Escrevendo o futuro.

Em comemoração à Semana Nerd 2024, o Desfavor vai atravessar uma década e funcionar como se estivéssemos em 2034. O futuro nos aguarda, para o bem e para o mal.

Estamos prestes a chegar no 26º ano de Desfavor, e como toda segunda-feira em mais de um quarto de século, lá vem discussão: Sally e Somir se ressentem sobre o virtual fim do conteúdo escrito na internet, mas não lidam com a perda da mesma forma. Os impopulares escrevem suas respostas, se é que ainda lembram como fazer.

Tema de hoje: o Desfavor deve continuar sendo escrito?

SALLY

Contra tudo e contra todos, Desfavor deve continuar sendo um blog escrito?

Não, gente, chega. Em 2030, quando éramos menos de cem produtores de conteúdo escrito em todo o mundo, fizemos aquela grande enquete, vocês votaram que queriam que continue escrito e nós acatamos. Mas agora, em pleno 2034 não tem mais nenhum conteúdo escrito disponível online, somos os últimos! Se isso não é prova de que o formato ficou obsoleto, eu não sei o que é.

Uma coisa é ser uma minoria, como sempre fomos, com um conteúdo para poucos. Outra coisa é ser o último conteúdo escrito que resta. As pessoas não querem mais ver isso. “Mas Sally, a gente quer”. Ok, mas vocês são a exceção da exceção. Imaginem quantas pessoas mais poderiam se beneficiar do Desfavor se o conteúdo passasse a ser holográfico ou via implante de chip ou até por sonho lúcido!

Não me entendam mal, eu amo o formato escrito, tanto é que estamos aqui, jurássicos, insistindo. Mas a verdade é que a maior parte das pessoas não sabem mais nem ler nem escrever. Saiu da grade curricular nas escolas! Leitura foi substituída por algo muito mais simples e muito mais fácil: decorar os símbolos dos comandos universais que designam tarefas para Inteligências Artificiais. Você clica, ela faz por você.

Tem jovem que nem mesmo entende o motivo do botão que comanda a leitura de uma obra escrita ter como símbolo um livro. “Clica naquele retângulo que ela lê para você”, eles dizem. Tem jovem que nunca viu um livro impresso ao vivo. Tem jovem dizendo que saber ler e escrever é demérito, é coisa de gente ultrapassada.

Acabou, a era da escrita infelizmente acabou, o que é uma pena, pois os benefícios da leitura para cognição, para criatividade e para o aprendizado não são substituíveis por nenhum outro estímulo. Mas, contra a realidade não há argumentos. A sociedade virou o que ela virou, não podemos desfazer o que já foi feito.

Perceba que meu problema não é “não ter muita audiência”, isso nunca foi uma meta no Desfavor. Quando éramos poucos a produzir conteúdo escrito eu topava. Mas sendo os únicos, não dá mais. Inclusive pela atenção que isso desperta.

Quando só tem você, se acende um holofote sobre a sua cabeça e fica muito fácil para os grupos anti-leitura encontrarem um lugar para destilar seu ódio. Não basta que eles escolham não ler, é preciso erradicar a leitura. Sabemos o que está por trás disso e do discurso deles que leitura faz mal ao cérebro: vai que em algum momento a leitura volta a ser requisito para uma vida funcional, para uma vida profissional, e eles ficam excluídos? Mas adianta argumentar com quem diz que leitura causa autismo?

E esse ódio não vem só para a gente, vai para vocês também. A partir do momento em que qualquer um tem em qualquer dispositivo uma IA que pode ler um texto em voz alta e escrever comentários ditados por voz, esse pessoal anti-reading (nome original do movimento, que veio dos EUA) pode interagir com vocês, destilar ódio e até tentar caçá-los na vida real. Realmente precisamos passar por isso?

Nosso tempo, o tempo do conteúdo escrito, já passou. E arrisco dizer que até o tempo do áudio está chegando ao fim. A tendência agora é que o conteúdo seja ilustrado, sem escrita e sem áudio, como uma espécie de desenho animado mudo. É só isso que as novas gerações estão conseguindo entender.

Mas, como aqui a gente sempre escutou o leitor, continuaremos fiéis a esta regra, após 26 anos de blog.

Por isso hoje, além de defender nossos pontos, queremos saber de vocês: vocês realmente acham que vale à pena continuar fazendo conteúdo escrito, mesmo que Desfavor seja a única mídia online a fazê-lo? Se sim, vamos respeitar.

Mas se não, saibam que não vamos desistir. Vamos tentar outras formas, sempre preservando nossa identidade. Não é um adeus, é uma mudança de formato. E de preferência um formato que não seja muito elitista, que não demande uma tecnologia caríssima para acessar, assim todos podem consumir.

E se a preocupação é exercitar a leitura para não desaprender esta habilidade, bem, vocês têm quase 30 anos de conteúdo de postagens diárias disponíveis, não precisam de postagens novas para isso. Sabemos que muitas são postagens datadas, que estão irremediavelmente desatualizadas, mas você se surpreenderia ao saber quantas ainda estão atuais e podem ser aplicadas ao mundo de hoje.

É preciso evoluir. É preciso se adequar à realidade. Uma coisa é curtir o vintage, outra é ser teimoso e ultrapassado. Chega gente, eu amo escrever, mas a escrita caiu em desuso no mundo atual.

Para dizer que quer voltar no tempo (talvez em uma semana você consiga), para dizer que finalmente quem odeia ler venceu, ou ainda para comentar que está surpreso de o Somir ainda estar vivo em 2034: comente.

SOMIR

Claro que sim. Eu sei que parece teimosia não mudar o formato depois de tantos anos, e vamos ser honestos: é teimosia sim. Foi teimosia quando quase todos os outros blogs sumiram e nós ficamos, foi teimosia quando passou a Lei de Identificação Online e continuamos anônimos, foi teimosia quando as redes sociais tiraram postagens e comentários em texto…

E vai ser teimosia de novo quando as luzes se apagam até mesmo nos maiores jornais, alguns com mais de um século de existência. O jornalismo morreu? A gente nunca foi jornalista. A internet é 99% feeds de animações e vídeos? Nós não somos. A graça de tirar nosso sustento de outros lugares e não se importar com popularidade é justamente fazer o que você tem vontade de fazer.

E nisso eu sei que a Sally concorda comigo. Ela pode até argumentar que é uma adaptação aos tempos, mas que ela gosta de escrever o Desfavor, é inegável, nossa longevidade é prova disso. Essa tem que ser a regra: fazer o que você acredita que é o melhor. Porque aí você faz direito. Adianta o quê a gente mudar o formato para disputar atenção de gerações que já saem da infância com o cérebro frito?

E aí vem uma massa de imbecis dizer que o conteúdo escrito está relacionado ao autismo endêmico nos menores de 18. Criança que não desenvolve habilidades sociais reais acaba se parecendo com um autista mesmo. Não foi a “liberdade excessiva do meio escrito” que causou os problemas, foi a porcaria do tablet.

Mas querem colocar nas nossas costas, para não dizer outra parte do corpo: os descerebrados do governo passam projeto dizendo que todo conteúdo deve ter um rosto e o brasileiro médio acaba aceitando, afinal, de quatro em quatro anos muda o governo e o conceito de liberdade de expressão. Aguentam um mandato de perseguição pela felicidade de destilar seu ódio durante o outro.

O formato escrito caiu em desuso, mas não perdeu seu valor. Se gosto de povão fosse padrão de qualidade, o “chip do tesão” não venderia seis vezes mais que o chip de inteligência como falamos no último DS. Esse povo que acha criminoso escrever é o mesmo que troca o precioso espaço dentro do cérebro destinado a quadruplicar a capacidade de processamento de informações por uma porcaria de um chip que te faz ter muito mais vontade de transar. É essa gente que vai nos balizar?

Eles que se explodam. O nosso conteúdo usa um formato que permite coisas que nenhum outro permite, ler é muito mais do que obrigação escolar ou entretenimento leve, é uma forma especial de absorver informação aprofundada. O cérebro capta o conteúdo de um jeito que ouvir ou ver nunca vão substituir. Quer ver vídeos e desenhos? Tem a internet toda. Quer consumir conteúdo escrito? Tem o Desfavor em português e alguns gatos pingados em outras línguas.

Eu ainda não vejo como uma reportagem escrita pode ser substituída por um vídeo. Vídeos podem ser excelentes, mas é outra forma de contar uma história, muito mais resumida. Isso é, era até todo mundo começar a usar o Metavideos. Não sei como aguentam aquela porcaria repetitiva, o roteiro original de cinco palavras esticado para cinco minutos de cenas aleatórias e conclusões sem sentido…

E francamente, tem tanta gente usando Resumos como rede social principal agora que eu nem sei mais se as pessoas estão consumindo de verdade o conteúdo. Máquinas esticando conteúdos que outras máquinas assistem e resumem para o usuário? É claro que temos uma crise global de energia: quase tudo é desperdiçado com intermediários artificiais.

E no final das contas, as pessoas brigam mais do que nunca, cada um de um lado da cerca, zeros e uns que não geram nenhum conteúdo aproveitável além de acusações aleatórias geradas por IA. A gente passou pelo terraplanismo e pelo movimento antivacina pouco mais de dez anos atrás, e além de não terem desaparecido, ainda foram reconhecidos como religião protegida pelo STF!

A divisão está terrível, e falta de leitura tem papel direto nisso. Esse povo vive de escutar fofoca, quem fala mais alto e quem fala a pior coisa ganha a atenção. Menos e menos pessoas tem acesso ao conteúdo escrito por um preconceito religioso maluco que começa a eleger mais e mais representantes legais.

Se a gente entrar para essa briga por atenção dos tecnoanalfabetos, das duas uma: ou seremos uma voz abafada no meio da multidão ou teremos que nos vender para o sensacionalismo das redes sociais. Nos dois casos, só perdemos, por enquanto somos uma das mais raras mídias existentes, o que pelo menos gera alguma curiosidade e ajuda a “converter” mais gente de volta para o meio escrito e por tabela a luta contra as leis cretinas que nos forçam a fazer tudo fora do Brasil.

Desaparecer na gritaria ou jogar fora nossa tentativa de imparcialidade para ganharmos uma nova plateia? Lembrando: nova plateia que TIRA chip de inteligência para colocar chip do tesão. Você se identifica com essa gente? Você quer conteúdo pensado para elas?

Pois é. Vamos continuar sendo teimosos. Porque se é para ser uma merda, que seja a nossa merda.

Para dizer que ouve o resumo todo dia, para dizer que é desempregado e tanto faz, ou mesmo para dizer que o jornalismo já foi tarde: comente.

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Comments (4)

  • “A divisão está terrível, e falta de leitura tem papel direto nisso. Esse povo vive de escutar fofoca, quem fala mais alto e quem fala a pior coisa ganha a atenção.”

    A realidade já é decidida por quem costuma ter (anti-)QI (super) menor que três dígitos…

  • Podcast é bem melhor que leitura.Eu já faço zilhões de coisas em 2024, em 2034 vou fazer o dobro. Eu trabalho ouvindo podcast e até vendi meu carro pra poder trabalhar no celular durante o engarrafamento. Eu gosto do conteúdo daqui, mas às vezes venho pouco por falta de tempo, conteúdo em áudio é tendência, vim do futuro dizer isso.

    • Concordo com você, áudio é um conteúdo mais fácil de consumir, podemos inclusive consumir enquanto fazemos outras tarefas. Eu não lavo a louça sem um bom podcast.

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