Carros voadores.

Quem cresceu no final do século passado tem na memória afetiva uma série de imagens sobre um futuro em que todos os carros voavam pelas cidades, desde desenhos como os Jetsons até filmes como Blade Runner pintavam esse cenário onde voávamos para todos os lugares com a mesma facilidade com a qual atravessamos as ruas e estradas dos tempos atuais. Mas a coisa não funcionou dessa forma… por quê?

Primeiro, o mais óbvio: voar é complicado, e cada vez mais caro de acordo com o tanto de peso que você tenta tirar do chão. Esperávamos por alguma tecnologia milagrosa que revertesse a gravidade, mas ela não veio. E se você estiver um pouco mais inteirado sobre os caminhos que a ciência segue atualmente, vai perceber que nem sequer entendemos o que é a gravidade. Sabemos a velocidade com a qual uma maçã cai, mas não entendemos o processo real que a faz cair. E nem porque as contas não batem quando olhamos para o universo nas suas maiores escalas.

Pode ser uma partícula, pode ser efeito colateral de outras forças, pode ser alguma questão ainda não entendida… matéria escura e energia escura são resultados da gravidade não fazendo o que esperávamos dela a partir dos cálculos feitos aqui na Terra. Em resumo, antes de manipular essa força fundamental, precisamos entender essa força fundamental.

E sem alguma tecnologia que anule a gravidade, estamos abraçados com sabiás e moscas na nossa capacidade de navegar pelos céus. Aviões e drones são adaptações das soluções encontradas pela natureza para voar, e com todas suas dificuldades. Quanto mais pesado um objeto, mais energia precisamos para fazê-lo subir e se manter em voo.

Pássaros e insetos evoluíram para manter um peso muito baixo, mesmo os supostos dinossauros voadores (não sabemos se ficavam muito tempo no ar ou se só planavam de tempos em tempos) ainda não eram nem uma fração do peso dos seus contemporâneos terrestres. Gravidade e resistência do ar são tranquilas para lidar com o tamanho de um ser humano médio se estiver no chão, mas as coisas começam a ficar exponencialmente mais difíceis quando você tenta se manter no ar.

O que não quer dizer que não temos tecnologia que dê conta disso, é possível fazer um avião pessoal, já foi feito inúmeras vezes, mas alguma coisa tem que ser compensada: ou a máquina tem asas enormes em comparação, ou usa motores poderosos para girar hélices (que também tendem a ser grandes).

E aí temos um problema de espaço: aviões precisam de pistas para decolar e pousar, e o quanto você pode manobrar é bem mais limitado. O ser humano médio aprende como trocar uma marcha e pisar no freio quando precisa, mas as habilidades necessárias para voar com asas são um nível bem acima. Um piloto precisa de muitas e muitas horas de treino antes de ser liberado com um avião, e mesmo assim, não tem uma fração da liberdade de escolha de rotas e manobras que um motorista tem no chão. Seria um péssimo jeito de ir para o trabalho.

Drones teriam uma vantagem nesse sentido, e existem empresas tentando tornar drones capazes de carregar pessoas, mas aí entre o problema da energia: não é à toa que bateria de drone dura tão pouco. Precisa manter a hélice girando com força o tempo todo para combater a gravidade, e dá-lhe energia para isso, ainda mais com um humano pesado para ser carregado (e todas as necessidades de segurança que ele exige). Se você está disposto a gastar uma bateria ou um tanque de combustível a cada ida à padaria…

E mesmo que tivéssemos uma tecnologia que tornasse voar fácil e barato, imagine como é perigoso o trânsito terrestre moderno e eleve ao cubo! O ser humano médio se mata com apenas duas dimensões de movimento nos seus carros, seria um banho de sangue com três. Todo carro voador teria que estar atento a 360 graus de possibilidade de impacto. E todo impacto seria possivelmente letal: uma trombada leve com outro carro voador poderia te colocar em rota de colisão em alta velocidade com o chão logo depois.

Quando eu vejo cenas de trânsito futurista com carros seguindo em rotas alinhadas, eu só consigo imaginar que todos os motoristas estão absolutamente proibidos de guiar sua nave e é uma inteligência artificial fazendo tudo. Pessoas nunca seriam tão organizadas. Quem dirige sabe que o ser humano médio mal consegue obedecer a uma faixa ou ultrapassar pelo lado certo. Adicione turbulência que seja nessa equação… a pessoa não entende que o carro de mais de uma tonelada dela impacta outras coisas na rua, seria impossível esperar que um humano médio (eu incluído) sequer consiga imaginar como o vento das suas turbinas influencia a aerodinâmica dos carros ao seu redor.

Se pessoas puderem mexer um milímetro que seja na rota, vamos ver acidentes intermináveis, e quase todos fatais. A IA que temos agora é confusa com o grau de complexidade do trânsito terrestre, imagine com trânsito aéreo? Se uma fabricante de carros entregar um carro voador mágico que fica no ar sem depender de asas ou hélices, ainda sim dependemos de um sistema 100% automatizado para termos sequer uma chance de não eliminar metade da população das cidades em semanas. O ser humano não é confiável, e o computador ainda não sabe fazer isso direito. E aí entra toda a questão não resolvida de escolhas trágicas (a IA decidir quem morre numa colisão inevitável), que mal saiu do campo filosófico.

Sem contar que acidentes de trânsito virariam problemas para virtualmente toda a população de uma cidade. A qualquer momento pode cair um carro em cima da sua casa ou mesmo entrar um no seu apartamento do vigésimo andar. Carros voadores são o tipo da tecnologia que passamos tempo demais pensando se podemos e nenhum sobre se devemos. Parecia uma extensão óbvia do fluxo tecnológico do século XX, mas na verdade é algo absurdamente futurista, talvez viremos seres digitais antes de termos qualquer tipo de trânsito de massa com carros voadores.

Quando você vê alguém falando sobre uma dessas tecnologias que “deveríamos ter agora”, é importante lembrar que elas não existem por um motivo. Elon Musk tirou da tumba a ideia de fazer trens magnéticos em tubos de vácuo (pensam nisso desde o começo do século XX) e gerou muito interesse, até mesmo competidores no mercado. Resultado? Tubos gigantes de vácuo são infernais de fazer e manter, o custo é absurdo… é uma versão piorada do trem normal. Por isso todas as startups iniciadas por bilionários empolgados afundaram em poucos anos.

Existem muitas ideias boas em tese, mas que na hora de virar prática demonstram o pesadelo que são. Carros voadores são apenas um símbolo desse tipo de erro de cálculo futurista, um que de tempos em tempos ressurge como algo incrível, mas que não segura o tranco de meia dúzia de testes. Nada contra inovação, muito pelo contrário, por ser um defensor ferrenho de inovação tecnológica, eu acho terrível quando insistem em planos estúpidos do tipo.

Estamos vivendo um tipo de estagnação tecnológica em relação aos objetos que nos cercam, quando aparece uma geladeira com um monitor conectado com a internet, não é que demos um passo à frente, é que os engenheiros de geladeiras já não tem muito o que fazer com o objeto, aí quem começa a dar sugestões é o pessoal do marketing ou diretores desesperados para dar satisfação para acionistas.

O trabalho de fazer as máquinas e tecnologias que nos cercam funcionar foi bem feito. A maioria das coisas que usamos no cotidiano estão bem próximas ou já chegaram no seu limite de eficiência e usabilidade. A era de colocar funções novas em tecnologias conhecidas está acabando, o salto exponencial do século passado foi excelente para a humanidade, mas está na hora do próximo. Não adianta mais pensar em fazer um carro, mas que voa. Não voa por um motivo, muita gente inteligente e esforçada se debruçou sobre o problema por décadas.

Nosso futuro não pode ser baseado em melhorar tecnologias do século XX (até o seu celular é tecnologia do século XX se você pensar bem), a próxima etapa tem que começar. E não sei se é a IA que vai ser essa nova etapa, eu apostaria muito mais em biotecnologia primeiro: a próxima fronteira parece ser o nosso corpo, com implantes e substituições robóticas para dar um novo passo na evolução. Carros que voam e robôs que conversam com a gente são tecnologias antigas com novas funções, e talvez funções que nem sejam tão úteis assim.

Mas é claro, eu não sei qual vai ser esse próximo passo. Talvez ele demore bastante para chegar, o que pensamos do nosso futuro pode ser apenas mais um carro voador. Algo que parece interessante para a nossa realidade atual, mas se você tentar fazer de verdade… não resolve problemas reais e ainda cria mais um monte de outros.

Para dizer que é estranho me ver falando contra tecnologia (não estou), para dizer que carros voadores seriam ótimos para reduzir superpopulação, ou mesmo para dizer que tudo é inútil enquanto não curarem a calvície: comente.

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Comments (4)

  • Carros voadores, no cenário que temos hoje, com esse tanto de gente burra por aí, seria impensável. Tendo a concordar com aquela frase ou ideia que se diz por aí de que o ser humano evolui e avança sua inteligência só até certo ponto, depois passa a regredir. Ao que parece, não querendo ser pessimista, estamos nessa fase de regredir.

    E sobre estagnação tecnológica, tenho visto isso já há algum tempo em vários aspectos: sejam em smartphones que não apresentam mais funções novas, nem mesmo em sistemas operacionais (seja ele para desktop e mobile) que não inovam em nada, enfim. Entra ano, sai ano, o android atualiza, mas com funções quase inúteis que nem vale a pena atualizá-lo. Da mesma forma carros, geladeiras com monitores, etc.

    • “Carros voadores, no cenário que temos hoje, com esse tanto de gente burra por aí, seria impensável”. Concordo, Ge. Dado o nível das barbeiragens que a gente vê por aí no trânsito, dá até medo de pensar no que aconteceria se carros voadores realmente existissem.

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