 tenores”, “Barcelona” e outros chavões nos quais todo mundo pensa quando se diz “Espanha”. E não são coisas ruins não, viu? As histórias até talvez sejam meio “nhé”, mas a produção é muito boa (e.g., “Vis a vis” e até a própria “La casa de papel”). Os bacalhoeiros presos na Idade Média, por sua vez, até agora não nos presentearam com nada; aliás, a impressão que dá é que Espanha está anos luz à frente de Portugal em tudo (filmes, videogames – acompanho muito isso, música, estilo de vida em geral), o que me faz crer que é cada vez mais certa aquela frase “Portuguese is Spanish badly spoken”, em vez de ser o contrário.

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