Adeus, boomer!

É uma tendência natural do ser humano racionalizar seus sentimentos. Inventamos línguas e nos comunicamos por palavras. Isso gera uma necessidade fundamental de transformar as sinapses de bilhões de neurônios influenciados por tudo quanto é tipo de estímulo externo e estados internos (como hormônios) em palavras, frases, teorias… é uma forma de tradução do pensamento para a realidade.

Mas muita coisa pode se perder nessa tradução. Mesmo gente muito articulada, isso é, capaz de se expressar em palavras com mais desenvoltura, acaba se confundido e confundindo os outros nesse processo. Eu tenho um vocabulário grande e experiência em resumir ideias grandes em frases curtas, mas isso não me torna imune a enfiar os pés pelas mãos quando um sentimento muito forte toma conta.

É algo difícil por definição. O que está dentro da cabeça é de uma complexidade imensa, é o produto de tudo o que você experiencia no momento e todas as suas memórias. Gente que fala e escreve bem faz essa tradução da ideia para o discurso com mais desenvoltura, mas ainda sim com várias limitações. E se não fosse o suficiente, ainda tem todo o problema do outro entender: você pode usar as palavras mais precisas para explicar uma coisa e se o outro não for capaz de entender, não serviu para nada.

Esse é o ponto de partida para falar sobre uma nova era de populismo se espalhando pelo mundo. Quanto mais gente você quer alcançar ao expressar alguma ideia, mais complicado fica achar as palavras certas para traduzir uma ideia. Uma das soluções mais testadas e comprovadas ao longo dos milênios de vida em sociedade é apelar para o menor denominador comum: o sentimento.

Existem mil variáveis para se considerar no caminho entre o que se sente e o que se expressa em palavras. Cada ser humano nesse mundo tem um pacote único de capacidade de compreensão de palavras e uma história pessoal que não se repete. O que sabemos que costuma ser bem parecido entre todos nós é o sentimento.

Explico: você não consegue prever exatamente o que cada pessoa vai fazer quando tem uma ideia. Alguém que acredita piamente num discurso radical de esquerda ou direita pode agir de mil formas diferentes. Tem gente que observa calmamente, tem gente que vira ativista, tem gente até que resolve cometer atentados violentos… é complicado prever o que uma ideia vai fazer com uma pessoa. Depende de como ela digere a ideia, depende de como ela se sente em cada momento, depende do seu momento atual e das suas memórias.

Agora, alguém com um sentimento puro agindo é bem mais previsível. Até por isso existe o comportamento de bando, sentimento se espalha rapidamente e vira protesto, vandalismo, linchamento… a maioria das pessoas agindo em bando não sabem explicar exatamente por que estavam fazendo o que estavam fazendo se perguntadas depois do fato.

Não estou dizendo que descobriram agora que apelar para o sentimento das pessoas é um grande atalho para gerar ação, mas não é à toa que estamos vendo um ressurgimento de políticos altamente populistas depois de várias e várias décadas de relativa racionalidade na política internacional. Primeiro que as gerações que se queimaram e muito com populistas radicais estão morrendo e dando lugar a gente que nasceu no mundo estabilizado por elas.

Virou moda criticar os “boomers” por terem estragado o mundo em questões econômicas e ambientais, mas nada é tão simples assim na vida: foram essas gerações que estão saindo do mundo agora que criaram uma das eras mais estáveis e racionais da nossa história. Foram essas pessoas que colocaram a ciência em destaque, que geraram partidos mais neutros, que permitiram um avanço imenso nos direitos humanos no último século…

Evidente que essas gerações cometeram erros, todas as gerações vão fazer coisas que as seguintes vão considerar falhas. A que saiu queimada de duas guerras mundiais tinha uma resistência muito maior aos discursos populistas de fundo emocional, porque estava na memória da vida deles como isso causou sofrimento. Eles criaram um mundo pós-guerra que colocava alguns limites nesse tipo de comportamento, e foi nesse mundo que a maioria de nós que somos adultos em 2024 vivemos.

Um mundo que era um tanto quanto insensível aos seus problemas pessoais, com dificuldades de entender a questão de saúde mental e até mesmo os próximos passos depois de parar de literalmente matar grupos minoritários. São falhas deles que temos que continuar resolvendo no Século XXI, mas sem esquecer que a frieza dessas gerações em relação aos nossos sentimentos tem um fundo utilitarista.

Deu errado. Deu muito errado no tempo deles escutar líderes carismáticos apelando para os sentimentos da massa. Deu tão errado que morreram milhões e milhões de pessoas das formas mais brutais possíveis no espaço de algumas décadas. Quem olha para essa parte da nossa história de forma racional percebe o perigo do populismo, quem olha com a lente do sentimento puro acha que era só o sentimento que estava errado.

O que os ditos boomers conseguiram fazer com o mundo foi baixar a fervura do sentimento da massa e colocar no lugar uma esperança de que a ideologia certa resolveria o mundo. Comunismo ou capitalismo, escolha sua solução e siga em frente acreditando que isso vai dar certo eventualmente. É claro que tinha um erro aí, não fazia sentido achar que tínhamos resolvido a questão de organização social e que era só questão de insistir até dar certo. Tanto que a população sente que algo deu errado e não chegou a era de bonança infinita que capitalistas e comunistas prometiam.

E é nesse sentimento que o populismo emocional consegue recuperar terreno perdido. Amarrando de volta os temas: é difícil convencer pessoas por ideologia baseada em palavras, é fácil fazê-las convergirem ao redor de um sentimento. As gerações que ficaram alérgicas a fazer política com sentimento puro praticamente já morreram, deixando no lugar gente que foi criada num mundo que prometia que tudo ia dar certo por causa de ideologia. Óbvio que a humanidade não chegou nesse estado utópico.

Os populistas voltaram porque o mundo estava pronto para eles de novo. Pode ser o conservador mais reacionário ou o lacrador mais progressista, tem algo de comum num sentimento que algo está errado e precisa ser mudado o mais rápido possível. O comunismo morreu sufocado sob os próprios erros e o capitalismo só aumenta a desigualdade entre as pessoas, complicando muito qualquer esperança de ascensão social.

A era da esperança acabou. As ideologias que fomos ensinados que iriam nos salvar tem problemas sérios e não atendem aos desejos das novas gerações. Quando a ideologia não funciona mais racionalmente, a tendência é que o sentimento tome conta. O problema das Fake News, por exemplo, é muito baseado nisso: a pessoa acredita no que ela sente que é certo.

Terraplanismo é tendência num mundo onde as ideias não entregaram a promessa (falsa) de solução de todos nossos problemas. Vai falar o que para o jovem que manda mil currículos para não conseguir emprego e que percebe que nunca vai ter uma casa própria? Que é só ter paciência que o sistema vai funcionar? Quando o campo ideológico está contaminado pelo mofo de ideias que não funcionaram, as pessoas não sabem para onde ir. E essa confusão abre espaço para os sentimentos tomarem conta.

Quem te contar a mentira mais condizente com seu sentimento ganha sua atenção. Pode dizer à vontade que tem uma solução mágica para resolver desigualdade, preconceito e opressão, porque as pessoas estão abertas para ouvir isso agora. A “utopia boomer” de sonho capitalista ou comunista não funciona, o racional não entregou o que prometeu.

Eu entendo quem fica puto da vida com o mundo e quer mudanças. Eu quero mudanças. Mas agora que a geração que nos dizia para baixar a bola com nossos sentimentos está basicamente extinta, o que vai acontecer? Vamos ter que botar a mão no fogo de novo com populistas de esquerda ou direita para ver como termina mal quando pessoas começam a ficar com raiva de outras pessoas que nem conhecem?

As pessoas que diziam que é assim que você termina com Hitlers e Stalins estão quase todas mortas ou próximas de morrer. Elas erraram muito também, mas isso elas sabiam na prática: se deixar populista tomar conta, a gente acaba se matando, e pior, sem entender exatamente o motivo depois. O sentimento faz todo o sentido do mundo na hora, mas quando ele passa, costuma precisar de um malabarismo ideológico daqueles para se justificar.

Não sobrou muita gente nesse mundo que pode te afirmar que é para correr de líderes carismáticos que te dizem que a culpa é dos outros. E em poucos anos, não vai ter mais. Será que a parte boa deles vai ficar ou nem isso?

Os próximos anos nos dirão.

Para dizer que o boomer tem que acabar (vai acabar logo logo), para dizer que sentimentos são mais importantes que fatos, ou mesmo para dizer que sua histeria é a única solução possível: comente.

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Comments (18)

  • O Brasil não tem muita cultura de emprego de meio período, como tem outros paises. Além disso, boa parte dos brasileiros se iludiram com faculdade e esqueceram, até desprezaram, profissões técnicas. Empurram o zoomer para um bacharelado de 4 anos e de empregabilidade incerta enquanto a média salarial de um mecânico de aviões, formado em 2 anos, é 4 mil reais…

    Veja, não estou romantizando profissões técnicas, eu trabalho em uma (sou marceneira) e sei que não é para todo mundo, tem quem goste da monotonia de um escritório e um computador. Não existe trabalho melhor que o outro. Mas se eu tivesse um filho entrando na adolescência agora, eu incentivaria ele a fazer um curso técnico durante o ensino médio antes de pensar em faculdade.

    • Tem essa… países como o Brasil ainda tem uma mentalidade “sinhozinho”, que acha que trabalhos técnicos são inferiores. Pode ser “influencer”, pode investir em pirâmide de Bitcoin, pode ser golpista vendendo produto falso, mas acham que estão descendo na vida se estiverem suando e produzindo coisas com as próprias mãos.

  • Como se a estrutura capitalista atual não fosse responsável pelo populismo e nem fosse capaz de tolhê-lo quando for conveniente, ao menos para não atingir os que mais ganham dinheiro.

      • Na esquerda, ainda é lugar comum dizer que Hitler foi um (sub)produto da elite alemã da época. Logicamente, é uma simplificação porque parte desta elite temia o “impulso revolucionário” do NSDAP e preferia manter-se alinhada aos partidos de direita tradicionais; entretanto, é inegável que a violência seletiva nazista era conveniente para os grandes capitalistas de então, vários dos quais aderiram ao partido ou o apoiaram de uma ou outra forma (inclusive pensando nos ganhos a serem obtidos futuramente). Logo, é possível observar uma correlação entre o desenvolvimento capitalista e o populismo, inclusive nesta conjuntura de predominância do capital financeiro: apesar da crescente radicalização do discurso político, os especuladores continuam ganhando muito e subjugando a soberania dos Estados, independentemente de quem esteja no (aparente) comando político.

        • Que as elites financiam o populismo eu não discuto. Alguém precisa financiar a construção das guilhotinas, e enquanto acreditarem que nunca serão as suas cabeças a serem cortadas, populistas/fascistas são ferramentas de acúmulo de capital. Agora, eu já não enxergo a mesma conexão entre o capitalismo em si e a exploração das elites desses movimentos políticos. União Soviética e China, por exemplo, acabaram em modelos de populismo fascista (revolução, inimigo comum, culto de personalidade…) na mesma proporção em que o Partido acumulava poder financeiro e militar, não precisou de um Henry Ford financiando por baixo dos panos que nem no caso do Hitler. A elite se fantasia de capitalista ou comunista, mas debaixo da máscara ainda é a elite. Eliminar o capitalismo não elimina o populismo, porque dinheiro é só uma representação de poder, não o poder em si. Quando esse pode acumula demais na elite, o mundo abre os ouvidos para quem oferece soluções mágicas.

          Quando eu trago o ponto do fim de uma geração traumatizada pelo populismo, eu nem estou dizendo que o boomer médio sabia muito bem o que estava acontecendo, ele só tinha a memória de como a marionete da elite se parecia. Não é ideal, mas era um ponto positivo que eles tinham, um instinto que parece que não se perpetuou.

          • Convém examinar o conceito de capitalismo de Estado para definir regimes comunistas.
            Além disso, a maior radicalização desses regimes foi exatamente quando havia uma figura disposta a prevalecer inclusive sobre o aparato partidário e sua correlata elite (Mao e Stalin). Não sei se a União Soviética e a China a partir do final da década de 70 encaixar-se-iam em “populismos fascistas”.

    • O populismo é cria da comunicação em massa, coisa que teve um boom no início do século passado com o advento do rádio e vem tendo um renascimento no momento atual, na era das redes sociais.

      • Sim, mas os meios de comunicação em massa foram (e são) instrumentos do populismo, cujas origens estão na massificação da política, após a expansão do direito de sufrágio. O mesmo vale para o Brasil, de certa forma: o sufrágio universal em eleições que não fossem completamente fraudadas e a disseminação do rádio verificam-se especialmente depois do Estado Novo.

  • Somir, isso de abraçar uma ideologia, de esquerda ou de direita, aderir incondicionalmente só porque “a outra alternativa é pior” e tocar a vida acreditando piamente que “uma hora vai dar tudo certo” também não é uma forma de deixar o sentimento prevalecer?

    • Boa questão. Esse fé no sistema não deixa de ser uma religião. Mas eu vejo uma diferença entre radicalizar em cima de opções mais racionais como capitalismo e comunismo do que o populismo do “tem que mudar tudo isso aí” com o líder forte da vez. Seguir uma ideologia ao invés de um ditador (ou aspirante a ditador) me soa como mais racional. Mas, de novo… é uma boa questão. Tem muito sentimento até mesmo nessas ideologias.

      • No Brasil, o que foi dar jeito no populismo e ainda assim de forma temporária foi a Ditadura Militar, que não preciso dizer a merda que foi.

          • Isso é porque você não tem ideia de como era a “República Nova” (denominação para o período que segue do fim do Estado Novo varguista a insurreição em 1964) que nesse quesito era ainda pior.
            E a “Nova República” (pós-ditadura militar) segue pelo mesmo caminho.
            Não tivemos muita trégua nesse campo.

            • Acontece que as rupturas brasileiras são sempre tênues: o golpe de 1964 foi sem dúvida uma insurreição militar, mas com muito suporte político (mesmo que golpistas civis de renome tenham sido marginalizados depois).
              De toda forma, mesmo o Proceso de Reorganización Nacional argentino, além de um trágico massacre em níveis inauditos, foi uma ruptura muito maior com a classe política do que qualquer “revolução” brasileira. Mesmo assim, a classe política permaneceu com sua força e seus vícios e, depois, prevaleceu com nível de renovação relativamente baixo, não somente pela catastrófica situação provocada pelos militares.

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