
Na privada.
| Somir | Flertando com o desastre | 8 comentários em Na privada.
Recentemente, vimos dois casos de serviços prestados pela iniciativa privada para o Estado dando muito errado. Primeiro a falha grotesca de um laboratório de análises que deixou órgãos infectados com HIV serem colocados em pessoas, e mais recentemente o fracasso da operadora de eletricidade da capital paulista em restabelecer o serviço para centenas de milhares de pessoas depois de uma tempestade. Prato cheio para os detratores da privatização.
Antes do Estado como conhecemos, tudo era privatizado. Cada um por si, dependendo do próprio esforço, dinheiro ou de contatos para conseguir o básico do básico para sobreviver. Claro, podemos colocar várias aspas nesse privatizado, mas o conceito básico era que o cidadão não tinha direitos como conhecemos hoje, dependia muito mais do que ele conseguisse em sua comunidade. Se você não conseguisse contar com a simpatia daqueles mais próximos, não teria uma rede de proteção em caso de necessidade.
Podemos argumentar que esse é o estado natural das coisas. As pessoas precisam se organizar para criar essas redes de proteção, um pensamento bem mais abstrato que o habitual, investindo em conjunto para eventualmente usar no futuro. Entidades públicas que cuidam de coisas como abastecimento de água e energia, segurança, saúde e até mesmo sistemas como seguro-desemprego são um avanço racional da espécie.
Mesmo que a vantagem imediata de pagar por uma instalação elétrica acabe assim que os fios chegam na sua casa, vamos além e pagamos de forma solidária pelo avanço da rede às casas depois da sua. Afinal, o primeiro que recebeu eletricidade fez isso por você um tempo atrás. Eu gosto de fazer esses parágrafos de obviedades porque depois de milênios de sociedade, é normal esquecer onde começa a lógica da coisa e ficar discutindo apenas os problemas que estamos vendo agora.
Empresas estatais começaram porque não havia incentivo financeiro imediato para a iniciativa privada providenciar serviços para a população. O Estado (democrático ou não) tinha planos de longo prazo e capacidade de financiá-los através dos impostos, então o Estado se ocupou de muitas dessas obras e redes de segurança social enquanto elas eram ralos de dinheiro. Nem todos os países usaram o modelo de empresas estatais, mas basicamente todos deram algum jeito de financiar esses projetos enquanto não era possível lucrar com eles.
Eis que no século XX as pessoas percebem algo importante: pelo menos em países que começaram as obras estruturantes mais cedo, o básico estava pronto. Com uma maioria da população já servida de serviços essenciais, começava a fazer sentido para a iniciativa privada assumir algumas dessas responsabilidades. Se não tinha mais que investir do zero, havia margem para lucro, mesmo sendo obrigadas a continuar o trabalho do Estado.
Para a surpresa de ninguém, assim que ficou claro que tinha dinheiro nisso, muita gente ao redor do mundo virou defensora ferrenha da privatização. Vários países passaram por fases de privatizações, o Brasil é um dos exemplos: mais e mais serviços que eram públicos viraram privados. O argumento nem era ruim, empresas sem concorrência como as gigantes estatais tendiam à estagnação, virando cabides de empregos e frequentemente vistas em escândalos de corrupção. A iniciativa privada teria interesse em oferecer um serviço melhor justamente por causa da concorrência e da tendência de oferecer qualidade extra para não perder seus clientes.
Em tese, excelente. Na prática… há o que se discutir. O sistema de telecomunicação brasileiro era jurássico antes da privatização. Eu lembro da minha infância onde você alugava um número de telefone, porque comprar um era impossível com o salário médio, e a fila de espera para a estatal entregar um novo era gigantesca. Hoje temos uma das redes de telefonia celular mais poderosas do mundo porque a concorrência era muito forte, e o povo estava louco para dar dinheiro para quem oferecesse as soluções mais modernas. Mercado extremamente lucrativo, e que o Estado simplesmente não tinha capacidade de atender de forma decente.
As empresas privadas pegaram uma rede que já existia e melhoraram absurdamente, afinal, começava uma nova era de comunicação que colocava gastos com telefonia e internet nas prioridades do cidadão médio. A cobertura não é perfeita, mas o Brasil não fica devendo muito para nenhum país desenvolvido em questão de rede móvel e internet. Privatização que deu certo. Nesse ponto estamos bem, com um serviço relativamente barato e disponível para a maioria.
O problema é achar que isso é o verdadeiro potencial da privatização. Isso é o verdadeiro potencial de um dos mercados mais lucrativos da história. Internet e celulares vão ser definidores de toda uma era da humanidade. Eu ainda aposto que historiadores futuros vão marcar o começo do século XXI como algo relevante o suficiente para marcar o fim da Era Industrial e o começo da Era da Internet. Então, era meio que garantido o sucesso da privatização nesse setor.
Mas o Estado não vive só de fornecer dados para pessoas vendo vídeos curtos, tem toda a parte de entregar água, rede de esgoto, eletricidade, saúde, segurança… coisas que com certeza geram muito dinheiro, mas não são definidores de uma era histórica. São necessidades constantes que não vão explodir em popularidade e interesse. É aqui que precisamos entender a função não-lucrativa do Estado.
Eu não sou contra privatizações, mas sou contra esquecer o começo da lógica: trocar impostos por serviços, serviços que derivam de direitos que todos concordamos em ter e compartilhar na hora de montar um Estado. A conversa, como tantas outras hoje em dia, gira em falso por causa de ideologia sem sustentação na realidade. Privatizar não é entregar o Estado para a burguesia nem é solução óbvia para a ineficiência da máquina pública. Privatização é uma escolha extremamente dependente do potencial de cada área.
E eu duvido muito que todas as áreas tenham potencial lucrativo. Não sem pegar alguns atalhos que ferem a qualidade do serviço prestado. O laboratório carioca e empresa de energia italiana tinham como entregar resultados melhores e não cometer falhas bizarras, mas isso comeria suas margens de lucro, talvez até tornando o contrato deficitário. Continuam tão culpados como antes, mas quem entregou o serviço para a iniciativa privada tem culpa compartilhada. Ninguém precisa ser avisado que empresas visam o lucro e que lucro também vem de corte de custos.
Não tem nada de esquerda ou direita sobre isso. Cada serviço tem seu potencial de lucro, que varia de acordo com o tempo. A entidade criada por nós para engolir prejuízos financeiros em troca de ganhos não financeiros se chama Estado. Nenhuma outra é criada para funcionar assim. Até mesmo as ONGs tem que achar alguma forma de se financiar, porque ninguém é literalmente obrigado a pagar por elas.
E inclusive, o poder de usar a força para pegar dinheiro de você foi dado ao Estado justamente por causa disso. Percebam que na base da ideia tem uma troca grandiosa: aceitamos que uma entidade fosse justificada em te prender e arrancar seus recursos na marra porque em troca ela usaria esses recursos para o seu bem futuro sem se preocupar (demais) com lucro. Está meio que na alma do Estado ser um ralo de dinheiro.
Seja você defensor de um governo comunista ou de anarquia capitalista, acredito que todos podemos concordar que o Estado não é economicamente eficiente. Infelizmente parece que a maioria das pessoas hoje em dia não sabe lidar com esse elemento básico: a turma que se diz de esquerda acredita que o Estado pode chegar nesse nível de eficiência e a turma que se diz de direita quer otimizar o Estado até ele dar lucro financeiro!
E a ideia da coisa se desfaz. É para ser uma máquina dispendiosa mesmo, porque o que entrega não se mede em dólares ou reais. Se você coloca o Estado para fazer coisa de empresa com fins lucrativos, ele faz tudo errado. Se você coloca empresa com fins lucrativos para fazer coisa de Estado… adivinha só? Produção e distribuição de eletricidade tem que dar lucro para um país funcionar? Testes de sangue para definir se órgãos estão contaminados por uma doença incurável?
Nesse medo de uma parte do espectro político admitir que Estado é ruim de negócio e na teimosia do outro em achar que tem que ter lucro até em oferta de sopa para morador de rua, ficamos nessa discussão inútil. Não existe isso de ser contra ou a favor de privatização em linhas gerais, pelo menos não se você não quiser ter uma opinião estúpida que desmonta no primeiro exemplo contrário.
Você não é de esquerda se for contra uma privatização, nem é de direita se for a favor. Cada função do Estado tem que ser analisada para ver se vale a pena abdicar da ideia de “ralo de dinheiro” inerente ao Estado. Como era lucrativo vender celular e plano de dados para pobre, as empresas de telecomunicação avançaram o Brasil 100 anos em 10. Ponto para a privatização.
O Estado já tinha sangrado bilhões começando o processo de montar a infraestrutura inicial, renunciou a um lucro considerável se tivesse segurado o monopólio, mas esse lucro compensaria a lentidão e a burocracia de uma só estatal carregando o país rumo ao novo século? Eu acredito que não. Gostem ou não de ver todo mundo com um celular na mão, isso é fruto da iniciativa privada, o Brasil como entidade jamais faria isso nessa velocidade.
Perdemos dinheiro como Estado, mas ganhamos serviços melhores depois de várias décadas. Isso não quer dizer que outras áreas estão no mesmo ponto de virada entre torrar dinheiro com quem não vai pagar por isso e negócio bilionário que imprime dinheiro para quem investir mais nele. O que estamos vendo nas notícias recentes é prova de que nem todo serviço oferecido pelo Estado funciona melhor com fins lucrativos.
Sem contar que quem está no controle do Estado morre antes de diminuir um centavo nos impostos que pagamos. Se as forças de mercado não agirem para derrubar os preços desses serviços, pior dos dois mundos: você continua sendo extorquido pelo governo e aparece ainda mais alguém no meio do caminho para pegar atalhos e economizar onde não deve nas coisas que você mais precisa.
Até de um ponto de vista capitalista precisamos tomar cuidado com a ideia de que tudo pode ser passado para a iniciativa privada: o barato sai caro e o poder de compra do cidadão diminui se for sugado pelo Estado e por empresas picaretas ao mesmo tempo. Alguém sem escrúpulos consegue lucrar em qualquer situação, e quase sempre o mais fácil é cortar qualidade do serviço.
O Brasil é um país muito atrasado e muitos dos serviços que o Estado provém são ruins o suficiente para precisar de muitos e muitos anos de investimento sem esperança de lucro para começarem a parecer com algo decente. E nenhum desses serviços melhora com privatização se quem vier cuidar do serviço tiver que arcar com esses custos sem previsão de virar o jogo e começar a lucrar de verdade.
Está mais do que na hora de muitos de nós que não queremos o rótulo de esquerda começarmos a rejeitar mais a ideia de privatização. Não é uma solução mágica, nunca foi. E mesmo que você queira um Estado mais eficiente e menos burocrático, precisa aceitar que na alma do sistema todo está a presunção de investimento sem esperança imediata de retorno. Estado não só pode como deve ficar um pouco no negativo. Não é defeito, é parte do pacote mesmo.
Nem tudo nessa vida é lucro. Às vezes só precisamos sobreviver mesmo…
Para me chamar de comunista, para dizer que é só matar os pobres, ou mesmo para dizer que a esquerda vive na Suécia, a direita nos EUA e a gente no inferno: comente.
“Se você coloca o Estado para fazer coisa de empresa com fins lucrativos, ele faz tudo errado. Se você coloca empresa com fins lucrativos para fazer coisa de Estado… adivinha só?”
Pois é, e se a empresa com fins lucrativos cria um novo serviço que o Estado acabou sendo obrigado a assumir depois?
Em termos históricos, lembro de dois exemplos na Inglaterra que começaram com a iniciativa privada que, por conta dos erros e falta de critério, foram repassados para o Estado.
Primeiro foram os bombeiros. Inicialmente, as brigadas foram criadas pelas companhias de seguros, com cada imóvel segurado identificado por uma placa na sua fachada para orientar os bombeiros a prestar seus serviços (e, ainda assim, conforme a seguradora). Naturalmente, o fogo era mais democrático em suas escolhas…daí no começo do século XIX, os bombeiros passaram para a esfera pública.
O segundo foi o metrô, o primeiro do gênero no mundo (a primeira estação saiu em 1863, 25 anos antes de nos livrar…de libertarmos os escravos). A preocupação com o tráfego e a proibição de trens passando no centro de Londres criaram a oportunidade para diversas companhias privadas abrirem sem qualquer critério linhas ferroviárias que se espalhavam por baixo de Londres, conectadas aos arredores ainda virgens, fazendo propaganda justamente do acesso a uma natureza exuberante que, ironicamente, seria destruída pela vinda de novos moradores e da construção de suas casas nos subúrbios (a vida lá é um contínuo senso de humor)
A competição por linhas era tão ferrenha que variava entre os extremos de ter duas ou três linhas paralelas de diferentes companhias competindo por trechos com maiores possibilidades de passageiros (com duas, três estações uma do lado da outra, sem qualquer interligação) e outros lugares inexplorados, atravessados por linhas dessas companhias que levavam do nada ao lugar nenhum (e o passageiro que se vire para pagar as diversas tarifas cobradas das companhias conforme seu trajeto). Essa combinação de exuberância e ineficiência fez diversas dessas companhias irem à falência (e diversas estações virarem elefantes brancos), o que motivou o Estado a criar nos anos 30 uma companhia que adquiriu todas essas linhas, a fim de racionalizar o serviço. Se hoje Londres tem uma rede bem servida de metrô e de ferrovias, foi por conta do investimento privado (e não público) a fundo perdido no início…tanto que uma linha inteiramente nova de metrô só foi criada no final dos anos 60, pelo fato da empresa pública ter que equilibrar as finanças para dar conta dessa estrutura que já era gigantesca…
Ou seja, se considerarmos essa terceira possibilidade, o debate fica ainda mais complicado…nem vou entrar na seara dos criptoativos, com o Estado querendo criar suas próprias moedas digitais quando ainda nem sabe como vai fiscalizar o setor…meldels…
Suellen, o que você disse sobre as brigadas de incêndio criadas por companhias de seguros londrinas me fez lembrar desse trecho do programa britânico “Horrible Histories” (“Deu A Louca Na História”), que achei no YouTube e que ilustra justamente isso:
https://www.youtube.com/watch?v=tm4i-aYJY_0
Obs.: O vídeo está com o áudio original, mas dá para configurar o player do YouTube para exibir legendas em português clicando no ícone da “engrenagem”.
Esse seu vídeo me fez lembrar de uma série que passava na TV Cultura, sobre um telejornal que passava notícias de fatos históricos. Aí nos comerciais, vendiam esses serviços, de bombeiro, e por aí vai.
É o caso também da telefonia no Brasil. O serviço foi estatizado (ainda que não totalmente) na década de 1960. Se o serviço no final do século passado não era lá aquelas maravilhas, pensa que em meados do século era ainda pior, com muitos telefones ainda sendo manuais e pra fazer uma chamada, você ficava na dependência da telefonista.
“(…) pior dos dois mundos: você continua sendo extorquido pelo governo e aparece ainda mais alguém no meio do caminho para pegar atalhos e economizar onde não deve nas coisas que você mais precisa.”
“Alguém sem escrúpulos consegue lucrar em qualquer situação, e quase sempre o mais fácil é cortar qualidade do serviço.”
Sempre somos “componentes do Estado e do Mercado como sociedade”, sermos qual “sistema (de sistemas) misto” é que não encontramos para ainda mais além da (dita) telefonia/tele(ou tela)comunicação…
Sobre maneira de eu ser específico num “setor de setores” que já estive por tempo demais em meio a piores BMs: sou a favor de muitíssimos mais investimentos em Ensino Fundamental I e II, se bem que mesmo para isso eu continuo contra privatizações absolutas de universidades porque (pelo menos em quantidade) já há tantas concorrências…
O problema não é apenas reduzido a ser privado ou estatal. Nenhuma abordagem é melhor que a outra por definição.
O problema das administrações estatais é porque as empresas se tornam mera moeda de troca entre políticos que estão cagando e andando para as pessoas atendidas por essas empresas. Prestar o serviço às pessoas se torna muito menos que uma prioridade nessa abordagem.
Por outro lado, quando essas empresas passam à iniciativa privada, a gestão de contratos é sofrível. Essas empresas entregam muito menos que o acordado e não sofrem nenhuma punição por isso.
Seja administração estatal ou privada, o povo deve cobrar um mínimo de qualidade nos serviços. E cobrar punição a quem deixar a população na mão.
A única coisa que melhorou com privatização foi a telefonia. Eu sou velho suficiente pra ter conhecido a Light antes de privatizar e a CEG que virou Naturgy no RJ e depois disso foi só ladeira abaixo. Querem privatizar os Correios pra ficar igual ao lixo das transportadoras jogando encomenda pelo portão ou entregando pra vizinho desconhecido ficar com as compras. Sou muito contra privatização porque além se maia caro o serviço piora.
Também sou contra, tem coisas que deveria ser de serviço do estado mesmo, não tem jeito.