
Além da cultura.
| Somir | Somir Surtado | 2 comentários em Além da cultura.
O termo Zeitgeist vem do alemão, e significa algo como espírito do tempo. É a ideia que existe uma espécie de cultura compartilhada por povos vivendo no mesmo período, algo que permeia a sociedade e influencia nossos hábitos e escolhas, quase como se fosse um subconsciente coletivo. E se você parar para pensar, boa parte das nossas discussões políticas, morais e talvez até éticas estão mais conectadas com o Zeitgeist do que com propriamente a mecânica de funcionamento da sociedade humana.
Nessa semana, um vídeo infame sobre uma palestra chamada “Educando com o cu” rodou pelas redes sociais. Uma transexual misturava sua análise sobre o mundo moderno com rebolado ao som de músicas explicitamente sexuais. A polêmica era sobre a função educativa real do evento, e é claro, repulsa pela forma como se fazia a apresentação. O time do “isso é absurdo e obsceno” contra o time do “isso é expressão artística” na briga de sempre.
Eu resolvi pensar no tema por um ângulo mais afastado: “educar com o cu” é parte do Zeitgeist. É algo que existe no ambiente de um país como o Brasil em 2024, mas que provavelmente seria respondido com repressão violenta em qualquer outra época passada. Aconteceu porque podia acontecer. A pessoa que desenvolveu e as pessoas que aceitaram ver são frutos de uma cultura que só existe agora.
É claro que você pode discutir se usar recursos públicos para isso faz sentido, aliás, você pode discutir o que quiser. Eu estou pulando essa parte de propósito neste texto porque quero pensar sobre o quanto do pensamento humano disponível está sendo utilizado em reagir emocionalmente ao espírito do tempo e o quando está analisando o futuro da nossa jornada evolutiva.
O jovem é uma máquina de fazer bagunça na cultura vigente, eu quase diria que é a função biológica secundária dele depois da reprodução. Chacoalhar estruturas de poder e valores sociais prévios em busca da sua autoafirmação. Mesmo que com elementos superficiais diferentes, toda geração reclama das gerações posteriores. Já foi usar minissaia, agora é essa fluidez de gênero toda.
É bom para a sociedade, é ruim para a sociedade? De novo, se eu quero separar espírito do tempo de projeto de sociedade, focar nessas questões comportamentais de jovens contra idosos parece desperdício de tempo. Quem vive no tempo que discuta os valores dele, mas quando pensamos em políticas públicas e função do Estado, o tempo funciona diferente.
Porque temos que lidar com os impactos de decisões passadas e fazer planos para o futuro. Coisas que não são fruto do tal do Zeitgeist, pelo menos não o atual. Não é um bando de zoomers defendendo o Islã enquanto tomam hormônios chineses para se parecer mais com personagens de anime que define como a economia ou os direitos humanos funcionam. O espírito do tempo deles é esse, eles vão pagar o preço pelas suas escolhas da mesma forma como outras gerações pagaram pelas suas. E problema deles enquanto forem adultos.
O que o espírito do tempo atual não pode fazer é deformar o passado e criar armadilhas futuras. E isso é algo que gerações passadas tiveram um mínimo de tato para fazer. A mesma geração que lutou nas duas guerras mais horríveis da nossa história implementou um sistema de direitos humanos e estado democrático de direito que nos dava liberdade para crescer. Dentro do espírito do tempo deles, ainda eram terrivelmente machistas e racistas em comparação com o que é tolerável hoje em dia, mas algumas boas ideias de longo prazo definidas por essas pessoas permitiram que novos espíritos do tempo avançassem o mundo nessa área.
Numa analogia meio maluca, é meio como aquele conceito de Kairós e Chronos: um é o tempo da natureza, outro é o tempo da nossa mente. Algo que não controlamos e algo que controlamos. Políticas públicas controlamos, espírito do tempo não. Ele vai se impor, e a fundação na qual ele estiver que vai ditar para onde a sociedade vai.
Hoje, pelo menos no mundo mais civilizado, temos fundações que resistem aos jovens sendo… jovens. Pode fazer sua rebeldia biológica, porque já tínhamos decidido no longo prazo que usaríamos uma estrutura democrática que colocava limites nos abusos que seres humanos cometiam uns com os outros. Eu sei que muita gente fica pistola quando eu digo isso, mas é uma vitória que existam tantos lacradores, mesmo que sejam irritantes em algumas interações. Mesmo que de forma meio maluca para nós, mais velhos, alguns valores como igualdade e tolerância passaram para frente.
Tinha alguma coisa nos espíritos do tempo de gerações anteriores que não quebraram o “choque de brutalidade” do começo do século passado. E eu aposto que essa coisa foi o planejamento de longo prazo, coisas que foram deixadas para nós mesmo que não fossem muito populares no seu tempo. Quando você está investido nos problemas do seu momento histórico, não parece um problema tão grande usar violência e censura para controlar quem obviamente não está fazendo coisa boa. Mas… coisa boa pode variar muito com o passar do tempo.
Já foi “coisa boa” não bater no seu escravo. Muitos escravos de donos mais lenientes poderiam te dizer que na média até que viviam bem. Viviam bem em comparação com quem também era escravizado, mas sofria violência física constante. Nota 1 é melhor que nota 0, mas ainda é uma péssima nota. No século XXI, não existe mais essa diferença: escravizar o outro é fundamentalmente intolerável. Não existe mais sequer o conceito de escravocrata bom e escravocrata ruim.
O espírito do tempo de uma época enxerga bem o que está acontecendo e o que se considera bom ou ruim, mas é cego para o contexto de suas decisões. Por que as coisas são como são? O que acontece no futuro com as regras que criarmos agora? Tem muita decisão que faz sentido agora, mas que vira brecha para problemas futuros. Não foi assim que evoluímos, resolvendo tudo na hora de acordo com o sentimento. É assim que se toca uma vida particular na maioria dos casos, mas não é assim que se planeja nada para a sociedade.
Não é que a regra que permite matar quem você não goste agora pode ser usada para o mal no futuro, ela vai ser usada para o mal no futuro. Todas elas vão ser exploradas. O espírito do tempo atual está pensando em resolver um problema pontual, mas os próximos espíritos do tempo vão crescer em um mundo onde essa brecha já existe.
É impossível que ninguém perceba a oportunidade entre as gerações. Os próximos que chegarem ao poder vão começar sua jornada já sabendo que a regra que permite matar “gente ruim” existe. Entendem como não é questão de se, mas questão de quando o erro na proteção de direitos humanos básicos vai ser utilizado? É uma inevitabilidade. É sempre trocar um real hoje por mil reais amanhã, é sempre um erro.
E não sei se a maioria das pessoas tem essa noção, mas se a história da humanidade fosse um dia de 24 horas, a ideia de Estado que protege direitos humanos apareceu menos de um segundo atrás. Não deu tempo nem de piscar e já tem gente em pânico querendo prender e matar quem pensa diferente, seja lá para o lado que radicalizou.
Controlar exageros é parte integrante da vida em sociedade, mas essa reação alérgica ao espírito do tempo que não te representa é meio como usar suicídio para resolver uma dívida no banco. Tem coisas que são relevantes agora, tem coisas com as quais convivemos e vamos conviver por tempo indeterminado. O mais relevante é garantir que as ideias de igualdade e tolerância continuem avançando para as próximas gerações, sem dar tanta atenção para a alegoria que o jovem da vez usa a partir deles.
Ou seja, eu posso achar uma baixaria o que fazem por aí, mas entender que coisas do espírito do tempo se resolvem no espírito do tempo, não revendo o passado (como a esquerda adora fazer) ou tentando sufocar o futuro (como a direita adora fazer). O passado já foi, e foi por um motivo. O futuro será, e é essencial não ficar colocando armadilhas no nosso caminho.
Porque a história já nos ensinou que toda medida autoritária que “resolve” um problema momentâneo pode e vai ser usada no futuro para criar outro. O trabalho é simples: não encher a nossa estrada de minas terrestres. Por mais que seja tentador explodir o desafeto, é a porcaria da mesma estrada que você usa!
Toda vez que você vê algo que você não gosta na sociedade atual e pensa num plano para acabar com isso, a primeira, a primeiríssima coisa a se pensar é como isso vai voltar para te morder a bunda com o passar do tempo. Não é que o “Ocidente rico” é bonzinho, é que esse sistema meio bunda mole e tolerante é o único jeito de não encher sua estrada de bombas. Dezenas de milhares de anos de humanidade moderna, bilhões e bilhões de pessoas pensando em como resolver os problemas… e não tem nada melhor que engolir um sapo hoje para não engolir dez amanhã.
Eu fico puto também, mas as coisas são como são. Aguenta mais uns dez anos e tudo estará estranho de novo. E de novo. E de novo… o importante é que enquanto você critica as crianças bagunceiras da vez, não tenha ninguém sendo torturado e morto por algum déspota sanguinário. Se a gente segurar esse tranco, o resto se resolve.
Para dizer que é zoomer e se sentiu ofendido, para dizer que é boomer e se sentiu ofendido, ou mesmo para dizer que é millennial e já não liga mais pra nada: comente.
“Porque a história já nos ensinou que toda medida autoritária que ‘resolve’ um problema momentâneo pode e vai ser usada no futuro para criar outro”. Sim, realmente. A história já nos ensinou isso. Inúmeras vezes. Só que a maioria de nós ainda NÃO aprendeu…
“para dizer que é millennial e já não liga mais pra nada”
Como eu já disse de outra vez, quero me importar muito com aqui…”e mais umas partes offline de talvez contar nos dedos”, acho.