Possível aborto?

Sally e Somir são favoráveis ao direito do aborto. Isso não está em discussão aqui. Só que na hora de discutir os resultados práticos da liberação dele, a discordância nasce. Os impopulares colocam suas ideias no mundo.

Tema de hoje: o Brasil está pronto para liberar o aborto?

SOMIR

Não. Eu sei que é estranho já ter escrito tantas vezes sobre como aborto é questão de saúde pública e é aberrante que uma sociedade como a brasileira não permita esse direito reprodutivo básico e responder que o país não está pronto para isso, mas a gente tem que olhar para o povo onde a lei vai ser aplicada.

E é aqui que eu percebo o problema: a mentalidade de uma população ignorante e envenenada por religião não é condizente com liberdades do tipo. Não vou discutir que em tese faz muito sentido, porque eu acredito que seja um direito básico que está sendo negado, estou apenas dizendo que quando se faz algo antes da hora, existe o risco de não durar, e pior, demorar ainda mais para ser aplicado de verdade.

Liberar o aborto no país das igrejas evangélicas se espalhando feito um câncer é pedir por uma onda conservadora ainda mais escrota e algo muito próximo de uma teocracia no futuro próximo. As coisas não acontecem à toa: aborto é uma questão tão importante para conservadores religiosos porque é uma mistura perfeita de “causa emocional” e “patrulha de sexualidade”, um combo irresistível para qualquer religião monoteística moderna.

A pessoa acredita que está lutando por bebês indefesos e ainda de bônus pode gerenciar a vida sexual dos outros! É o sonho realizado. Qualquer bandido religioso pode animar suas ovelhas com esse inimigo imaginário. O pastor da igreja da esquina, levemente alfabetizado, sabe exatamente o que dizer para inflar os ânimos de quem estiver o ouvindo. É fácil assim.

Se nesse momento da história brasileira dermos esse tipo de munição para a máfia que tomou conta das denominações evangélicas, estamos pedindo para ter uma reação virulenta de boa parte desse povo ignorante. E como esse povo tem o suporte de políticos, e em cada vez maior número, essa reação provavelmente vai gerar uma revisão da liberação do aborto.

Tem hora para fazer as coisas, e a hora não é a de gerar uma causa perfeita para a corja que está usando os evangélicos para consolidar seu poder. Sim, eu vivo batendo em religião, mas não tenho raiva da senhorinha que vai berrar na igreja (não gosto de ouvir os berros, mas sei que ela não é um monstro, só uma pessoa muito simples cooptada pelo truque mais velho da humanidade), tenho problema mesmo com as pessoas que estão transformando essa fé de desesperados em dinheiro e poder.

E com meu otimismo incorrigível, acredito que até mesmo essa fase dos evangélicos vai passar: Bolsonaro é um exemplo disso. Tem muita gente tosca sendo alçada à condição de herói do movimento, isso vai minando a força deles com o passar dos anos. A força da máfia religiosa é alçar o tosco à condição de poder (facilmente controlável), mas é sua fraqueza também (ele invariavelmente é incompetente). Se a gente tiver um pouco de paciência, eles vão perdendo a condição de salvadores da pátria e criando novas gerações de céticos (não em relação ao amigo imaginário, mas aos seus líderes) que vão reduzindo o poder da religião na sociedade.

Estamos num momento de desânimo no projeto de poder evangélico, não faz o menor sentido dar a eles a arma ideal para unir o povão ignorante de volta. Libera o aborto hoje e em 2026 o Bolsonaro vai ser fichinha perto do que eles vão colocar no poder. E aí, uma das primeiras ações da turba ignorante vai ser retirar esse direito de todo mundo e colocar uma pedra sobre o assunto pelo máximo de tempo possível.

É um trabalho de formiguinha, tem que ir desanimando a base reacionária do Brasil, até porque ela não é tão séria assim. É o povo que se diz muito cristão, mas bate na mulher e estupra a filha. Eles precisam de ânimo constante para se manter nessa toada, se a gente conseguir erodir a empolgação ano após ano, o povo volta a colocar sua energia em outras coisas estúpidas. O Brasil dos anos 90, por incrível que pareça, era mais viável para a liberação do aborto que o dos anos 2020. A energia estava no futebol, no carnaval… agora tem muita energia concentrada na religião.

Precisamos navegar por essa tempestade sem chacoalhar o barco. Tudo passa. A onda conservadora religiosa vai passar. E não ajuda em nada que o Lula tenha sido eleito: com quase metade do país puta da vida com sua eleição, qualquer coisa que ele decidir vai ser contestada. Se liberar o aborto hoje, você vai ter os religiosos enlouquecidos e provavelmente o apoio de muitos antipetistas que provavelmente tolerariam a medida em outra situação.

O Brasil precisa se curar primeiro. Com a ferida aberta, uma medida óbvia e humana como liberação do aborto faria bem por alguns meses, no máximo anos, e depois seria esmagada por uma reação histérica de boa parte da população. E sabe-se lá o que poderia vir junto nessa nova onda de estupidez reacionária. Democracia é um jogo difícil, tem que saber a hora de agir. Se eu tivesse esperanças de um excelente governo petista, até diria que em uns 5 ou 6 anos o país estaria pronto para tentar, mas se eles cagarem a economia mesmo, a coisa pode ficar ainda mais complicada por vários e vários anos.

Os malucos, os ignorantes e principalmente, os bandidos que estão guiando o movimento evangélico populista atual estão só esperando um erro de cálculo desses para recuperar toda a força perdida pelo fracasso do bolsonarismo. Eu queria viver no Brasil que pode liberar o aborto, mas não vivo.

Pode demorar muito tempo ainda. O melhor que se faz é usar o poder do STF para manter as mínimas garantias atuais e torcer para vir algo diferente do petismo nos próximos governos, para gerar um período mínimo de estabilidade e recuperar a força da política mais “tradicional”. Aí quem sabe em alguns anos esse tema não seja mais possível e Sally e eu concordemos que é hora de finalmente liberar essa porra de direito básico que inacreditavelmente é tolhido em pleno século XXI. O mundo não é como queremos que seja, o mundo é como ele é.

Não alimente o monstro. Ainda não é a hora.

Para me chamar de conservador, para dizer que eu consigo ser do contra todo mundo ao mesmo tempo, ou mesmo para dizer que são as pessoas que seriam abortadas que são contra o aborto: somir@desfavor.com

SALLY

O Brasil está pronto para liberar o aborto?

Sim, por um motivo muito simples: é algo que não requer o menor preparo.

O que sempre determinou a forma como o ser humano lida com natalidade foi a realidade social da época. Quando se precisava de muita mão de obra, em locais pouco populados ou em períodos de guerra onde morria muita gente, ter filhos era incentivado e controle de natalidade era proibido. Hoje, vivemos em um planeta superpopuloso, correndo o risco de ver recursos essenciais exauridos e, ainda assim, tem pirraça com controle de natalidade. Não faz o menor sentido.

Não faz o menor sentido para o bem-estar coletivo. Para alguns grupos faz todo o sentido: quando mais gente, quando mais massa de manobra para pagar dízimo, votar em político bosta em troca de uns trocados e para consumir compulsivamente, melhor. Quem se beneficiam disso curiosamente parece querer demonizar o aborto ou o controle de natalidade: políticos, religiões, etc.

Neste momento, o Brasil está prontíssimo para liberar o aborto. Além do excesso de pessoas, vamos combinar, a maior parte dos brasileiros não tem o preparo emocional, tempo e condições financeiras para criar uma criança. Todo santo dia vemos notícias de criança espancada, estuprada, negligenciada e sacaneada na própria casa. Deve ser terrível a vida de uma criança indesejada nas mãos de pais sem qualquer condição de ter filhos.

Quando se fala em liberar aborto, a proposta não é usar aborto como método anticoncepcional. E qualquer mulher que já tenha feito um aborto pode te confirmar que nenhuma mulher quer passar por isso mais de uma vez e que faria tudo que pudesse para não ter que passar por isso mais de uma vez. Então, se o medo de alguém é que se use aborto como método anticoncepcional, pode ficar tranquilos, pois é muito mais doloroso, traumático e incapacitante do que tomar uma pílula anticoncepcional.

Em vez de usar recursos e tempo do SUS para fazer cromoterapia, reiki, constelação familiar e outras bostas sem qualquer eficácia, poderiam usar para aborto. Já vi pessoas falando “não vou pagar com meus impostos a falta de cuidado com métodos anticoncepcionais”. Bom, é isso ou você paga com os seus impostos o Bolsa-Família, Bolsa-Escola, Bolsa-Caralho-a-Quatro por décadas para o resultado dessa falta de cuidado com métodos anticoncepcionais. Fica mais barato pagar o aborto, viu?

Pouco me importa convicções pessoais (não gosta? Não faça) ou religiosas (atraso de vida Estado gerir o cidadão com base em religião). É uma questão de saúde pública, pensando no bem-estar da coletividade, não nos seus sentimentos, nos seus achismos ou no caso isolado A ou B.

Vai ter quem use “errado”? Eu sinceramente não sei o que seria um uso “errado”, uma vez que a escolha é individual, mas eu posso te garantir que tem muita gente fazendo uso “errado” de diversos procedimento médicos e cirúrgicos e nem por isso eles são proibidos.

Vai “tirar uma vida”? Não aos olhos da lei. Pela lei, uma pessoa com morte cerebral não tem mais vida (tanto é que ela pode ser cortada e seus órgãos removidos para doação), portanto, quem não tem cérebro, não tem vida. Um amontoado de células em formação, que ainda não criou um cérebro, não é vida aos olhos da lei.

“Mas eu discordo”. Felizmente, políticas de saúde pública não são criadas com base no achismo individual de cada um e sim tendo a ciência como balizador. Discorde o quanto quiser, mas tenha a decência de saber que a sua opinião é tão importante para nortear políticas de saúde pública.

Qual é o grande temor em liberar aborto? Seja lá qual for, é possível estabelecer regras para sua execução de forma segura, sem que isso implique em proibição do procedimento. Acha que uma mulher vai fazer muitos abortos por ano colocando em risco a própria saúde? Beleza, quantos ela pode fazer em segurança? A ciência responde e se cria uma regra limitando o número de abortos em prol da saúde da mulher.

Vai ter gente obrigada a fazer aborto? Beleza, se cria uma regra de entrevista com psicólogo ou o que for antes do procedimento, para assegurar que a pessoa vai tomar uma decisão consciente e independente. Não importa qual seja o entrave, proibir por completo não é a solução.

Olhem para a situação das crianças no Brasil. Não para a sua bolha, as para os dados da ONU e da UNICEF. Pelo menos metade não tem acesso ao básico do básico, como alimentação adequada, saneamento ou cuidados de saúde. Não dá para fechar os olhos para isso, a maior parte dos brasileiros não tem condições (emocionais, sociais ou financeiras) de criar um filho de forma decente.

Qualquer dano colateral que liberar o aborto traga será menos nocivo do que metade das crianças do país morrendo por espancamento, estupro, fome, falta de atenção médica, falta de vacina, falta de saneamento básico, falta de tudo. O pior dano está acontecendo agora.

E além das que morrem, tem as que ficam vivas, em ambiente hostil, com severas deficiências alimentares, cognitivas e emocionais. Estas serão jogadas aos leões em um mercado de trabalho no qual não poderão competir por igual. E isso continuará acontecendo, geração após geração.

Repito: por mais que liberar o aborto possa causar danos colaterais, podem ser criados mecanismos para tentar controlar ou minimizá-los. Agora me diga que porra de mecanismo nos ajuda a controlar ou minimizar a quantidade de criança escrotizada, maltratada, desrespeitada, humilhada e agredida que existe hoje no Brasil?

Percebem que, em todo o texto, eu não citei o direito das mulheres uma única vez? Acredito de coração que liberar aborto é no melhor interesse das crianças, uma questão que torna inútil discutir ou apontar direito da mulher. Nenhuma criança merece nascer e crescer em um lar em que seus pais foram obrigados a tê-la, sem condições mínimas de dignidade, sem criação apropriada.

“Quer dizer que se os seus pais não quisessem você, você preferia não ter nascido?”. SIM. Que tipo de pessoa se acha tão importante para o mundo que prefere viver uma vida de maus-tratos e privações só para estar aqui? Que tipo de pessoa tem a autoestima tão baixa a ponto de querer estar onde não é desejada?

O Brasil é um dos países recordistas em abortos ilegais no mundo. Não é como se aborto fosse realmente proibido, ele só é proibido para pobre. Parem de tapar o sol com a peneira.

Para dizer que eu defendo assassinato (já estou acostumada a escutar aberrações jurídicas), para dizer que eu sou petista (prefiro que me xinguem de assassina) ou ainda para dizer que precisou ler duas vezes o nome para ter certeza que este não era o texto do Somir: sally@desfavor.com

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Comments (14)

  • É possível usar o argumento histórico. O Brasil nunca esteve pronto para nada, não vai ser nesse caso que vai estar “pronto”. Então tem que liberar e pronto. Pronto.

    • Verdade. O brasileiro só de mexe quando não tem outra opção. Se for esperar o país estar pronto, nunca vai acontecer

  • Eu concordo com a Sally, porém seguindo a linha de raciocínio do Somir.

    É necessário educar as pessoas antes (sim, eu sei, estou pedindo muito de um povo que não sabe usar sequer uma camisinha, quem dirá entender o que é um embrião ou um feto, e como funciona um aborto).

    Enquanto a política também não sair dos extremos de uma polarização, não vai funcionar, pois vão entender aborto como parte de uma ideologia e parte de uma agenda de político X ou Y, e não um direito. Assim que o político sair do governo, o direito irá embora junto.

    E claro, é capaz da brasileira média tomar abortivo pra emagrecer, ou mandar marido tomar porque só ela tomar é machismo.

    E não, a esquerda brasileira não vai se empenhar em educar as pessoas sobre esse assunto ou mesmo legalizar. Pelo menos enquanto evangélico e católico votar, e religioso bom, é cidadão burro. Então, antes tem que podar influência fundamentalista, desinformação e ignorância pra separar que aborto é “ideia esquerdista” ou é matar alguém.

    • Ana,

      Enquanto docente, ministro aulas para três níveis de formação (ensino médio, graduação e pós-graduação) e é impressionante como em todos eles viceja a falta de conhecimentos sobre a reprodução, independente da idade e gênero.
      Teve aluna que veio conversar comigo e confessou que tomava pílula do dia seguinte toda vez que tinha relações porque achava que assim estaria segura…e outros inúmeros tipos de absurdos que a desinformação traz.
      Eu acredito no DIREITO de interromper uma gravidez de forma segura mas acredito que, principalmente, devemos fortalecer a base e disseminar os conhecimentos acerca da responsabilidade reprodutiva (métodos contraceptivos, planejamento familiar, etc.).

  • Eu não sei porque ficam discutindo tanto sobre aborto, se na prática sempre existiu. A única diferença é que as filhinhas de família rica fazem aborto com segurança e conforto, enquanto as mulheres de família pobre fazem enfiando objetos pontiagudos ou tomando remédios e depois dizem que levaram tombo. Não importa se não usou camisinha, se não tomou pílula, se não quer parir ninguém tem direito de obrigar! Melhor que criar filho indesejadoou jogar pra adoção não se sabe a índole de quem vai adotar, pai já abusa imagina padrasto!

  • Por mais que eu concorde com o argumento da Sally de que muita gente por aí não tem a menor condição emocional, financeira e psicológica pra criar direito uma criança, eu fico com o Somir. Guiado em questões morais por pastores e padres agarrados a velhos dogmas quase que medievais, o brasileiro médio ainda nem sequer consegue falar no assunto “aborto” sem pôr religião no meio, sendo também incapaz de observá-lo à luz da razão ou de pensar com a própria cabeça. Ou, pra citar o que o próprio Somir disse, “a mentalidade de uma população ignorante e envenenada por religião não é condizente com liberdades do tipo”.

    • Faz quem quer, quem tem a mente envenenada não faz.
      Limitar o direito de quem pensa levando em conta quem não pensa é complicado.

  • A essa altura do campeonato, será que ainda existe gente contra a legalização do aborto? Digo, de forma coerente. Me parece que a maioria se diz contra mas nem sabe direito o que é aborto. Deve achar que é dar um tiro num recém-nascido ou algo assim. A tendência é quanto maior a escolaridade, maior a aceitação, independente do país e da religião da pessoa.

    Só discordo um pouco da Sally na parte em que famílias sem preparo psicológico ou financeiro deixariam de ter filhos. Tem muita gente que faz questão de ter o filho só pra ter um saco de pancadas ou um boneco pra brincar de casinha e servir de terapia*.
    *Pior que eu de fato conheço 2 casos de pessoas que só tomaram rumo na vida depois que tiveram filho… uma pessoa vivia na rua arrumando encrenca e se drogando e a outra sofria de depressão profunda. Mudaram da água pro vinho. Bizarro o_O

    • Tem gente que acha que aborto é assassinato, com base em misticismos como “já tem uma alma designada para esse corpo, mesmo que o corpo não esteja formado” e coisas do tipo.

  • Depois de ver esses últimos casos de crianças de 10, 11 anos grávidas (wtf), e toda uma força-tarefa sendo empreendida por gente de tudo quanto é canto (até o fuckin Judiciário) pra impedir o acesso dessas crianças ao direito de abortar, sinceramente, acho que aprovar não adiantaria nada. Temos que, primeiramente, ter uma estrutura que permita que o direito que você tem possa ser exercido, sem que ninguém te impeça de exercê-lo. Caso contrário, pode aprovar a lei do jeito que for, que vai ter gente lá na frente precisando, e vai ter juíza convencendo criança a não fazer, não interessa se vai morrer ou ficar com sequelas no processo.

      • Tenho 38 anos, com um filho. Toda vez que tentei marcar vasectomia o médico dava pra trás de última hora com os argumentos mais ridículos. Ter a lei aprovada não adianta nada, tem de mudar a mentalidade do povo.

        E vamos ser sinceros: quem é que quer obrigar judicialmente um médico a ficar com um bisturi no seu saco?

  • Por isso invejo o federalismo americano. Alguns estados mais atrasados escolheram criminalizar ou limitar o aborto, mas isso não impede que os outros estados continuem com o aborto legalizado. E se a mulher quiser, pode viajar pra esses estados e exercer seu direito.
    Por aqui, são estados fodendo outros estados indefinidamente.

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