Em nome de Eus.
Semana passada tivemos mais um atentado terrorista horrível atribuído a fanáticos religiosos na Rússia. Quer dizer, considerando a forma como a Rússia trata sua política internacional, pode ser meio difícil dizer que é apenas uma questão de fanatismo violento por uma religião ou outra… é complicado.
Por isso eu queria deixar registrado aqui o conceito de “Eus”, o deus da sua causa pessoal, que se mistura com a fé em vários dos atos mais selvagens que o ser humano comete um com o outro. E se você enxerga aqui uma apologia à religião, lembre-se que estamos comemorando a Semana Anta. Vamos falar sobre como as pessoas distorcem crenças religiosas como justificativa para inúmeras barbaridades, mas isso não tira a mancha de glorificação da irracionalidade da religião.
Não existe ação sem motivação. Se a ideia por trás de um ato é friamente calculada ou resultado de passionalidade descontrolada, não muda o fato de que é uma sequência “lógica” dentro da cabeça da pessoa. E como vemos em vários exemplos históricos, não só é uma lógica, como muitas vezes é uma lógica baseada no que a pessoa acha que é o certo, ético e moral.
Por isso eu vou arriscar dizer que a imensa maioria da humanidade não acredita em Deus, e sim em Eus. Uma entidade que ela cria dentro da mente para justificar a forma como age e para reforçar suas crenças como se viessem de fora. O crente em Eus trata religiosidade como se fosse uma mera extensão da sua vontade. Eus é esse amigo imaginário que sempre concorda com você: quando você se sente bem com o que faz, Eus está de acordo; quando você se sente mal, Eus fica bravo.
E aqui, talvez a coisa mais maldosa que um ateu possa dizer para um religioso: é bem provável que o cidadão médio não tenha capacidade intelectual de ter uma religião. Essa coisa de despersonalizar sua divindade e pensar nela como se fosse um ser separado de você é muito complicada, exige pensamento abstrato num nível que simplesmente não vemos nas pessoas comuns.
Existe algo fundamentalmente quebrado na ideia de imaginar um ser superior a você. Como entender o que você não… entende? Vejam bem, a gente pode lidar com a ideia de que existem pessoas mais inteligentes que nós, mas tem um impedimento básico de imaginar como é a inteligência dessa pessoa. Para entender de verdade o que seria essa inteligência superior, nós precisaríamos ter essa inteligência superior. E se tivéssemos, a outra pessoa não seria superior.
Se uma divindade tem uma capacidade de entendimento inconcebivelmente maior que o nosso, não cabe na cabeça. A criação desses “euses” era inevitável, a partir do momento que você tenta colocar um deus dentro da sua mente, ele não cabe. O que cabe é o que você já entende sobre o mundo. O limite da divindade é o seu limite.
O meu ceticismo sobre a fé alheia não é só uma questão de achar que as alegações fantásticas das religiões sobre passes de mágica, milagres e criaturas impossíveis não fazem sentido no mundo real; é especialmente sobre a capacidade real de um ser humano lidar com algo tão maior que ele. Os deuses das religiões mais populares variam de acordo com a pessoa que acredita neles.
A pessoa brutalizada e limitada intelectualmente enxerga um ditador cósmico que vai a recompensar pela fidelidade. Os atentados realizados por fanáticos religiosos são provas disso: expressam uma vontade de resolver problemas com extrema violência, enxergando subjugar o próximo com sangue e fúria como uma forma válida de expressar sua fé. Querem mostrar serviço para seu deus, mas só conseguem chegar na profundidade do seu Eus. Se a pessoa é violenta, Eus é violento.
Mas é claro, nem só de ataques brutais contra inocentes vive a religião institucionalizada, a prova que essas pessoas não são a maioria está no fato de ainda estarmos vivos. São bilhões e bilhões de pessoas se dizendo religiosas, e em média passamos pela vida sem sermos explodidos ou metralhados por elas.
A partir daqui eu monto mais um argumento sobre como Eus é de longe a divindade mais popular do mundo: a forma infantilóide como o ser humano médio trata seus pedidos para o teórico ser mais poderoso do universo. Uma criança pedir uma bicicleta (hoje em dia tablet) para Deus numa prece antes de dormir é uma confusão compreensível sobre o propósito de uma divindade criadora. A criança ainda não entende as sutilezas da vida e até por causa da relação com os pais, tem desculpa para achar que é assim que seu deus funciona.
O problema é que o cidadão médio não cresce nesse sentido. O povo na igreja está pedindo dinheiro, carro importado, casa com piscina… ainda é uma relação infantil com seu deus. Se você pode trocar Deus por Papai Noel no pedido e ainda fazer sentido, talvez esteja na hora de rever sua relação com a religião. É um tema mais complexo, mas até no caso de pedir coisas como saúde e amor tem algo mal resolvido em como se enxerga a divindade. Ela está lá para isso? Para te dar coisas em troca de crença?
Eu acho muito provável que se olharmos a fundo para as pessoas religiosas, a maioria reza mesmo é para Eus, o reflexo das suas ideias e desejos pessoais. Um ser que desvia bolas para entrar no gol e dá mansões para influencers do TikTok. Eus ajuda as pessoas que você gosta e pune quem você não gosta. E se não acontecer o que você espera, na verdade é um plano mais complexo que no final das contas vai desembocar em ajudar quem você gosta e punir seus inimigos.
É muito complicado acreditar num deus que age de forma separada do que você quer. Em tese as religiões até mencionam que existe uma vontade divina fora do nosso controle, mas fatalmente voltam para promessas de intervenções divinas favoráveis em troca de fé ou mesmo doação de tempo e dinheiro para a igreja. A coisa simplesmente não funciona em largas escalas sem um Eus mexendo no mundo para validar suas vontades.
Se as religiões mais populares mudassem o discurso para dizer que não adianta rezar porque Deus nunca vai mudar seus planos por sua causa e complementar com a ideia de que um ser que tudo sabe e está em todos os lugares não precisa ouvir cantoria desafinada para saber que você acredita nele; será que ainda seriam religiões populares? Será que Deus sobrevive no inconsciente coletivo sem o Eus?
Eu aposto que não. Atentados violentos não são a regra, mas são um indício importante que as pessoas desconectam a ideia abstrata de divindades das suas ações diárias. Colocam seus deuses no bolso como álibi para qualquer comportamento que lhes pareça certo na hora, e se algo sair errado, tiram do bolso e pedem perdão para eles.
É simples imaginar uma pessoa parecida com você, é simples imaginar uma pessoa que está contra o que você pensa, afinal, é só inverter o sinal das suas crenças; mas não é nem um pouco simples imaginar alguém tão acima do que você é capaz de conceber como um deus criador. Um Deus grande de verdade está tão preocupado com sua orientação sexual quanto você está preocupado com o caminho que uma formiga faz entre uma folha e sua colônia.
E por mais que eu me perca em fantasias de superioridade intelectual às vezes, está muito claro para mim que um ser consciente tão acima de mim quanto um deus teria uma percepção gigantesca da realidade, algo que torna a maioria das nossas ações inconsequentes. Eu tenho que me esforçar para relevar os problemas banais da vida, porque eu estou aqui embaixo lidando com tudo. Mas assim como os problemas de uma criança me são mais leves de lidar por causa do aprendizado e da experiência, faz muito sentido que um deus esteja ordens de magnitude acima da preocupação com a roupa que você usa, para que lado você reza, que comida come…
Eus é obcecado com comportamento, sexo, dinheiro, status… ele age em cima desses pontos porque é isso que o cidadão médio quer que ele leve em consideração. É isso que importa para os fiéis de Eus, e é isso que ele entrega para eles. A ilusão de importância dos seus medos, inseguranças e ansiedades cotidianas. Validação. O terrorista acredita que foi instrumento da vontade divina, porque isso torna suas ações justas e evita que ele lide com o fato de ter destruído a vida de inocentes e suas famílias.
Sem Eus, isso começaria a doer na maioria das pessoas que não são literalmente psicopatas. Com Eus você pode fazer um monte de coisas erradas com a certeza de que está no caminho certo. Seja violento, mentiroso, ganancioso, tudo o que quiser, porque Eus está lá para resolver qualquer incômodo interno. Deus é um ser muito distante e superior para competir.
É meio que um argumento comunista: será que religião dá errado porque as pessoas acabam fazendo do jeito errado? Pode ser. Mas temos um problema social ainda mais sério que o do comunismo: é raro ver alguém ir contra a religião como ferramenta de descontrole social. Formou-se uma certeza que é a crença que mantém a humanidade minimamente funcional, mas nas brechas dessa certeza (que eu acho muito furada) as pessoas não percebem quando estão radicalizando e deixando Eus tomar conta da sua mente.
Algo que eu via mais antigamente era um mínimo de repressão social ao religioso exagerado. A gente ria das crentes da saia jeans até os pés que não se depilavam. Não era o ideal, até porque é bem mesquinho encher a paciência da pessoa por causa de roupa, mas havia uma mensagem escondida ali sobre passar do ponto. Num século XXI cada vez mais preocupado em não reprimir o próximo, seja por questões de justiça social ou mesmo por medo de lidar com alguém maluco pela guerra ideológica vigente, tem muito mais gente fanática escapando de ser no mínimo questionada pelo que diz e faz por aí.
Eu sei que muita gente vai dizer que perseguem religiosos ou que religiosos perseguem mais atualmente, mas isso não é algo demonstrável em números. Crentes e lacradores aumentam seus ranques sem parar, vantagem para os crentes que tem mais entrada na parte pobre da população. A verdade é que estamos mais livres. Todo minuto alguém aceita Jesus ou pinta o cabelo de azul.
Mas é uma liberdade que não vem de graça. Assim como o povo mais progressista perde a mão em teorias sociológicas cada vez mais desconectadas da ciência, o religioso moderno vai se enfiando cada vez mais fundo no conceito de Eus. Radicalizar é visto como algo valioso, e é claro, a pessoa radicaliza naquilo que já acredita e que pode defender de questionamentos alheios.
E isso impede que o conceito de religião seja visto pelo seu ângulo mais abstrato de despersonalização (e sim, a “religião lacradora” tem elementos disso, embora eu ache muito mais simples de corrigir a rota se quiserem), porque já começa difícil tentar conceber o conceito de um deus todo poderoso muito mais inteligente, experiente e culto que você, e se você não for exposto aos questionamentos necessários para desenvolver essa capacidade de pensar além do seu mundinho, é claro que vai acabar rezando para Eus.
Vacile um segundo e seu deus fica do seu tamanho. Comete os mesmos erros, ignora os mesmos fatos e acaba apenas como amigo imaginário de uma criança pedindo brinquedo ajoelhada do lado da cama. E pior, uma criança que não tem medida de proporcionalidade, que não entende que o que te incomoda vai passar, que não aprendeu ainda como o que dói nela dói nos outros também.
E em nome de Eus, essas crianças começam a acreditar que sabem como resolver todos os problemas do mundo que dizem ter sido criado por Deus. Religião de verdade é complicada demais para esse povo. Eu gostaria que as religiões sumissem não por raiva de um ser que nem acredito que exista, e sim porque as pessoas que as seguem nem o básico conseguem fazer.
Rezam para si, adoram-se acima de tudo e se sentem justificadas em qualquer coisa que fazem. Parece uma boa ideia um mundo lotado de gente assim?
Eu não acho.
Para dizer que Eus vai me punir (sim, eu sou bem autodestrutivo), para dizer que ateu não tem lugar de fala, ou mesmo para dizer que Deus te disse que você está certo: comente.
F5
“Polêmica que deveria gerar super teses e pouquíssimos mimimis.”
Anônimo
Vou rezar por você, Somir. *brincadeira*
“as pessoas distorcem crenças religiosas como justificativa para inúmeras barbaridades”
Se parar pra pensar, na verdade não são os radicais que estão seguindo as crenças corretamente? Aqueles livros são cheios de sangue, guerra, violência, abuso…