Consumo criminoso.

Depois da internet, ficou muito mais fácil saber mais sobre quem cria o conteúdo que você consome, especialmente se essas pessoas estão envolvidas em escândalos e crimes. Sally e Somir discordam sobre como lidar com o conteúdo depois de saber os podres de quem o produziu. Os impopulares fazem juízo de valor… ou não.

Tema de hoje: devemos deixar de consumir conteúdo que te acrescenta de quem fez algo criminoso ou muito reprovável na vida pessoal?

SOMIR

Não. Não necessariamente. Não estou advogando que você tome alguma atitude para defender essa pessoa só porque gosta o que ela produz, mas também não acredito que você precise cortar esse material da sua vida. As coisas são separadas por definição.

Um argumento que eu gosto de usar para explicar essa dissociação entre pessoa e mensagem é “se o Hitler te disser que é errado matar, você começa a matar pessoas só para ir contra ele?”. Quem diz pode até contextualizar uma mensagem, mas não a define. Inconsistência e hipocrisia são coisas que servem para criticar a pessoa, mas não o conteúdo. O conteúdo não se importa com quem disse, apenas com o que é dito.

Se alguém produz um conteúdo que eu gosto, eu gosto do conteúdo, não da pessoa. Talvez seja algo mais específico meu, mas eu sinceramente nunca entendi como pessoas ficam fãs de outras pessoas, não no nível que é comum se ver por aí. É só uma pessoa que nem você. Ela pode fazer coisas muito bacanas que te interessam, mas no final das contas é só alguém que tem todos os problemas que as pessoas têm.

E francamente, existe uma grande probabilidade que esse ídolo seja digno de admiração apenas em algumas coisas na vida. Que nem a gente. Eu sei fazer algumas coisas bem, tenho minhas qualidades, mas na média eu tenho um monte de defeitos e incapacidades também. Não faz o menor sentido esperar que outros seres humanos sejam diferentes, até porque desde tempos imemoriais ficamos sabendo dos problemas alheios.

Todo herói, profeta ou gênio tinha seus podres; alguns frutos da época em que viveram, outros mais relacionados com suas personalidades. A Sally me disse uma frase que ficou comigo para a vida: “todo mundo sabe alguma coisa que você não sabe”. Isso é excelente para colocar as coisas em perspectiva, você pode pegar o que te acrescente de basicamente todo mundo, mas no quadro geral, a ideia é que somos mais fortes somando nossas habilidades e conhecimento.

Ninguém é fonte perfeita de ensinamentos e exemplos. Ninguém resolve tudo sozinho. Precisamos separar pessoa da produção dela, porque só assim podemos coletar do mundo o que nos soma e descartar o que não faz sentido, ou que faz mal.

Se alguém que produz um conteúdo que eu gosto e me acrescenta de alguma forma é descoberto fazendo algo terrível, eu não consigo entender a lógica de jogar fora o conteúdo. Eu nunca quis ser amigo das pessoas que produzem algo bacana, não por definição. Eu sei que é só uma coisa que elas fazem bem e que não conheço nada sobre elas na prática.

As pessoas queridas da minha vida são o contrário: são pessoas que eu gosto independentemente do que estão me entregando naquele momento. A relação é diferente. A pessoa que escreveu um livro ou me passou um conhecimento interessante por vídeo, por exemplo, não é uma pessoa da minha vida, é uma ideia dissociada que chegou até a mim. Pode até gerar alguma curiosidade de conhecer a pessoa, mas me parece tão óbvio que é basicamente um estranho fora daquele contexto que eu simplesmente não entendo ficar decepcionado com a pessoa.

Você não sabia nada de verdade sobre ela. Você conhece as pessoas com as quais tem convivência, o resto são interações pontuais, e provavelmente escolhidas a dedo para mostrar só o que elas querem mostrar. Vamos lá, se por algum motivo eu fosse exposto aqui como um serial killer, o que mudaria no que eu escrevi até hoje? Os meus textos foram lidos por vocês, o que eu produzi foi absorvido por outra mente, você não sabe se o que você tirou do texto era o que eu queria que você tirasse do texto. Se você não conviver comigo, você não sabe quem eu sou. Os meus textos só existem na sua cabeça, porque foi ela quem consumiu o conteúdo.

Essa coisa de cancelar a pessoa que produz conteúdo porque fez algo repreensível é ilógica. Parte do princípio falso de que você tinha uma relação real com ela. Não tinha. O que ela fez ou deixou de fazer na vida tem zero relação com o que você absorveu daquele conteúdo. É ranço da ideia de ter ídolos, de que o ser idealizado é real. Claro que não é. Todo mundo faz coisa errada, todo mundo tem defeitos. Não era a retidão da vida da pessoa que te atraía, era o que ela produzia. E isso não muda.

Michael Jackson provavelmente era um pedófilo ativo, e fez muitas das melhores músicas da sua geração. Você não gostava das músicas dele porque ele atraía crianças para dormir com ele em sua mansão, você gostava das músicas. O dinheiro que você deu para ele não era para abusar de menores de idade, era para consumir aquelas músicas. Tudo começava e terminava em você. As coisas são separadas, e não é ginástica mental, é lógica simples de causa e consequência. É impossível contribuir com um crime sem contribuir com o crime, oras!

E outra, até o relógio quebrado está certo duas vezes por dia. A pessoa pode ser toda errada e te passar uma ideia muito boa. Quando tem convivência e relação direta com a pessoa, sim, faz todo o sentido se afastar dela, porque você pode não querer trazer isso para a sua vida ou perder o interesse nesse ser humano; mas quando é uma pessoa externa à sua vida cotidiana? Não muda nada. Era um estranho e continua sendo um estranho.

Não tenha ídolos, tenha relações. Quem não se relaciona com você diretamente não faz parte da sua vida. É uma mensagem que veio do vácuo, um estímulo externo. Consuma o conteúdo que quiser consumir, quem pune é o Estado, não você. Se ler Mein Kampf for interessante para você, seja lá o motivo, você não está contribuindo para o Holocausto. Eu honestamente não entendo como as pessoas não entendem isso naturalmente, deveria ser a coisa mais simples de todas, especialmente para seres sociais como nós: não existe relação real com uma pessoa com a qual você não se comunica, é fisicamente impossível.

O conteúdo que alguém produz é só isso, conteúdo. Não é uma pessoa de verdade.

Para dizer que eu ajudo criminosos, para dizer que seu ídolo é perfeito, ou mesmo para dizer que eu me acho superior aos outros (eu só acho que especiais são as pessoas com as quais você gosta de conviver, o resto é resto): comente.

SALLY

Se um produtor de um conteúdo que te acrescenta muito faz algo criminoso e altamente reprovável em sua vida pessoal, você para de consumir seu conteúdo?

Sim, eu paro de consumir o conteúdo. Por vários motivos diferentes.

Para começo de conversa, eu não acredito que pessoas sejam tão compartimentalizadas a ponto de ser um ótimo produtor de conteúdo, mas um estuprador, um pedófilo ou autor de qualquer outro crime altamente reprovável. Percebam que a proposição de tema não fala de um crime comum, uma sonegação de imposto ou uma troca de tapa com vizinho, fala em “altamente reprovável”.

Uma pessoa com um desvio de caráter que lhe permita cometer um crime altamente reprovável tem esse lado presente em tudo que faz. Uma mente doentia contamina tudo que cria e muitas vezes só cria como isca, suporte ou propósito para viabilizar esses seus atos criminosos, como por exemplo o caso de um artista famoso que persegue a fama para ter mais facilidade em captar vítimas ou assegurar sua impunidade.

Eu vou contribuir com isso? De forma alguma. É uma utopia pensar que as coisas estão separadas. Quanto mais eu consumir o conteúdo da pessoa, mais poder, dinheiro e fama ela tem e quanto mais poder, dinheiro e fama ela tiver, mais recursos terá para perpetrar esses crimes altamente reprováveis. Não acho ético ser parte disso, não acho ético contribuir para isso, mesmo que seja de forma indireta. E, na real, ninguém deveria achar.

Se as pessoas tivessem essa consciência, rede social de famoso condenado por estupro não aumentava de seguidor depois da condenação. Falar mal, criticar e até agredir a pessoa é apenas divulgá-la. A única forma de realmente se posicionar de forma contrária a um criminoso que pratica um crime altamente reprovável é não consumir o que ele tem para oferecer, para que definhe e perca seu poder, seu dinheiro e sua influência.

“Mas e se a pessoa foi falsamente acusada?”. Não é essa a proposta do texto de hoje. Hoje se tem a certeza de que a pessoa cometeu um crime altamente reprovável.

“Mas e se a pessoa for muito boa no que faz?”. Foda-se? Aparecerão outras pessoas tão boas quanto, ou então vou consumir o segundo melhor. Alguém aqui torceria para o Daniel Alves fazer muitos gols pela Seleção Brasileira? Alguém aqui quer ver essa pessoa com fama, projeção e sucesso?

Se fosse nos anos 80, quando era muito difícil ter acesso a qualquer conteúdo, eu até poderia lidar com alguns argumentos. Mas hoje? Com tudo a um clique? Certamente tem outros produtores de conteúdo que fazem algo similar no meio dos oito bilhões de pessoas no mundo, não tem qualquer necessidade de prestigiar alguém que fez algo que eu considero inaceitável, grave, repulsivo. Certamente se eu ou alguém que eu amo tivéssemos sido vítimas desse crime altamente reprovável, eu gostaria que mais ninguém consumisse seu conteúdo.

Esse pensamento utilitarista aplicado nesses casos não é apenas egoísta, é socialmente nocivo: pessoas que cometem barbaridades não sofrem a reprovação social necessárias para que não valha a pena fazê-lo. Não é sobre você, sobre se convém a você consumir aquilo, é sobre o dano social coletivo e difuso de alguém que faz uma coisa muito grave não sentir reprovação e consequências negativas dos seus atos.

Quando falamos de algo muito grave que afeta a todos, o primeiro raciocínio não tem que ser “isso me convém?”. Esse individualismo burro é um dos motivos pelos quais o Brasil tem IDH de Burkina Faso e todo mundo está sempre com medo de ser sacaneado ou passado para trás por todo mundo.

Sinceramente, no patamar em que está o Brasil, a primeira pergunta deveria ser “Como posso agir para tornar esta sociedade um pouco menos merda?”, ou, na versão mais popular, “Como posso agir para tornar esta sociedade um pouco menos merda para os meus filhos”?

Eu sei, eu sei, ninguém pensa na coletividade, as pessoas só querem saber o que é cômodo e fácil para elas. Taí o resultado, essa belezura de país de gente que bomba em rede social quando estupra. E todo mundo reclama que a sociedade seja assim. E ninguém faz sua cota de sacrifício pessoal para que isso mude.

A resposta padrão é “Se é bom para mim eu vou continuar consumindo”, geralmente seguido por uma grande ginástica argumentativa tentando convencer de que consumir o conteúdo não impacta na sociedade, nos atos negativos daquela pessoa ou nos desdobramentos do caso. Então tá, chafurda aí.

“Mas Sally, de que adianta eu fazer se mais ninguém faz?”. Adianta sim, pois você sabe que está de portando como uma pessoa decente, e isso é muito. Isso gera consciência tranquila e a certeza de que você está sendo um bom exemplo para os seus filhos, pois crianças, meus amigos, não se educa com discurso, criança aprende com exemplo. Se o discurso for um o exemplo for outro, elas repetirão o exemplo, por mais que você diga que é errado.

Então, se eu não gostaria que fizessem comigo e se eu acho que a sociedade fica pior quando se dá ibope para criminosos hediondos, por qual motivo vou consumir o que eles oferecem? Por uma mera facilidade ou conveniência? Um raciocínio muito pequeno, minúsculo. Vamos cultivar um pouquinho de ética, só um pouquinho já basta para essa bosta de país dar uma boa melhorada.

Para finalizar, pergunta para o Somir se ele consumiria o conteúdo, por melhor que fosse, de um homem que me estuprou. Depois pergunta se estupro só é tão condenável se acontecer comigo. De nada.

Para dizer que você diria em público que não consumiria mas continuaria consumindo, para dizer que se trouxesse a Copa do Mundo você torceria para o Daniel Alves ou ainda para dizer que o brasileiro é paquita de criminoso mesmo: comente.

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Comments (4)

  • Concordo em banir conteúdo de quem fez algo criminoso ou muito reprovável na vida pessoal. O problema aqui depois de ler essa postagem foi revisitar várias músicas com um olhar mais maduro e ficar na dúvida se seus autores já fizeram algo passível desse banimento.

    Por exemplo, escutei com mais atenção aquela música do The Police “Don’t stand so close to me” e fiquei imaginando no que poderia ter inspirado Sting a ter composto aquela música (pelo que entendi uma estudante que teve relações com um professor e foi descoberta, lembrando que o próprio Sting foi professor de inglês antes de se juntar à banda).

  • vocês são produtores de conteúdo e não sabemos quem vocês são. E se forem criminosos? Oras, o conteúdo continuará o mesmo. Não importa QUEM, importa O QUÊ

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