Jogando sozinho.

O assunto rendeu. Vinícius Jr. Recebeu ofensas racistas num jogo do campeonato espanhol e chegou no seu limite. A irritação do jogador brasileiro virou um movimento bem maior, envolvendo até o governo brasileiro. A gente nem deveria ter que dizer o óbvio aqui, mas o óbvio nunca é demais: evidente que é inaceitável um monte de torcedores berrando macaco para um homem negro. Mas… será que a reação da sociedade nesse caso é suficiente para lidar com o problema?

Eu acompanho a NBA – a liga de basquete americana – há vários anos, e agora que vários canais e serviços online mostram os jogos, bem mais assiduamente. Quando vejo casos como o de Vini, a primeira coisa que vem na minha cabeça é como isso NUNCA ia acontecer na NBA (moderna).

O primeiro que abrisse a boca para chamar um jogador de macaco seria apontado pelo jogador na hora, seria expulso do jogo, retirado pelos seguranças, preso, processado e proibido de entrar em qualquer jogo da liga pelo resto da vida. E quem entende melhor a cultura deles sabe que a palavra não seria macaco, e sim “nigger”, mas para todos os efeitos deste texto é o mesmo conceito.

É impensável alguém fazer uma ofensa racista a um jogador negro no campeonato de basquete de lá. E sim, estou falando de um país muito racista, com um dos históricos mais horríveis de exploração, violência e segregação racial do mundo moderno. Nos EUA onde a Ku Klux Klan tem direito de existir protegido por lei, também existe um espaço bem seguro para negros numa das ligas esportivas mais populares do mundo.

Durante o auge do movimento Black Lives Matter, tivemos jogos cancelados na NBA, todos os jogadores apareceram com camisas com frases de efeito, inclusive no lugar dos nomes durante os jogos. Isso até deixou uma parcela dos fãs irritados com a panfletagem, mas não era negociável. Os jogadores iam simplesmente entrar em greve se não pudessem fazer bastante barulho sobre o movimento. Os dirigentes e donos de time sequer pensaram em ignorar aquele momento histórico.

Pudera: a maioria dos jogadores são negros, inclusive as grandes estrelas que ajudam a liga a faturar bilhões todos os anos. Nas últimas décadas, até mesmo o número de técnicos e dirigentes negros aumentou bastante. É parte da identidade da NBA. E com essa identidade, veio o grande diferencial: poder.

Na NBA, os jogadores entram em greve por melhores salários uma vez a cada 3 ou 4 anos. O campeonato para e o faturamento também. No último acordo de classe entre jogadores e liga, os jogadores conseguiram até tirar a maconha da lista de substâncias proibidas em exames antidoping. Sim, os donos de times e a liga em si ganham muito dinheiro em cima dos jogadores, mas eles não são meros peões.

Eu argumento que esse poder de barganha e a cultura que ela imprimiu na NBA são parte integrante da proteção que os jogadores negros têm de ataques racistas como os que acontecem no futebol. Sim, o movimento negro americano é muito mais forte e combativo do que em qualquer outro lugar do mundo, mas a NBA é uma bolha protegida do racismo ainda comum na sociedade americana.

Eu que acompanho vejo que temos até excessos na proteção dos negros. Nesta temporada, um sérvio branquelo chamado Nikola Jokic jogou de forma absurda o tempo todo, ele já tinha ganhado o título de melhor jogador do ano nos dois anos anteriores, tinha tudo para ganhar o terceiro. Um comentarista da ESPN americana, negro e ex-jogador da liga, resolveu polemizar dizendo que o sérvio só estava ganhando os prêmios porque era branco e a liga queria aparecer mais para o mercado fora dos EUA. O que, aliás, é um argumento idiota: a NBA virou fenômeno global por causa do negro Michael Jordan. Mas repercutiu bastante.

A votação para melhor jogador do ano de repente virou e um jogador camaronês, Joel Embiid, acabou levando o título. Vejam bem: Embiid é um excelente jogador, não foi nenhum absurdo ele ganhar o título de jogador mais valioso da temporada, mas aconteceu até de alguns dos jornalistas (negros) que votavam simplesmente deixarem de colocar Jokic entre os 3 melhores do ano para garantir a vitória de Embiid.

Talvez ele ganhasse por mérito próprio de qualquer jeito. Mas ficou estranho no final das contas. Eu não estou berrando injustiça aqui, estou apenas mencionando como na liga de basquete masculino americana, podemos ficar desconfiados até mesmo de vantagens indevidas para negros por serem negros. Não existe mundo ideal, sempre vamos ter coisas subjetivas como votações para melhores jogadores criando polêmicas, mas é um bom exemplo de como naquele campeonato onde os negros têm poder real, as coisas ficam bem mais… cinzas.

E esse é o ponto deste texto: poder real. No futebol, os jogadores não têm esse tipo de força, as estruturas de poder não precisam se preocupar com nada além de mensagens eventuais na rede social sobre racismo. E vimos até onde isso nos leva, não? Na NBA o fuckin’ campeonato para se algum jogador for vítima de racismo e não derem uma resposta muito dura. Um dos times da NBA precisou ser vendido porque pegaram o antigo dono falando coisas racistas num áudio antigo. Não tinha como continuar O TIME se não dessem conta disso.

Existe uma linha clara na NBA que não pode ser cruzada. E aqui talvez a parte mais controversa do texto: a linha se estende aos jogadores e seu comportamento fora de quadra. É mais do que serem respeitados como atletas, é serem respeitados como atletas exemplares. A NBA tem um código de conduta draconiano em relação a outros esportes. Um dos astros da atualidade, Ja Morant, está ameaçado de não voltar a jogar mais porque apareceu na rede social com uma arma na mão. Sim, nos EUA um jogador está sofrendo represálias enormes por mostrar uma arma (não atirou nem nada) num vídeo do Instagram.

Não é um Zé Ruela qualquer, é o jogador símbolo de um dos times, um que gera muito dinheiro para a franquia que o contratou e um que atrai muita gente para ver seus jogos. Mas o código de conduta da NBA não permite que jogadores sejam maus exemplos, de nada. Não tem muito espaço para individualidade para eles, eles querem jogadores com imagens maravilhosamente limpas e caretas para que ninguém ouse agir de forma irresponsável e ameaçar a lucratividade da liga.

E aqui, o que eu considero polêmico: essa preocupação (francamente, exagerada às vezes) com o politicamente correto na imagem dos jogadores da liga tem peso no respeito e na força que os jogadores recebem das arquibancadas no mundo todo. A NBA é um sucesso na China! Na mesma China que teve que pintar a nova pequena sereia de azul no pôster para o povo não perceber que ela era negra antes de comprar o ingresso. A China é racista até dizer chega e é fã de uma liga esportiva cuja imensa maioria dos jogadores são negros.

Isso é imagem também. E eu disse que isso seria polêmico porque alguém poderia imaginar que eu estou falando sobre o jogador da NBA não ter “imagem de bandido”. Atenção: não é sobre isso. É sobre a imagem de um grupo de pessoas bem cuidadas. Numa comparação meio maluca: quando você vê um lugar muito limpo, não joga lixo no chão. Quando vê que todo mundo está jogando lixo, não te incomoda jogar também.

O jogador da NBA está protegido por estruturas de poder que o representam e pela imagem projetada por décadas de esforço da liga para colocar esses jogadores em pedestais. Não é só o tamanho da pessoa, é o tamanho da imagem que ela projeta: o racista olha para um LeBron James, por exemplo, e vê um homem de 5 metros de altura (e olha que 2 ele já tem). É mais do que ele ter dinheiro, é o respeito que ele impõe pela sua imagem e pelo apoio que tem.

O racista olha para o Vini Jr. e vê um moleque com muito dinheiro, mas sem poder nenhum. O jogador de futebol, não importa a cor da pele, não tem essa aura ao seu redor. Muitas vezes, a imagem mental da pessoa é uma coisa meio Neymar, eterno adolescente reclamão. Aí, quando Vini Jr. reclama de uma coisa séria demais como ser chamado de macaco em coro num estádio de futebol em dois mil e fuckin’ vinte e três, fica um ranço de desimportância.

Claro, Vini Jr. não tem uma liga ao seu lado. Não tem gigantes atrás dele e uma estrutura de poder político e financeiro dando peso ao que diz e sente. A discussão sobre racismo ser errado já foi, e já foi faz décadas no mundo moderno. Ficar olhando só para um rapaz sendo atacado é perder o cerne da questão: poder não se constrói sozinho. Não adianta dar centenas de milhões para um jovem negro e achar que a missão está cumprida.

A NBA tem um monte de escândalos, os jogadores fazem besteiras sim, mas o respeito é construído em conjunto. Desde a escola esses rapazes, em sua maioria negros, vivem essa realidade de poder compartilhado. Ela só se torna num escudo poderoso contra o racismo no mercado bilionário do esporte profissional, mas é uma construção. A NBA não resolveu o racismo americano, mas mostrou como é essencial não deixar esses jovens sozinhos, e como isso acumula até o ponto de ser impensável um ato racista numa quadra de basquete profissional americano.

No futebol, é cada um por si. Na maioria dos esportes, é cada um por si. É no futebol que Neymar se diz negro ou branco de acordo com o momento, porque é o seu status pessoal que conta em qualquer interação. É no futebol que Vini Jr. é chamado de macaco dezenas de vezes pela torcida e precisa perder completamente a cabeça para ser visto pelo mundo. Isso é resultado de individualismo, os jogadores de futebol não se unem porque é esperado deles serem estrelas solitárias.

Claro que punir torcedor racista é parte da resolução do problema, mas isso mantém as coisas no mesmo status quo de jogadores negros sozinhos contra o preconceito. Quando acontece com gente menos famosa que literalmente o melhor jogador brasileiro em atividade, nem costuma gerar muita consequência. Eu quero que os torcedores racistas sejam punidos, mas eu olho para a NBA e vejo um passo além: um ambiente onde as pessoas não falem essas bobagens por respeito mesmo.

A pessoa não vai deixar de ser racista só por isso, mas a forma como ele é coibido gera impactos no longo prazo. Poder é muito melhor que pena.

Para dizer que não gosta do Vini Jr. (muda alguma coisa?), para dizer que quem pode mais chora menos, ou mesmo para dizer que minha carteirinha de elitista está revogada por ver NBA: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Enquanto cor da pele for tema de discussão ninguém evolui real, sinceramente e com a consciência em seu devido lugar.
    Com qual objetivo se discute cor de pele?
    Ninguém quer saber se alguém gosta mais de roupa verde, azul, vermelha ou branca, cada um usa a cor que gosta mais, tá nem aí para a cor que o amigo está usando.
    Com a cor da pele o conceito deve ser o mesmo, sendo que aqui, não há como escolher com qual cor vai nascer.
    O aceite da cor da pele do outro deve necessariamente ser igual o aceite da cor da roupa, a cor está, e não pode jamais ser motivo de exclusão.
    Tem quem é idiota e pode ser chamado de idiota, afinal ele pode deixar de ser idiota.
    Tem quem é de outra cor e não pode ser chamado de nada depreciativo porque ele não pode mudar a sua cor.
    É indigno qualquer referência contrária a isso, e o problema não é a cor, é de quem se recusa a entender o
    fato.

  • Boa sorte com a identificação do contexto em que pode ou não pode chamar de macaco! Já que humorista pode, se fosse o amigão Lins na arquibancada ele tava certo? E se ele estivesse gravando um show? Às vezes estava certo…
    Fora a crítica a textos anteriores, que nem são seus em maioria, nesse aspecto vê-se a capacidade de organização de uma liga “fechada” inalcançável para o mundo do futebol. Acho que grande parte do racismo na liga espanhola vem de uma soberba e da identificação de que o carinha vem de um país periférico, ele que se adeque e etc. No mundo do futebol existem potencialmente 10 ligas diferentes (com capacidade para atrair os melhores) com etiquetas diferentes para jogadores e torcedores, em países culturalmente diversos. Então no caso específico, o Vini tá certíssimo, apostou que comprariam o barulho dele e compraram. E esse tipo de atitude dele, ao contrário de outros que largaram pra lá, pode mudar as coisas, pelo menos por lá. Chegar no nível da NBA, talvez para a Premier League, mesmo assim é duro, com 10% de jogadores ingleses e com a rotatividade dos astros.
    PS.: O Embiid mereceu o MVP esse ano!

    • SIM, é justamente assim que a vida funciona: quando é humor pode falar.
      Pode falar que vai matar alguém em uma piada (mas não pode ameaçar de morte uma pessoa na vida real), pode dizer que ganha tão pouco que vai assaltar um banco (mas não pode dizer isso de forma séria pois seria ameaça de um crime), pode dizer o que quiser, pois a lei criou a figura do ANIMUS JOCANDI, que significa justamente isso: quando se fala com intenção de fazer piada, não há crime.

    • Gritar macaco não é uma piada, é gritar macaco. Quando o Kramer xingou um negro da plateia nos EUA, ele foi acusado de racismo e ultra-cancelado, e com razão, ele estava literalmente ofendendo uma pessoa negra no meio de um show de humor, todo mundo percebeu que era uma quebra do show. Se um humorista pega um revólver e atira em alguém da plateia, não é uma piada, evidente.

      É bem simples diferenciar as coisas, e mesmo que não fosse, a Sally já mencionou que está no entendimento da lei.

      P.S.: E sobre o Embiid: talvez tenha merecido, mas quando o imbecil do Kendrick Perkins falou aquilo, sujou o título dele. Eu ainda teria votado no Jokic, porque foi uma temporada com muito mais do que pontos.

    • Eu sou a favor da liberdade de expressão de quem xinga em estádios. Eu sou a favor da liberdade de expressão de todo mundo. Eu não sou a favor de imunidade irrestrita para as consequências dessa liberdade de expressão. Um humorista fazendo uma piada que pode ofender algumas pessoas está fazendo algo totalmente diferente de um bando se juntando para chamar um jogador negro de macaco no estádio. Contexto é essencial.

    • Aqui as pessoas são objetos. Serviu, bom. Deixou de servir, joga fora. Independentemente se é preto ou branco.

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