Massa crítica.

Não sei se todo mundo aqui tem idade para lembrar disso, mas há algumas décadas tínhamos a figura do crente. Não exatamente como em seguidor de uma religião evangélica, mas como um layout de cidadão mesmo: o homem sempre de terno surrado, cabelo curto e bíblia no sovaco. A mulher sempre com a mesma saia até os pés, cabelo desgrenhado muito longo e eventualmente até um bigode. Lembra deles?

Talvez você reconheça o arquétipo de pessoa, mas puxa pela memória: faz algum tempo que você não vê esse tipinho nas ruas, não? A ideia de como um crente deve se parecer até pode ter ficado na nossa cultura compartilhada, mas na prática, o evangélico não é mais um uniforme facilmente reconhecível. Qualquer um pode ser crente moderno. Desde o pastor mais reacionário até a mais explícita modelo do Onlyfans, o crente moderno quebrou com essa imagem predefinida.

Mas tem algo a mais nessa história que pode ter passado batido: no tempo em que o crente tinha um layout definido, se dizer evangélico até levantava algumas sobrancelhas, mas a ideia sobre a pessoa era de “certinha”, tipo o Flanders do Simpsons. Pessoa exagerada na sua fé, mas que não levantava nenhuma suspeita de ser ruim. Muito pelo contrário. Tinha uma aura de confiabilidade.

Atualmente, ainda se fala um pouco sobre essa suposta aura de pureza do evangélico, mas a vida já nos ensinou que não estamos mais falando do mesmo público. Praticamente todo mundo dentro da cadeia é evangélico. Ser crente já não significa tanta coisa assim. Nem para o bem, nem para o mal. Antigamente, o crente era tratado como automaticamente exagerado na sua fé, hoje em dia já não tem esse peso. Metade desse povo é evangélico, siga alguma lógica bíblica ou não.

Curiosamente, no tempo em que o evangélico tinha essa imagem de fanático, também tinha a de pessoa inofensiva. Com o aumento exponencial do número de crentes, começamos a enxergar mais os… dentes deles. O crente raiz não interferia na sua vida, ele seguia sua religião e sempre que possível, tratava muito bem o próximo. O crente moderno parece ser o contrário: frequentemente não segue os ensinamentos de Cristo, mas está sempre animado com a possibilidade de controlar a vida de terceiros.

O crente raiz era engraçado quando entrava em pânico ao ver uma oferenda de macumba na rua, o crente moderno entra com fuzil em terreiro para expulsar adoradores do diabo. É claro que eu não estou dizendo que todo evangélico é um monstro que quer impor sua fé no mundo, só estou dizendo que é algo a se considerar: quando os números de um grupo aumentam a partir de um certo ponto da população geral, algo muda na mentalidade dele em relação aos outros.

Para ninguém dizer que eu estou perseguindo evangélicos, isso não é exclusividade dos seguidores dessa religião, aliás, nem é algo diretamente relacionado com religião. Todo mundo tem a imagem do budista como alguém paz e amor que convive em paz com todos, mas existem países onde eles são maioria, e justamente nesses países existem exemplos de repressão violenta de outras religiões. Em Myanmar, vimos que a maioria budista pegou em armas para reprimir o avanço da população islâmica.

Na União Soviética, a religião era proibida. Mas o grupo que chegou ao poder com essa ideia tinha sua própria ideologia: o comunismo. Na União Soviética, quem não aderisse ao comunismo sofria uma perseguição muito parecida com pessoas de religiões minoritárias em países teocráticos. Existia uma Inquisição Ateia, por assim dizer. Não era necessariamente baseado em escrituras religiosas milenares, mas sim num conjunto de ideias e regras vindas do grupo no poder.

Quando o comunismo começou, eram pessoas dizendo que o cidadão médio estava sendo explorado, vivendo numa pobreza injusta por causa de uma minoria burguesa. As conversas começaram pacíficas, o comunista era apenas uma pessoa com “muito amor pelo ser humano”, tentando convencer os outros que havia algo errado no mundo.

Até que se formou uma “massa crítica” de comunistas na Rússia. Foi quando começaram as primeiras tentativas de golpe. Eventualmente, eles perceberam que tinham músculos suficientes para tentar aplicar sua ideologia no resto da população. Depois de algumas tentativas frustradas, eles finalmente conseguiram. E em pouco tempo não ser comunista deixou de ser algo a se resolver na conversa para crime cuja pena era a morte.

Eu faço essa tangente soviética para estabelecer que o ponto não é sobre o nome do seu amigo imaginário, é sobre quanta gente acredita no mesmo. Deus, Buda ou Marx, dá no mesmo nesse sentido: grupos minoritários tendem a agir de forma pacífica, porque a Lei da Selva para animais sociais como nós prega que o bicho mais fraco precisa de aliados.

Argumento que nem é de caso pensado: é uma conclusão que todos chegamos meio que por instinto. Quem se acha mais fraco que os outros tende a ter mais sucesso de conseguir conquistar a simpatia de mais pessoas. É por isso que toda ideologia tem pelo menos uma fase inicial mais pacífica. Aposto que mesmo o Estado Islâmico teve um começo onde tentavam conversar com pessoas de correntes islâmicas diferentes. Afinal, como aumentar seus números sem uma campanha de captação atraente?

Mas aí, tem um ponto que eu não precisar, mas onde a chave vira. O grupo que era bonzinho e parecia querer conviver bem com todo mundo sente uma vontade incontrolável de ser mais incisivo. Nesse ponto, o que atrai no grupo começa a mudar da parte ideológica para a parte mais prática da coisa: os primeiros a entrar acreditavam na ideia e toparam estar em desvantagem por causa dessa ideia (ou da companhia de líderes carismáticos), mas quando o grupo cresce o suficiente, sua atratividade começa a ser mais relacionada com o poder dos números.

Ser crente no Brasil dos anos 80 era aceitar uma aparência padronizada e ser piada entre a imensa maioria católica. Ser crente no Brasil de 2022 é curtir postagens do presidente e fazer vistas grossas para os malucos que tentam impor à força sua ideologia. Não precisa mais seguir o papo furado de Jesus, basta dizer que é do time dele e seguir sua vida como se nada. Vai no culto se quiser.

O que faz diferença hoje é o poder do grupo evangélico. Tem um atrativo em repetir os discursos conservadores dos líderes ideológicos, a pessoa se sente parte de um grupo forte. É instintivo também querer estar no bloco dominante da sua sociedade. Se eu fosse chutar um ponto onde os evangélicos viraram a chave, eu escolheria a compra da Record pela Igreja Universal. Foi uma demonstração de poder enorme. A parte política veio logo na sequência, alimentada por essa ideia de que agora sim os crentes tinham força.

E antes que você se anime achando que eu estou do lado de alguma religião, não estou. Eu tenho zero dúvidas que se a Umbanda ou o Candomblé tivessem o mesmo poder no Brasil, seriam igualmente escrotos e intolerantes com as outras religiões ou com ateus. Não tem sistema de crença humano imune a isso. Falei sobre os ateus soviéticos justamente para dizer que nem um grupo ao qual eu teoricamente pertenço (ateus, não comunistas) está livre disso.

Os evangélicos são a bola da vez porque eles alcançaram massa crítica de seguidores. Um volume suficiente para parar de mostrar os dentes em sorrisos e começar a mostrar em rosnados. A fase ideológica pura já passou, agora a coisa está sendo jogada no campo do poder. Mostrar poder de interferir na sociedade ajuda a conquistar mais seguidores, e é claro, mais recursos. Não precisa de uma liderança centralizada de verdade, basta que mais e mais pessoas acreditem que estão entrando para o time vencedor.

Lembra dos lacradores dos anos 90? Salvem as baleias, chega de preconceito contra gays… todos muito fofos, pra falar a verdade. As baleias estão relativamente seguras atualmente e metade das pessoas das novas gerações até acham que está na moda ser gay. Eles eram os “crentes chatos”, mas também formaram sua massa crítica. O politicamente correto virou lacração, mas é o mesmo público com mais volume e intenção de exercer poder.

Eu desconfio até que se por acaso do destino os leitores do Desfavor alcançassem uma massa crítica, acabaríamos como um movimento cretino e opressivo que pouco ou nada teria a ver com a ideia original. Por sorte, não temos ideia original para ser mantida (pensamos em tudo).

Parece um processo estatístico, se você parar para pensar: em volumes maiores de pessoas, a chance de recrutar psicopatas, sociopatas, ególatras e estelionatários aumenta sem parar. E quanto um grupo fica grande o suficiente para não ter mais como manter sob controle cada um dos indivíduos, é essa gente torta da cabeça ou mal-intencionada que vai assumindo cargos de poder intermediários. Cultos nascem e morrem pequenos porque tem um líder que não divide poder, mas religiões e ideologias não têm teto para crescimento: são subdivididas sem parar entre grupos menores de influência.

Eu nem comecei este texto esperando uma conclusão, mas uma foi se formando mesmo assim: uma das melhores formas de controlar esse tipo de poder é sempre começar novos e novos grupos, porque eles vão roubando gente das bases dos mais bem estabelecidos, e por sua vez são obrigados a ficar na fase “crente bonzinho”. Quanto mais grupos, maior a chance de eles ficarem travados nessa fase por muito tempo, o que para a sociedade humana não é uma má ideia.

Eu consigo enxergar a internet empurrando a humanidade para os dois lados: mais subdivisões pela possibilidade imensa de encontrar pessoas parecidas, mas ao mesmo maior potencial de criação de massas críticas de grupos mais bem estabelecidos. Como o mundo vai se desenvolver daqui para frente eu não sei, mas como otimista incorrigível, eu acho que o primeiro cenário tem mais potencial: mais e mais grupos disputando atenção, mas cada vez menos com volume de seguidores o suficiente para formar essa massa crítica e partir para a opressão dos diferentes.

Seja como for, eu acredito que seja um excelente papel cívico subverter a fé de todo mundo que você encontra por aí. Seja em religião, seja em modelo de governo, seja em gurus e celebridades… o cínico tem seu papel de correção de rumo. Acho que vou sossegar um pouco da fase compreensiva e começar a ser mais chato com gente que acredita em coisas muito populares. Pode não ser muita coisa, mas é um trabalho honesto.

Deus não existe, seus ídolos fazem muita coisa errada, nenhum sistema de governo é milagroso, a ciência não é perfeita, a culpa provavelmente é sua também e eu escrevo muita bobagem. Sempre que possível, atrapalhe a fé de alguém. A humanidade agradece.

Para dizer que eu já sou chato, para dizer que eu sou tudofóbico, ou mesmo para dizer que seu grupo é diferente: somir@desfavor.com

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Comments (18)

  • Somir, se os crentes dominarem o país isso não fará a mínima diferença. Católicos dominam o país há séculos, mas a visão das elites agnósticas e ateias leva o país para o centro do jogo religioso – e deixam ele lá.

  • está sempre animado com a possibilidade de controlar a vida de terceiros
    Qualquer semelhança com a turminha da militância problematizadora não é mera coincidência.
    Espero de coração que eles se matem.

  • Obrigado Somir por um texto em que podemos falar mal dos crentes, enquanto a sinistra previsão de que eles vão dominar o Brasil não se concretiza.
    O mundo tá tão chato que não podemos nem mais dar nome aos bois. Não pode chamar a michele de fanática, tem que respeitar os evangélicos, não pode falar nada que é taxado de elitista. Ai, tenham dó.
    Na minha cidade do interior, você ainda consegue reconhecer os crentes só pela vestimenta, eles andam em grupos (com crianças obviamente, não ter filho é coisa de hipster e jesus não gosta), as mulheres usam saia (90% o caricato saião jeans) e tem os cabelos compridos. Domingo no horario do almoço eles podem ser vistos aos bandos no supermercado, as irmãs de saia, cabelão escovado e saltos enormes, pois estão vindo diretamente da escola dominical.

    • Mas eles já dominaram. Tem literalmente uma bancada evangélica mandando e desmandando no país. Coisas tradicionalmente católicas, como doces de São Cosme e São Damião, ficam cada vez mais raras. A cultura brasileira está morrendo e sendo substituída por lixo americano protestante e por “culturas” artificialmente criadas pelo agro (sertanejo moderno) e pelo tráfico (funk carioca) como forma de soft power.

  • Eu amo as Américas, aqui todas as religiões e culturas são corrompidas igualmente. A gente põe abacaxi na pizza e leite condensado no sushi, trepa com gente de todas as cores, se apropria de pedaços de várias culturas e religiões como se fosse um bufê e foda-se. Não é uma utopia, mas é bem melhor do que em outras partes do mundo. A gente vê todo tipo de pessoa desde que nasce e não percebe como isso é incrível e devemos valorizar.

    Sim, tem uns extremistas que querem destruir isso e fazer segregação, mas não vão conseguir :)

      • “Eu não teria tanta certeza disso.”
        Boa sorte tentando promover segregação racial/cultural no Brasil, de todos os países. hahahahahaha

        O cara fica o dia inteiro no Twitter e acha que estamos à beira de uma guerra racial. Fala isso pra qualquer um na vida real, tipo num churrasco de família ou numa fila de supermercado, que vão é rir da sua cara ou te denunciar.

  • Banque o Do Contra de vez em quando? É uma atividade saudável, eu diria.

    É quebrando as moléculas que o estômago consegue digerir a comida.

  • “Quer realmente conhecer o caráter de uma pessoa? Dê-lhe poder!” Essa velha frase apócrifa que há tempos circula pela internet, apesar de batida, é verdadeira e aplica-se não somente a indivíduos, mas também a ajuntamentos humanos e, especialmente, aos grupos que crescem até ao ponto de formarem “massa crítica”.

  • É só meter a palavra ‘gospel’ que pode tudo: funk gospel, balada gospel… a religião foi corrompida e a pessoa média só se lembra mesmo dos feriados. Quantos religiosos vocês conhecem que realmente seguem tudo direito?

    Mas não compartilho do seu otimismo enquanto isso não acontecer com as outras religiões. O islã ainda vai dar muito problema…

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