Corrigindo as religiões.

Críticas são válidas mesmo quando não apresentam soluções. Ninguém é obrigado a saber como resolver um problema que percebeu, afinal, a pergunta vem antes da resposta. Eu e tantas outras pessoas criticam as religiões modernas, pois são elas que impactam negativamente na forma como as pessoas pensam e agem ao nosso redor. Dessa vez eu vou dar um passo além, vou fazer a crítica e oferecer uma solução.

É arrogante querer mexer na forma como instituições milenares funcionam? Talvez, mas é um risco que todos precisamos correr quando expressamos nossas ideias. Se eu tivesse que refazer a ideia de religião na mente do cidadão médio, eu no mínimo trabalharia sobre a confusão que as pessoas fazem sobre suas crenças.

Porque esse é o primeiro ponto: no que o religioso acredita? Isso está bem definido? A minha percepção é que o mundo sofre de uma bagunça ideológica terrível: religião é sobre esperança, conforto, pertencimento, controle, sentido… um monte de coisas que as pessoas querem, mas sem muita lógica do que é mais importante.

Religiões foram formadas de forma bem caótica, juntando crenças e ideias de inúmeras pessoas até algum elemento unificador se estabelecer na cultura local. E aos poucos as pessoas próximas iam alinhando suas visões de mundo ao redor desses elementos. Ninguém nasce com uma religião, elas sempre são aprendidas. A crença em algo maior até pode ser algo instintivo do ser humano, mas exatamente no que varia de acordo com o grupo social que é exposta.

Quando você começa a estudar história das religiões, desde os primeiros registros de construções e sinais de rituais de nossos antepassados, percebe como a ideia de religião parecia mais aberta: várias divindades, muitas variações entre cidades e nações próximas, e um monte de “remixes” de religiões de outros povos. Os romanos famosamente copiaram a lição dos gregos, mas para não alertar o professor, mudaram os nomes dos deuses.

Essa coisa de ter um livro definindo qual é a sua religião é relativamente recente. Mesmo que a Bíblia, por exemplo, tenha sido escrita há milhares de anos, estamos no máximo no segundo século em que os cristãos realmente podem ler o que está escrito lá. Então, mesmo nas religiões que se dizem organizadas hoje, estamos falando de uma fé exercida basicamente no improviso e nas vontades de momento.

Tem um elemento unificador nas populares religiões monoteístas modernas, a figura do deus único, conceitos abertos de bem e mal com recompensa e punição depois da morte; mas ainda estamos muito próximos dos antepassados que cobriam em tempo real qualquer buraco no seu entendimento das vantagens e obrigações da sua religião. Se você sair perguntando para as pessoas o que o deus dela quer que elas façam, vai ter um monte de respostas diferentes.

E se você apontar qualquer incoerência na crença delas, seja por hipocrisia ou por simples falta de lógica, elas vão no mínimo dar um sorriso amarelo e nos piores dos casos tentar te matar. Mas na média é muito improvável que alguém vá perceber um problema e tentar achar uma solução para o que não faz sentido. Religião é tão popular porque une o melhor dos dois mundos: você pode acreditar no que quiser sem sentir que está sozinho na crença. O cristão, o muçulmano, o budista, o judeu, o hindu… todos sabem que no fundo podem mexer nas regras do jogo dentro da própria cabeça, desde que mantenham uma imagem de concordância com o resto da população.

Eu argumento que religiões são tão populares não pela sua rigidez, mas pela falta dela. O ser humano que ajuda o necessitado e mata o inimigo no mesmo dia foi feito para ter uma religião assim: onde tudo pode fazer sentido assim que você quiser que faça sentido. Nós somos uma bagunça ideológica ambulante, e nenhum sistema de crenças muito rígido daria conta de nos agradar.

Então, mesmo em sistemas muito restritivos como em países controlados por teocracias, as contradições acontecem sem parar. É o muçulmano que mata pessoas por desconfiar que são gays, mas faz sexo com meninos porque por algum motivo cultural ancestral, isso pode na terra dele. É o budista que pega em armas para defender sua fé no sul asiático. É o evangélico que fica rezando para bezerro dourado em forma de político…

Às vezes religião é coisa séria ao ponto de matar uma pessoa, às vezes é só uma sugestão que você segue se quiser. Se eu tivesse que corrigir as religiões, eu com certeza pegaria nesse ponto: decide aí, ou seu deus tem regras que devem ser seguidas ou não tem. E se tiver, não é possível que depois de pelo menos uns 50 mil anos de ser humano moderno não tenha aparecido uma fonte confiável dessas regras.

E é claro, eu não estou usando a resposta dos ateus para isso que é “óbvio que não tem uma religião certa porque são todas inventadas”; estou partindo do princípio religioso de que existe algo maior que nós que criou e de alguma forma controla o universo, conscientemente. Se não arrumar essa bagunça de decidir na hora o que seu deus quer ou não quer, não vejo nenhuma função na religião.

Sim, as pessoas brigam e se matam há milênios para decidir qual dos deuses é o certo, mas há de se desconfiar um pouco da profundidade da fé por trás de tantas guerras e massacres: não sei se temos exemplos isolados de disputas por crença em deuses diferentes. Não sem disputa por poder sobre pessoas, terras e dinheiro misturadas. As pessoas usam esses deuses como uma roupa para diferenciar os times, mas raramente vemos uma discussão profunda sobre quem criou o universo como estopim de uma guerra.

Mesmo em casos como guerras civis entre católicos e protestantes, como aconteceu na Irlanda, a coisa não é tão simples quanto rezar para ou chutar a estátua da Virgem Maria. Era uma disputa de poder e terras que usou religião como uniforme militar. Eu falo de tudo isso para exemplificar como no final das contas o problema mais sério parece ser como o ser humano médio simplesmente não respeita religiões.

O ser humano médio se diz religioso, mas não demonstra isso na prática. Nem acho que por maldade, é por incapacidade mesmo. Teologia não é um campo de estudo à toa, são milhares de anos de ideias empilhadas sob a presunção de inspiração divina. Boa sorte arrumando tudo isso e achando a fonte certa de informação, ainda mais considerando que para a imensa maioria das religiões, os deuses não fazem audiências públicas para explicar as coisas.

As pessoas até querem fazer a coisa certa, mas a coisa certa varia de situação a situação, e vivemos tendo que fazer escolhas trágicas na vida. Duas opções que você tem podem estar erradas e certas ao mesmo tempo. Como conectar a ideia de que existe um deus com objetivos definidos te observando ao mesmo tempo que é tudo tão complicado de decidir? Eu duvido, e muito, que só ateus olhem para as religiões e percebam que tem coisa errada e pedidos impossíveis nelas. O cidadão que tem fé percebe também, talvez se sinta menos corajoso para questionar, mas acho impossível que um cérebro humano não se faça algumas perguntas quando a fé bate de frente com a realidade.

E é por isso que eu sugiro uma solução para as religiões: ciência. Não trocar uma coisa pela outra, mas aproveitar a melhor ferramenta de organização de conhecimento que inventamos até hoje. A ciência não é perfeita, mas é a ideia da coisa mesmo: partimos do princípio que não sabemos e vamos buscar a resposta da forma mais confiável possível. E mesmo quando uma reposta aparece, continuamos questionando-a, afinal, se for a resposta certa vai continuar funcionando não importa o que joguemos contra ela.

As religiões têm uma fundação estável na questão da crença em poderes conscientes maiores. Dos aborígenes desenhando em pedras há dezenas de milhares de anos atrás ao cientologista moderno discutindo sobre Xenu e suas naves espaciais, todos concordam que além da nossa vidinha aqui na Terra tem algo mais poderoso que também é capaz de pensar e se comunicar de alguma forma.

Religião dá errado porque as pessoas não percebem que tem uma base comum e ficam discutindo opiniões de opiniões de opiniões de seus antepassados. Religião aguentou tanto tempo não por ter uma mitologia e regras intocáveis, e sim porque mudou e se adaptou aos gostos e ideias de cada povo que pisou nessa Terra. E ela continua mudando, o cristão berrando na igreja neopentecostal de hoje é um bicho completamente diferente do que cantava em igrejas da Idade Média. Valores, conhecimento, estrutura familiar, ideias, desejos… as religiões vão se adaptando superficialmente ao que o povo de cada época e lugar querem, mas nunca permitem revisão profunda do que realmente estão dizendo para os cidadãos.

E sem isso, o que acontece é que não dizem nada que preste. Viram biscoitos da sorte com frases feitas que o cidadão médio meio que entende, mas meio que não entende também. O cristão moderno curte foto de Jesus com rifle na mão na rede social! Cadê a base ideológica? Como as religiões não parecem querer adicionar conhecimento científico moderno nas suas explicações de mundo, o mundo vai embora e deixa elas comendo poeira, correndo atrás de fiéis não com uma ideia central, mas apenas perseguindo modas e fazendo promessas cada vez mais mundanas. Eu tenho certeza que em algumas décadas vai ter pastor prometendo ereções mais fortes e reversão da calvície em templos.

As pessoas ainda têm uma crença em poderes superiores, o “produto” religião vai continuar vendendo, mas provavelmente cada vez mais apelativo e superficial, porque vai continuar teimando em meia dúzia de dogmas incompatíveis com o conhecimento científico demonstrável dos tempos modernos; e para não mexer nisso, se vendendo cada vez mais barato para os desejos e caprichos do cidadão médio.

A bomba que eu quero jogar aqui é: não foi a sociedade que ficou degenerada, foi a religião. A sociedade está mais igualitária, respeita mais os direitos humanos, oferece salvação com medicina e ciência. O mundo secular está mais de acordo com ensinamentos de profetas como Jesus do que a maioria das religiões que se dizem seguidoras dele. As constituições de países democráticos ocidentais modernos são mais cristãs que as ideias proferidas por padres e pastores. Jesus tolerava, perdoava, queria que pessoas vivessem de forma digna e não fossem exploradas por déspotas. Vai ver o que é popular entre os evangélicos hoje em dia e me diz quem está no caminho certo…

Não foi o mundo fora da igreja que se perdeu. Foi o dentro dela. Não aceitam o que a ciência descobriu e insistem em manter a confusão ideológica por motivos cada vez mais óbvios de ganhar dinheiro e poder em cima de gente pobre e desesperada. A religião que incutiu na cabeça dos nossos antepassados a ideia de um mundo melhor se transformou no secularismo, o que ficou no mundo da fé foi toda a sujeira que pessoas poderosas e inescrupulosas não queriam limpar na transição entre antiguidade e modernidade.

Morra um herói ou viva o suficiente para se tornar um vilão. Eu não sou contra religiões por causa do passado, e sim por causa do presente. Eu, ateu, progressista e por vezes até libertário, sou mais herdeiro de tradições religiosas antigas de viver em harmonia e ajudar o próximo do que a maioria das pessoas rezando hoje em dia. Não porque eu me tornei melhor, mas porque não fui exposto a quem tentava me tornar pior.

E enquanto os religiosos não perceberem que o “anticristo vai enganar a maioria das pessoas”, eles vão continuar jogando no time do inimigo. A verdadeira degeneração vem de dentro.

Para dizer que está em choque por causa do último parágrafo, para dizer que as pessoas precisam de religião (pode ser, mas essas?), ou mesmo para dizer que a culpa é do casal gay que quer casar e adotar crianças: comente.

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: ,

Comments (2)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: