Eu tenho a nítida impressão de que ateus respeitam muito mais os deuses das religiões monoteístas do que os próprios fiéis. Eu não acredito em nenhum deles, mas se eu for teorizar como um deles seria, eu com certeza não faria tão pouco deles quanto os religiosos fazem.

Vamos começar pelo temperamento. O ser mais poderoso do universo aparentemente é caprichoso e vingativo. Até hoje quando falam do Titanic, falam sobre como disseram que nem Deus afundaria o navio. O fato de ter afundado é utilizado como uma demonstração de como é perigoso duvidar dos poderes divinos. Quer dizer que por causa de uma pessoa falando algo arrogante, Deus matou mais de 1.500? E de forma horrível ainda.

As pessoas não pensam antes de falar essas coisas? Sério que elas acham que um ser onipotente, onipresente e onisciente vai ficar ofendidinho com uma pessoa e condenar milhares à morte para se provar? É o equivalente a jogar uma bomba atômica num canil porque um dos cachorros rosnou para você. Esse é o nível mental da sua divindade?

Em várias das religiões mais populares, Deus e seus representantes se ofendem profundamente com o uso de seu nome em vão, ou tem regras arbitrárias sobre representações visuais dessas figuras sagradas. Pensa no nível de estupidez: você controla o universo inteiro, mas se alguém diz seu nome num contexto não ideal, você vai lá e causa sofrimento para uma das suas criações.

A gente diz para crianças não serem bobas de deixar palavras as ferirem, mas o absoluto ápice da consciência universal se vinga de quem fala algo que não gosta? Faltou o Tio Ben para Deus, porque ele realmente não entende a ideia de que com grandes poderes vêm grandes responsabilidades. Em qualquer gradação de poder entre nós, meros humanos, já surge um instinto de tolerância, mas isso não vale para Deus?

Explico: se um cachorro (pequeno) te morde ou se uma criança te xinga, você não reage da mesma forma como se outro adulto humano estivesse te atacando. Você entende que é muito mais forte e capaz, e modera sua resposta para não ser injusto com a capacidade do outro. Se Deus é o ser supremo do universo, ele está espancando bebês por chorar demais há milênios. É isso que as pessoas acham que é amor divino infinito?

Eu até vejo uma lógica interna consistente na ideia de que Deus testa as pessoas, se faz parte do seu conjunto de crenças que a divindade em questão serve como juiz do seu caráter, faz sentido esperar testes. Mas aí começa uma categoria muito estranha de supostos objetivos desse deus. Uma coisa é testar sua capacidade de amar o próximo e buscar a paz quando puder, outra completamente diferente é testar sua fé.

A primeira categoria demonstra algum interesse em moldar seu comportamento e visão de mundo. A segunda, a de testes de fé, soa muito mais como alguém carente e inseguro buscando aprovação de suas crias. O que não faz sentido se você também acredita na perfeição divina. Não existe insegurança se você é a definição de superioridade no universo. Deus não pode ser inseguro se sua descrição está correta. Muita gente acaba acreditando que seu deus vai ficar furioso com quem não tiver fé nele. Você se importa com a opinião de uma formiga? Ou de uma bactéria? Esses seres não têm nem profundidade para ter uma opinião que alcance sua existência, mas quando falamos de Deus, ele deixa de ser superior quando você tem algo contra os planos dele. Vira um ser mesquinho na hora.

Ou você é Deus ou você se importa se Claudinei de Itaquaquecetuba acredita em você ou não. Não faz sentido ser diferente disso. Para que Deus aja da forma como muitos religiosos dizem, Deus precisa ter um Q.I. de dois dígitos. Precisa ser incoerente, sem inteligência emocional e francamente, um covarde de ficar maltratando seres tão inferiores. Se eu acreditasse em Deus, eu com certeza não acharia ele tão pequeno e ignorante.

E o argumento clássico de ateus, que os religiosos fingem que não escutam: o inferno é incompatível com a ideia de Deus. Não pode existir a não ser que Deus seja imperfeito e francamente, tenha uma personalidade horrível. Ter um céu não compensa. O inferno é uma punição para a eternidade. Nem mesmo o psicopata mais cruel da humanidade teria maldade em si para sustentar tortura eterna. Depois de uns 100 anos, até o maníaco mais maníaco acharia um exagero.

Mas o Deus infinitamente bom de tanta gente não, ele tem em si o que é necessário para torturar pessoas indefinidamente. Para alguns religiosos mais fanáticos, eu já mereço sofrer de forma agonizante pela eternidade por ter sequer duvidado de sua existência. Deixa eu bater nessa tecla mais uma vez: o inferno é incompatível com a crença em Deus. Ou você acredita em Deus como alguém minimamente bom ou você acredita em inferno. Não dá para conciliar as duas coisas.

Punição de curto prazo já é algo muito discutível para quem teve um mínimo de educação e não foi brutalizado por uma sociedade violenta, punição infinita é inconcebível. Inconcebível. Se seu Deus permite inferno, seu Deus é absolutamente ruim. Nenhuma maldada humana vai chegar aos pés do que é o conceito de inferno. O único ser que fez uma maldade grande o suficiente para merecer o inferno é o ser que criou o inferno.

A única outra alternativa para a existência do inferno seria um deus muito imbecil, que assim como boa parte da humanidade, não consegue entender tempo além de alguns meses e não enxerga consequências em seus atos. Esse deus supremo seria tão inteligente quanto um sacerdote aleatório que só quer levar vantagem sobre os outros. Se esse é o seu deus, eu não sei como você consegue dormir de noite. Se existir uma chance em um bilhão de ir para o inferno, a realidade é uma história de terror e o escritor nos odeia.

E é claro, as regras malucas. Tem que usar um tipo de roupa senão Deus fica triste, tem que comer um tipo de carne num dia do ano, tem que chacoalhar a mão e dizer algumas palavras para provar que gosta dele… como é que um ser que sabe tudo e está em todos os lugares pode ter dúvidas sobre sua fé? Que diferença faz a roupa que você usa se ele está julgando o comportamento? Usar burka é melhor que usar biquíni? Em que contexto? Deus é juiz de concurso de moda? Tem cores preferidas como uma criança autista? Te manda para o inferno se comer camarão?

Que ser bizarro é esse? A primeira coisa que eu presumiria sobre um deus todo poderoso é que ele enxerga além de roupas e do conteúdo do seu prato do almoço. Uniformes e costumes são coisas que nós, meros mortais, usamos para passar mensagens uns para os outros, sabendo que ninguém lê mentes ou entende tudo magicamente. Deus é literalmente um ser que lê mentes e entende tudo magicamente, ele é o último ser do universo que precisa de símbolos e rituais para entender o que acontece.

Deus, nesse contexto das regras aleatórias, é tão capaz quanto uma pessoa normal. Precisa das mesmas coisas que nós precisamos para entender o mundo, toma as mesmas decisões que uma pessoa mediana tomaria e é tão incoerente como uma delas. Se isso não chama sua atenção para a diferença entre a ideia de Deus e a ideia de religiões criadas por pessoas para controlar outras pessoas, eu não sei mais o que pode chamar.

Eu nem vou entrar na falha fundamental entre permitir livre-arbítrio e ser onisciente, ou mesmo a contradição que é realizar milagres diante dessa regra autoimposta, porque isso é demais para os religiosos; mas mesmo considerando que Deus ache normal viver esse paradoxo, a forma como aqueles que acreditam nele lidam com suas intervenções é completamente sem sentido. Pedem para curar uma doença horrível e pedem para acertar o chute no gol durante o jogo.

O foco aqui é a intervenção em si. Pulando o ponto do livre-arbítrio, porque ou você é livre ou Deus te controla direta ou indiretamente, as pessoas acham que Deus é um mordomo caprichoso e/ou preguiçoso, alguém que faz o que você pede às vezes, se der na telha dele. Deus precisa ser avisado de quando deve agir ou não? Ele pode não perceber que você realmente precisa que algo aconteça? Ou pior, ele sabe que você precisa de algo mas quer ver você implorar por isso. Novamente, uma característica muito mesquinha de seres humanos, e dos piores tipos de humanos.

Percebam que este texto não é sobre te convencer a acreditar ou desacreditar em Deus, eu não vejo nenhuma evidência razoável para acreditar, mas não é a ideia de outros acreditarem que me incomoda. Um Deus minimamente consistente com seu papel de ser supremo não seria problema nenhum para mim. Seria alguém tão mais evoluído e sábio que eu poderia ficar tranquilo que o universo está em boas mãos.

Se eu estiver errado e der de cara com Deus ou um de seus funcionários no pós-vida, salvo a possibilidade da realidade ser algo horrível e sermos controlados por um psicopata completamente imbecil, eu só vou rir e dizer que ele “me pegou”. Deus vai rir de volta, porque ele saberia exatamente o que aconteceu. Evidente que o ser superior é mais inteligente, paciente e amoroso do que eu sou.

Mas o religioso médio não parece seguir essa lógica. Para eles, Deus é uma pessoa mesquinha, covarde e incoerente que só calha de ter muito poder. O Deus que é louvado em igrejas ao redor do mundo é uma ofensa à ideia de divindades. Sério, se a sua opinião pessoal sobre Deus for um dos elementos julgados por ele, eu que sou ateu vou tirar nota muito mais alta do que a imensa maioria das pessoas que rezam fervorosamente por aí.

Eu prefiro que vocês não deem dinheiro e poder para estelionatários mentindo que estão falando em nome de Deus, mas se vão fazer isso de qualquer jeito, pelo menos respeitem o cara. Acho que nem Hitler é tão ofendido quanto o deus das religiões monoteístas. Reduzido ao pior da humanidade, intolerante, ignorante e tudo mais que detestamos nas pessoas ao nosso redor. Se eu fosse Deus, eu processaria todo padre e pastor por injúria, difamação e calúnia depois de cada culto ou missa.

Sério, é triste um ateu precisar mandar essa mensagem: respeitem Deus, quem sabe a religião não vira algo menos tóxico se pararem de descaracterizar o suposto líder dela?

Para dizer que eu seria um bom pastor, para dizer que Deus é coisa do passado e agora o lance é política, ou mesmo para dizer que seu deus faz tudo errado para o seu bem: somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • Só de ler a Bíblia já deveria ser o suficiente para quem tem bom senso mínimo.

    Faraó liberta o povo hebreu, mas Deus endurece o coração do cara e castiga ele, ou melhor, as crianças do reino dele (essa é apenas uma das histórias que falam de matar criança, a Bíblia é a coisa menos pró-vida que já vi)…

    Sol que para no meio do céu e coelhos que ruminam…

    Matusalém ser o cara mais velho da Bíblia, a ponto de ter vivido o dilúvio (só fazer as contas com os relatos da própria Bíblia), e ninguém saber responder o que aconteceu com ele.

    Aparentemente só existiam mulheres estéreis, homens jamais. Deus fez milagre para algumas ter filho, mas a maioria, não, que se foda, seu marido que se case com outras.

    E aparentemente ter uma mulher que não fosse virgem na tribo de Deus era pior que ter um estuprador, visto que mulheres não virgens não eram pra casar, mas o estuprador podia comprar sua vítima do próprio pai dela e estuprar ela pelo resto da vida. Ou seja, além de incompetente (designou tantas leis para seu povo pra quê, se Ele é a moralidade do universo e aquele era seu povo? Como que o povo ainda pecava?) Deus ainda tem fetiches problemáticos.

    Aliás, mulheres têm de ser submissas em tudo aos maridos, mas Maria aceitou ter o filho de Deus sem consultar José sobre isso, sob risco de ser punida pelas leis criadas pelo próprio povo do Deus dela, que é pai do filho que ela aceitou ter “pelo espírito santo”…

  • Tem umas teorias aí que dizem que deus e diabo são a mesma “pessoa” Se tem alguém que nos criou e nos controla, nós tamo é muito fudido! Já pensou?

  • Isso só prova por A mais B que não foi Deus que criou o homem a sua imagem e semelhança e sim o contrário.

  • Texto polêmico e super necessário, Sally! Parabéns!

    Indo pro lado filosófico da coisa, acho que Nietzsche e Sartre consegue dar algumas respostas – mas talvez nem de longe satisfatórias -, pra todos esses questionamentos. É aquela coisa, como o ser humano não suporta sequer sua própria existência, tem que criar um ser todo poderoso que supostamente está acima de si mesmo pra poder jogar toda a culpa e todo o combo de ética e moral, como algo externo a si mesmo pra ser seguido e obedecido.

  • Seu pensamento quanto a essa questão é muito parecido com o meu, Somir. E eu acredito que muitos outros Impopulares também vejam essa questão pelo mesmo ângulo. Como de costume, repassei o link da postagem para algumas pessoas. Este texto, aliás, tem muito potencial para gerar muitos comentários não aprovados que depois, em uma futura edição do “Ei, Você!”, ou farão a nossa alegria com humor involunário ou nos causarão pasmo pelo nível abissal de estupidez.

  • Os fanáticos que colam nos vidros de seus carros adesivos onde se lê “Se Deus É Por Nós, Quem Será Contra Nós?” são os mesmos que se pelam de medo de macumba. Que raio de deus “todo-poderoso” é esse – com “d” minúsculo mesmo – que, ao que parece, não é sequer capaz de proteger suas criações dos supostos poderes mágicos advindos de uma feitiçaria que consiste em acender umas velas, juntar um punhado de comidas e sacrificar animais?

    • Des Qualificado

      Tem também aqueles adesivos escritos “foi Deus que me deu” ou “presente de Deus” colados nos vidros de Celtas,Gols,Unos e afins.Que deus mão de vaca é esse que podendo presentear com um Land Rover manda pro seu devoto um popular 1.0 de segunda mão?

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