Por envolver jogadores de futebol, a notícia de um bando de golpistas dando mais um golpe em incautos virou até matéria do Fantástico. Como de costume nos últimos tempos, envolvia criptomoedas e promessas de ganhos imensos. Como de costume nos últimos tempos, terminou em dinheiro desaparecendo. Eu escrevi mais de um texto empolgado sobre criptomoedas alguns anos atrás, será que eu mudei de ideia sobre o tema?

Não. Minha ideia sobre o tema lá atrás era que a tecnologia tinha muito potencial, mas a parte financeira da coisa estava muito contaminada pela mentalidade de cassino, onde as pessoas jogam com baixas probabilidades de sucesso em busca de enormes retornos. Nesses últimos anos, vimos exatamente isso acontecendo.

Como sobrevivente de investimentos em criptomoedas, inclusive com algum lucro, acho válido voltar ao tema para dizer o que eu aprendi nesse meio tempo. Eu não perdi dinheiro porque não fiz pouco do meu bom senso em nenhum momento. Se algo parece bom demais para ser verdade, é bom demais para ser verdade. É incrível como os séculos passam e o ser humano não consegue aprender essa lição básica.

Não precisava pensar muito para perceber que coisas como NFTs, do jeito que estavam sendo vendidos, não faziam o menor sentido. Isso não impediu muita gente de sair comprando desenhos toscos de macacos por valores exorbitantes na expectativa de vendê-los mais caros depois. Hoje em dia o mercado de NFTs despencou, com muita gente percebendo o golpe óbvio pelo que era.

Ainda tem gente caindo? Tem sim, mas muito menos. A internet ajudou muito transformando coisas como NFTs em piadas, existe um valor muito especial no bullying do tipo: mesmo que a pessoa não entenda muito bem por que gastar com esses desenhos bestas seja jogar dinheiro no lixo, ela se sente incluída dando risada dos otários que perderam (às vezes tudo) no golpe e reforça a rejeição generalizada.

É uma defesa ter em mente que esse povo das criptomoedas é um misto de imbecis e golpistas, mas não é toda a história. Você pode tirar lições bem maiores do estado lastimável de confiança em criptomoedas e derivados que vivemos hoje em dia, lições que servem para todo o resto da sua vida financeira. Conhecer uma regra tem utilidade, saber por que a regra existe tem mil vezes mais.

Vou explicar melhor: tem tanto golpe e investimento furado no mundo das criptomoedas não porque a ideia de criptomoedas é um golpe, e sim porque elas tem características que permitem que golpistas se enfiem entre você e a função real do seu investimento.

Criptoativos, blockchain e coisas do tipo são tecnologias. Zeros e uns sem função nenhuma no universo a não ser que nós demos função para eles. As coisas têm que ter alguma lógica nesse mundo, mesmo que às vezes você ache que nada faz sentido. Dinheiro, por exemplo: é um pedaço de papel ou um número na tela do seu celular que por si só não serve para nada, mas como existe um acordo social sobre ele guardar o valor de matérias-primas e mão-de-obra, sabemos o que fazer com ele.

O mundo moderno sabe a função do dinheiro. Os governos dão suporte a esse dinheiro. Quando você troca suas horas de trabalho por dinheiro, está apenas transferindo o valor do seu tempo e experiência para um pedaço de papel reconhecido por todos como valioso. Dinheiro é estoque de valor.

Tanta gente caiu em golpes com criptomoedas e NFTs porque ignorou essa ideia básica: se não tem valor estocado ali, não tem função na vida real. E vida real vai muito além de comida e aluguel: vários jogos online que permitem troca de itens entre jogadores desenvolvem mercados paralelos de venda por dinheiro real. Quase todos os jogos proíbem isso, mas sempre existe interesse nisso.

Para a pessoa que está jogando e se divertindo, aquela espada mágica que é só um monte de pixels na tela pode ter valor real. Ter aquele item virtual gera benefícios reais, nem que seja uma descarga momentânea de dopamina. E mais, esse tipo de mercado de itens de jogos presume horas de trabalho também: quanto mais raro e/ou difícil de conseguir o item, maior seu valor em dinheiro de verdade. Alguém teve que gastar horas da vida dela para pegar aquele item. Você está comprando as horas da vida dela e economizando as suas.

É valor real do ponto de vista de quem se importa com isso. Aquele item aleatório de jogo custou horas de trabalho, e foi trocado por dinheiro, que é o estoque de valor reconhecido pela humanidade. Muitos golpistas usam esse tipo de argumento de valor virtual para enrolar possíveis compradores de suas criptomoedas ou NFTs inúteis: pessoas compram coisas virtuais o tempo todo. Compram sim, mas para elas tem valor real.

Se você está olhando para um possível investimento, é evidente que você tem que analisar o valor real daquilo. Eu não sei se o “filme queimado” das criptomoedas está realmente lidando com esse fato. Eu não sei se a lição aprendida com tantos golpes vai além de não confiar em coisas que tem cripto na descrição. Porque se for só isso, as pessoas vão cair no próximo golpe que não tiver essa palavra.

Você tem que entender o conceito básico: se parecer que não existe função prática nenhuma no que você está investindo, é provável que não tenha função prática mesmo. É feijão mágico que não vai te levar para castelo nenhum… eu só parei de investir em criptomoedas porque vi um hiato nesse processo de transformação de tecnologia em algo prático para a vida das pessoas. Eu tenho certeza de que essa tecnologia vai ser usada, especialmente considerando como inteligência artificial consome recursos de computação (que é a função original da criptomoeda: transformar computação em valor em tempo real, horas de trabalho da máquina por dinheiro).

Mas neste momento, o mercado está infestado de golpistas. Quem entrou para ficar rico provavelmente quebrou a cara e está com um monte de criptomoedas inúteis na mão, desesperado para vender. Criptomoedas não são pirâmides pelo ângulo tecnológico, mas essa foi a função real que a maioria das pessoas tirou dela: a ideia de trazer mais otários para comprar coisas inúteis que você foi otário de comprar antes.

Neste momento, não estão usando criptomoedas e a blockchain para nada muito prático, o único investimento racional nesse mercado é o de longo prazo para quem acredita que na função da tecnologia, ou estilo cassino/especulador no curtíssimo prazo. A função real do valor armazenado nas criptomoedas agora é ser trocado por dinheiro tradicional. E enquanto esse for o foco, muita gente vai ter suas economias sacrificadas pelos lucros de quem sabe no que está se metendo.

Eu mantenho alguns pequenos investimentos em criptomoedas, estou sem ânimo para brincar de cassino, então estou apenas especulando que a função prática da tecnologia vai aparecer em conjunto com a inteligência artificial nos próximos anos. Sei que posso perder tudo, por isso nem calculo como recurso real nas minhas contas cotidianas.

E essa noção não é inteligência avançada da minha parte, é bom senso básico. Se você não consegue enxergar valor real numa coisa, é evidente que no mínimo é algo mais complicado do que parece. Nenhum especialista pode assumir essa responsabilidade por você. Reconhecer valor é essencial para tocar a vida de forma saudável: tem gente que não vale o esforço, tem objetos que não valem o preço, tem investimentos que não valem nada.

Quem terceiriza o bom-senso para terceiros acaba que nem os jogadores de futebol desse caso: perdendo o que tem na mão de quem promete mundos e fundos. Estamos falando de dinheiro, mas como disse antes, serve para muito mais coisa. Gurus cheios de promessas estão violando regras básicas da lógica da vida em sociedade. É claro que não existe retorno de 100% sobre seu investimento sem risco de perder tudo. É claro que não existe uma forma infalível de ser feliz. É claro que não existem atalhos garantidos para o sucesso.

Se qualquer uma dessas coisas existisse, todo mundo saberia. Isso é bom-senso básico. Eu não sei se é ignorância pura ou se tem um fator de auto enganação aqui: a pessoa quer tanto que exista uma solução fácil para se dar bem na vida que se força a acreditar em promessas do tipo. O que tem valor, tem valor por algum motivo, e quase todos eles tem a ver com escassez e dificuldade de fazer.

Não à toa, eu acho que pagar por computação para inteligências artificiais com dinheiro é uma possibilidade real, porque já tem muita gente cobrando dinheiro para usar as ferramentas de geração de imagens e textos. O mercado está provado, gera valor, nem que seja valor de desenhar mulher pelada e fazer TCC para estudante vagabundo. Se as criptomoedas assumirem o mercado de computação (você vai poder comprar e vender tempo de computação) e as NFTs servirem como provas de autenticidade de materiais criados por uma entidade específica num mar de conteúdos robóticos, vai ter muito dinheiro entrando de novo nesse mercado.

Se surgir outra solução para dar conta dessa questão de computação para IA, aí o mercado de cripto provavelmente derrete até desaparecer. O dinheiro que eu tenho em cripto está totalmente condicionado a isso: ao valor real que ele puder trazer para o mundo, se trouxer. É importante estudar sobre os seus investimentos, ver se eles tem algum objetivo real ou se são apenas reservas de valor de esquemas de pirâmide.

Se os dois últimos parágrafos foram GREGO para você, tem algo para tirar de lição deste texto também: fique muito longe de criptomoedas e tudo o que tiver relacionado com isso, você vai tomar um golpe. E isso serve para qualquer tipo de guru, coach ou figura popular que te indicar um investimento: se tem alguém popular falando disso, é porque já estão desesperados para achar um otário para comprar deles as porcarias sem valor que compraram antes.

Foi isso que esvaziou os investimentos dos jogadores: eles acharam que alguém realmente ia dizer para terceiros sobre um investimento extremamente lucrativo e fácil. Eles vão se virar mesmo com o tombo, é claro, ganham muito dinheiro na profissão, mas o que tem de gente perdendo o que não podia perder nas mesmas situações não é brincadeira. O mercado especulativo só gira tanto dinheiro porque tem gente perdendo o tempo todo. O valor do investimento podre é o dinheiro que alguém vai jogar fora nele. Não seja você o contribuinte.

Eu não sei como te ensinar a enxergar valor nas coisas, só posso te dar a dica de que seu primeiro instinto é poderoso. A chance de ganhar na loteria é ínfima, e essa regra vale para tudo na vida.

Para dizer que me entendeu e investiu tudo em Dogecoin de novo, para dizer que o otário move a economia, ou mesmo para dizer que jogador de futebol perdendo é sempre engraçado: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Eu fazia piada com a questão da supervalorização das criptomoedas.
    Comparava isso a típicos ESQUEMAS PONZI propositalmente, em especial tendo em vista o péssimo histórico com TelexFree e com o infame Eike Batista, que inclusive foi alvo aqui de um Processa Eu.
    Quando tem muita gente dando de guru querendo vender algo como verdade, pode saber que ai tem.

  • Não vale mais a pena investir em coisas tangíveis, como terrenos ou barras de ouro? Sou boomer demais pra entender esses numerozinhos.

    • Olha, a minha regra mental é investir no que entende. Esse é o ponto do texto, no final das contas: você tem que saber por que o investimento tem valor. Daí você deriva facilmente o que pode dar errado com esse investimento e quem mais vai querer comprar de você esse investimento. Eu tenho uma ideia sobre por que as pessoas podem querer comprar os numerozinhos no futuro (está no texto), posso estar errado, é claro, mas foi pensado.

    • Todo investimento é especulativo, quer a gente queira ou não. A única diferença é sua abstração dessa especulação de acordo com o uso que se dá do produto investido. Alguém argumenta que casa é um bom investimento pois sempre tem gente querendo moradia, outro argumenta que a descentralização de moedas virtuais fazem com que o valor atrelado não seja arrastado pra lama por decisões porcas de governos

      Depende de como analisa o bem

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