FAQ Desfavor – Dengue

A dengue no Brasil parece estar um pouco fora de controle, o que nos motivou a usar a coluna FAQ para falar um pouco sobre ela. Parabéns, Brasil, já é a terceira doença que aparece na coluna!

As informações básicas sobre dengue (de onde vem, quais são os sintomas e como prevenir) tenho certeza de que todo mundo tem. Vamos focar nas vacinas, pois, para variar, é o tópico que mais causa ruído e controvérsias.

Um detalhe importante: assim como fizemos na pandemia, não vamos trazer opiniões políticas para este texto ou para qualquer outro FAQ, pois entendemos que isso distrairia o leitor do ponto principal, que é importante demais para dividir holofotes com qualquer outra questão.

A primeira coisa que você tem que saber é que os casos de dengue estão aumentando e provavelmente vão aumentar mais por uma série de fatores: o mosquito está muito bem adaptado, o inverno não chega a ser frio o suficiente para impedir a proliferação do mosquito e que a temporada de dengue não está no final, ela ainda vai continuar, pelo menos até abril. Então, você precisa estar bem informado.

Existem 4 diferentes tipos de dengue, que são classificados por número mesmo: dengue 1, dengue 2, dengue 3 e dengue 4. No Brasil prevalece a Dengue do tipo 2. Também se encontram casos do Tipo 1 e, de forma muito rara, dos Tipos 3 e 4.

Tendo isso em mente, vamos entender como funciona a imunidade natural, isto é a imunidade que seu corpo produz quando você pega a doença.

Quando você tem um dos tipos de dengue, é provável que, em média, pelos 6 meses seguintes você esteja protegido contra todos os tipos.

Passados esses seis meses, a imunidade se torna mais “fraca” e você só estará protegido contra o tipo específico de dengue que teve. Exemplo: se você teve Dengue do tipo 2, está protegido contra ela, mas pode pegar Dengue do tipo 1, 3 e 4.

E, depois de dois anos, não tem mais proteção contra nada, pode pegar qualquer tipo de dengue. Sim, é possível ter o mesmo tipo de dengue várias vezes.

Precisamos conversar sobre essa imunidade parcial, essa imunidade que decai em eficiência, após os seis meses da doença, e que fica assim até um ou dois anos, pois ela pode ter um “efeito colateral” bastante ruim: pode gerar casos mais graves de dengue. Vamos tentar explicar de forma didática.

Suponhamos que uma pessoa teve Dengue 2. Nos primeiros seis meses ela está protegida contra Dengues 1, 2, 3 e 4. Após seis meses ela está imune apenas contra Dengue 2, podendo pegar Dengue 1, 3 e 4, até o perío de um ou dois anos, quando fica vulnerável a todos os tipos. Se, nesse período de imunidade parcial, quando ela está protegida apenas contra Dengue 2, a pessoa pega Dengue 1, ela terá anticorpos para reconhecer a doença, mas não para combatê-la. E isso é um perigo.

Vamos usar uma simplificação grosseira meramente para fins didáticos. Você mora em uma casa na qual vários seguranças armados tentam impedir a entrada de invasores de diferentes quadrilhas: 1, 2, 3, e 4. Nos primeiros seis meses, esses seguranças têm fuzis com munição infinita, portanto, cada vez que entra um invasor de qualquer quadrilha, eles atiram e matam, impedindo que entrem na sua casa.

Mas, após seis meses, os bandidos das quadrilhas 1, 3 e 4 desenvolveram uma armadura à prova de balas que repele os tiros de fuzil. Isso significa que se entrar invasor da quadrilha 2, os seguranças têm que dar tiro, mas se entrar invasor das outras, tem que correr para dentro de casa e trancar as portas, se não, serão rendidos, pois seus tiros não serão eficientes. Se forem rendidos, terão as chaves da casa tomada e os bandidos entrarão.

É mais ou menos isso que acontece com nosso corpo: após seis meses o sistema imune reconhece outros tipos de Dengue, mas não consegue atacá-los de forma eficiente, sendo uma presa fácil para eles, que usam o sistema imune para entrar nas nossas células e invadir o nosso corpo de forma mais rápida e violenta. Quem deveria nos defender acaba facilitando a entrada do vírus.

Então, se nesse período pós dengue onde não há mais imunidade para todos os tipos, a pessoa contrai outro tipo diferente do que causou a doença original, ela tem grandes chances de desenvolver uma versão grave da doença, pois o vírus vai entrar nas células com facilidade por causa da imunidade parcial. Antigamente essa versão mais grave era chamada de “dengue hemorrágica” . Hoje é chamada de “dengue grave”

O nome “dengue hemorrágica” veio de um problema comum nesses casos: todo esse processo acaba liberando no organismo substâncias que podem causar lesões nas paredes dos vasos sanguíneos, o que pode gerar sangramentos. Como o vírus destrói as células sanguíneas responsáveis pela cicatrização (papo técnico: plaquetas), esse sangramento interno (hemorragia) não é estancado, podendo inclusive levar à morte.

Porém, o termo “dengue hemorrágica” deixou de ser usado pela OMS em 2009, pois estava induzindo pessoas a erro: muita gente pensava que esse era o único ou principal sintoma da dengue grave, quando, na verdade, não é. Se considera dengue grave quando o paciente apresenta qualquer destes sintomas: choque ou dificuldade respiratória, sangramento intenso e/ou comprometimento grave de órgãos.

Se considera Dengue Sem Sinais de Alarme (ou simplesmente dengue) quando o paciente apresenta febre geralmente por um período de 2 a 7 dias acompanhada de alguns destes sintomas: náusea, vômitos, erupção cutânea, dor de cabeça, dor atrás dos olhos, dor no corpo, dor nas articulações, manchas avermelhadas no corpo e/ou baixos níveis de glóbulos brancos no sangue.

Se considera Dengue com Sinais de Alarme quando estão presentes alguns destes sintomas: dor abdominal intensa ou sensibilidade no abdômen, vômito persistente, acúmulo de líquidos, sangramento de mucosas, letargia ou inquietação, pressão arterial baixa, aumento do fígado e aumento progressivo do percentual de hemácias no sangue com queda na contagem de plaquetas.

Resumindo, temos 3 cenários: 1) Dengue Sem Sinais de Alarme, no qual você pode se cuidar em casa, fazendo uso de remédios indicados pelo médico para reduzir os sintomas; 2) Dengue com Sinais de Alarme, no qual você precisa procurar ajuda médica e ser monitorado e 3) Dengue Grave, no qual você tem que ficar internado e rezar para tudo em que você acredita. Qualquer mínimo sinal de progressão de Dengue Sem Sinais de Alarme deve motivo para imediato atendimento médico.

Como vocês podem imaginar, fazendo uma conta muito simples, quando temos um surto de dengue com muitos casos, existe uma tendência a que, algum tempo depois (geralmente no ano seguinte) apareçam mais casos graves, pois, ao mais pessoas pegarem dengue, mais pessoas ficaram com imunidade parcial, mais vulneráveis. Ou seja, se está ruim agora, pode piorar depois. Por isso a importância de vacinas. Se você puder, por favor, se vacine.

O que estas informações nos ensinam? Em primeiro lugar, que não dá para bater no peito e dizer “Eu já tive dengue, eu não preciso de vacina”. Precisa sim. Da mesma forma, não dá bater no peito e dizer “Como eu já tive dengue, não posso tomar a vacina”. Pode sim. Vamos esclarecer esse mito.

Essa imunidade parcial que descrevemos sempre foi um dos principais entraves para desenvolver uma vacina eficiente: se você imunizava uma pessoa contra um tipo de dengue, a deixava extremamente vulnerável aos outros três tipos, piorando os sintomas se a pessoa pegar algum dos outros tipos.

Por isso surgiu o mito de que quem nunca teve dengue não pode tomar vacina. A primeira vacina contra dengue que surgiu no mercado, a Dengvaxia, da Sanofi, oferecia proteção parcial, e, o que é pior, não protegia contra casos de dengue 2, um dos mais comuns no Brasil. Então, tomar essa vacina poderia mais atrapalhar do que ajuda, uma vez que deixaria a pessoa mais vulnerável justamente contra o tipo de dengue que mais circula no país.

Por isso, foi amplamente divulgado (com razão) que essa vacina só poderia ser utilizada por quem já teve dengue, justamente pelos perigos da proteção parcial. Infelizmente, esta informação se espalhou sem contexto e entrou no inconsciente coletivo que “só pode tomar vacina de dengue quem já teve dengue”. Isso não é verdade, depois dessa, veio outra vacina que todo mundo pode tomar.

Essa outra vacina é a Qdenga, fabricada pelo laboratório japonês Takeda Pharma, que protege contra os quatro tipos de dengue, eliminando esse problema da imunidade parcial. É uma vacina de vírus atenuado (possuí pedacinhos dos 4 tipos) e que desperta imunidade contra os 4 tipos. Entre eles, a vacina se mostrou mais eficaz contra os tipos 1 e 2, justamente os que predominam no Brasil.

A ANVISA aprovou o uso dessa vacina no Brasil em março de 2023 (segundo informações do próprio governo), mas, no ano passado ela ficou disponível apenas na rede privada, ou seja, só tomava quem tinha dinheiro para pagar, independente da necessidade de determinados grupos. Agora, um ano depois, chegou ao SUS.

Esta vacina é segura para todo mundo. Optou-se por não aplicar em certas faixas etárias não por questões de segurança, e sim de eficácia: ao que tudo indica (e isso pode ser desmentido em um futuro, pois os testes clínicos de eficácia foram realizados com um número muito pequeno de pessoas) em alguns grupos ela não despertaria uma imunidade tão boa contra alguns tipos de dengue (especialmente o tipo 3, o que nem seria um problema, pois circula pouco e nada no Brasil).

Por isso, e não por questões de segurança, optou-se pela aplicação nos grupos que terão a melhor resposta imune. Segundo orientação do Ministério da Saúde, podem ser vacinados com a vacina Qdenga crianças com mais de 10 até adultos com menos de 60 anos. Mas, sendo bem sincera aqui, eu, se encontrasse na rede privada, daria para meu filho em qualquer idade. Seguro é, talvez não seja tão eficaz, mas ajuda.

Em 2024, um ano depois da aprovação da vacina pela ANVISA, o Brasil comprou todas as doses disponíveis para o país que o laboratório disponibilizou, que não são nem de perto suficientes para controlar o surto de dengue que o país enfrenta. Então, hoje a realidade é essa: quem pagou no ano passado está imune, quem não pagou tem que torcer para que sua cidade receba as (poucas) doses de vacina disponíveis.

Não sei dizer os critérios internos para distribuição da vacina. O que a mídia noticia é que apenas 10% das cidades receberão a vacina e que 25% das cidades que receberão a vacina não registraram um único caso de dengue em 2024. Pesquisei bastante, mas, até onde pude ler, o Governo não deixou clara sua estratégia, razão pela qual não posso esclarecer qual seja.

A boa notícia é que o Instituto Butantan está desenvolvendo e testando uma vacina contra a dengue que vem mostrando excelentes resultados tanto de eficácia como de segurança. Além de proteger contra os 4 tipos de dengue, ela ainda protege com uma única dose (a Qdenga precisa de duas doses). Então, ao que tudo indica, em breve o Brasil não será mais dependente de laboratórios estrangeiros.

De qualquer forma, mesmo com vacinas ótimas para todos, é preciso ter em mente a necessidade de controlar o mosquito, pois além da dengue temos outras doenças como Zika, Chikungunya e outras circulando. Então, mesmo com vacinas para todos em um futuro ideal, as pessoas têm que fazer a sua parte para controlar a situação.

Como o mosquito está muito bem adaptado, é muito difícil impedir sua reprodução. Então, para sua segurança, a melhor estratégia é tentar impedir que o mosquito chegue até você. Estou vendo muita campanha para não deixar água parada e usar repelente. Não vou discutir, vou deixar a minha contribuição: telas nas portas e janelas da casa certamente custam mais barato do que uma vida de repelente e inseticida e certamente te protegem mais. É uma questão de saúde. Coloquem telas em suas casas e, se puderem, tomem a vacina, onde quer que ela esteja, rede pública ou privada.

BÔNUS COVID

O Brasil também está passando por um aumento de casos de covid, então, vamos deixar um pequeno conteúdo bônus aqui para te lembrar da importância de tomar a vacina bivalente.

Lembra aquela primeira vacina que a gente tomou? Pois é, ela e suas doses de reforço protegiam muito bem para a covid da época. Hoje, o vírus que circula não é o mesmo, ele sofreu uma série de mutações e uma única variante acabou predominando. Hoje, basicamente, é tudo Omicron, ainda que tenhamos várias subvariantes dela, é tudo Omicron. E as vacinas que todos nós tomamos não foram desenvolvidas para Omicron.

Por isso a importância da vacina bivalente: ela protege contra as variantes antigas e também contra a Omicron (daí o nome: bivalente). Com ela você terá a melhor imunidade. Tome a vacina. Tome a porra da vacina.

O que não fazer (e estou vendo muito isso): esperar pela vacina monovalente. A vacina monovalente é para um subtipo específico da Omicron, ou seja, isso a trona ainda mais específica do que a bivalente. Por isso estou vendo pessoas não se vacinarem com a bivalente, esperando pela monovalente.

Como o Brasil só aplica vacina nas pessoas a cada seis meses se forem grupo de risco e a cada ano se forem pessoas comuns, a pessoa sabe que se ela tomar uma vacina este ano, a outra só será tomada em 2025, então, a pessoa decide que já que é a única vacina do ano que vai tomar, vai esperar pela monovalente. NÃO FAÇA ISSO.

Tome a bivalente, que na prática te protege o tanto que você precisa, pois é muito improvável que a vacina monovalente chegue em quantidade massiva este ano no Brasil. Toma a bivalente, se não você vai ficar sem proteção este ano e essa proteção pode te fazer falta. Ano que vem você toma a monovalente.

“Mas Sally, precisa mesmo? Eu já tomei as outras, não vou ser hospitalizado nem morrer”. Precisa. Mesmo que você não seja grupo de risco, mesmo que você não tenha tanto risco de hospitalização, pegar covid é uma roleta russa de sequelas. Não queira ficar um ano com névoa mental sem conseguir trabalhar por mais de um ano. Não se coloque nesse risco quando existe uma proteção gratuita.

Não espere. Não adie. Coloque isso como prioridade. Vai tomar a porra da vacina, que no carnaval deve ter acontecido um grande pico de contágios e a situação não deve estar favorável. E obriguem quem é grupo de risco (idosos, obesos, imunodeprimidos, cardíacos, diabéticos e todos os demais) a tomar também.

Nos vemos na quinta, com dicas de como cuidar de alguém que está com dengue.

Para dizer que não tem tempo de tomar vacina (tempo é questão de prioridades) para dizer que não gosta de telas nas janelas (e de hemorragia interna, você gosta?) ou ainda para dizer que a ciência é que os salva dos governantes: comente.

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Comments (10)

  • Muito esclarecedor o texto, como sempre. No momento estou passando repelente de 2x a 3x por dia, mas também vou providenciar telas para as janelas. Meu maior desafio é convencer os familiares a se cuidar também, não entendo por que eles preferem acreditar em vídeos estúpidos e receitas caseiras do que usar um repelente que custa 18 reais.

    • Seus familiares são idosos? O idoso desafia o bom-senos, Cris. O idoso que se destruir. Coloque telas antes que eles comecem a tomar ivermectina…

  • Os primeiros dias da doença é uma carta de amor do capeta. Muita febre e dor pelo corpo, dor que qualquer posição que tu deite na cama, não fica confortável. Até pra dormir é difícil. Meu estômago ficou zoado, a boca ficou muito amarga e descia poucos alimentos, em alguns momentos só água mesmo. Até aí achei que eu estava com alguma virose.

    Eu tive um pequeno sangramento no nariz no quarto dia, há muito tempo que eu não “estourava um vasinho”. Aí sim me caiu a ficha e fui pro hospital. Abordei isso com o médico e ele disse que podia acontecer mesmo sem ser quadro hemorrágico. Acontece por causa da baixa de plaquetas, e é por isso que é importante não usar nenhum medicamento que possa dificultar coagulação.

    No sexto dia, a febre finalmente cessou e comecei a melhorar. No dia seguinte surgiu uma coceira diabólica pelo meu corpo, parecia sarna essa porra, e só passou ontem. Não tive manchas em si, mas vermelhidão no corpo nos primeiros dias.

    Ainda parece que apanhei do elenco de todos os jogos de luta existentes. Não sinto dor, mas sinto cansaço. Apetite voltou, tontura e falta de fôlego permanecem. Fazer atividades simples do dia a dia agora requer mais calma.

    • Felizmente o pior já passou…
      Se cuida, Ana. Beba muito líquido e pega leve nas suas atividades por algumas semanas!

  • Uns dez anos atrás, uma amiga foi pro hospital com dores abdominais e foi diagnosticada com dengue grave. Os médicos fizeram alguns exames e ela estava com uma hemorragia interna bem ruim. Se recuperou bem, mas está assustadíssima com o aumento nos casos. Está muito difícil achar vacinas até nas redes privadas, esgotam super rápido e demoram muito a chegar.

    Sally, a bivalente contra COVID precisa ser reforçada de quanto em quanto tempo? Tomei em maio do ano passado, talvez seja bom tomar novamente.

    • Paula, o Brasil só aplica vacina contra covid (bivalente ou não) uma vez por ano em pessoas que não são grupo de risco e a cada seis meses em grupos de risco. Se você puder tomar a vacina agora, tome agora, depois de quase um ano a imunidade deve ter caído um pouco e não seria ruim ter máxima proteção durante um pico de contágios.

      • Voltei a pensar que sou “com + risco” e “prazo desde agosto passado” para covid; a de gripe conseguiria antes para tetravalente…

  • Mais uma postagem de utilidade pública da Sally cujo link, como de hábito, eu já repassei para vários dos meus contatos. Tem gente que não gosta nem que se toque nesse assunto, por achá-lo funesto, mas, se as informações contidas neste texto servirem para alertar ao menos uma dessas pessoas, já terá valido a pena.

    • “Tem gente que não gosta nem que se toque nesse assunto, por achá-lo funesto”. O famoso – e odioso – “não fala que atrai”, né?

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