Rede Social é pública ou privada?
| Somir | Somir Surtado | 2 comentários em Rede Social é pública ou privada?
A nossa compreensão sobre liberdade de expressão e responsabilidade sobre o que se diz é mais antiga que a internet. E francamente, era uma boa compreensão, bem intuitiva: o que você diz como pessoa é seu problema pessoal e o que você diz como empresa é seu problema empresarial. O que fazer quando a tecnologia torna essa intuição praticamente impossível?
Eu sou do time liberdade de expressão máxima. Não absoluta, máxima. Absoluta seria tornar todo tipo de comunicação imune à lei, e isso seria deixar muitas brechas para pessoas abusarem de outras pessoas. Liberdade de expressão máxima é andar no fio da navalha, deixando a sociedade se autorregular até o exato ponto onde o que se diz gera uma quebra da lei.
Então, eu admito que estou no time que não simplifica a coisa. Tem muita sutileza envolvida em entender a partir de que ponto um discurso raivoso se torna discurso de ódio: onde é só o sentimento humano e onde começa a apologia ao crime. Uma pessoa dizendo que acha uma raça feia é diferente de uma pessoa que acha que temos que exterminar essa raça.
E mesmo no segundo caso, qual é o verdadeiro perfil de risco da pessoa? Um adolescente idiota sendo racista na internet é alguém que pode ser corrigido ou é um futuro atirador precisando de contenção? Liberdade de expressão máxima tem seu perfil de risco. Numa sociedade onde se combate com força qualquer discurso visto como negativo, a nossa chance de pegar o futuro atirador é maior, mas ao mesmo tempo… a nossa chance de radicalizar o que era só um adolescente idiota também.
Começo o texto assim porque muito se engana quem acha que existe uma solução perfeita para lidar com a maioria da humanidade conseguindo se expressar mundialmente com as redes sociais. Se mera repressão de expressão “negativa” funcionasse, as incontáveis ditaduras da nossa história já teriam se provado o modelo ideal. Quando falamos de controle duro sobre a expressão do povo, todo país tem um ou mais exemplos de tentativas frustradas.
Se nem quando era realmente complicado espalhar sua mensagem pelo mundo a repressão reduziu criminalidade e comportamentos indesejáveis da população, o que nos faz pensar que justamente na era das Redes Sociais isso vai funcionar? Quando o Estado usa todos seus recursos para calar a boca do povo sobre um assunto específico (fim da ditadura), ainda sim não consegue. Que tipo de regulação mágica estão pensando para fazer isso agora, e sobre todos os temas indesejáveis ao mesmo tempo?
O Estado já tentou cuidar de duas tartarugas, e uma fugiu. Agora vai querer cuidar de um milhão de crianças que comeram muito açúcar? Fazer valer a lei é um objetivo nobre, claro, mas regulação de rede social no modelo atual não me parece algo lógico para esse objetivo. É muita gente fazendo muita coisa ao mesmo tempo. E pior, gente com incentivo financeiro para ser hiperativa. A parte informal da economia já foi para a internet. Isso até tem conexão com a redução (mentirosa) do desemprego no Brasil, mas é assunto para outro texto.
Aqui o foco é na questão do que é a Rede Social: se é uma plataforma privada ou se é um serviço público. Eu já fiz minha escolha, e é no sentido de tratar desde a futilidade do Instagram até a pancadaria do X como novos direitos humanos básicos. Quando pensamos o que era o pacote normal da vida humana no passado, não tínhamos em mente que eventualmente teríamos mais dispositivos de acesso à internet do que banheiros no país.
Saúde, educação, segurança, transporte… e comunicação. Ainda no relativamente recente século passado, não se pensava que poder falar com o mundo todo era algo do tal do pacote básico da vida humana; eu cresci num mundo onde nem seus pais tinham expectativa de poder falar com você quando quisessem. Mas isso mudou. Quem se acostumou com internet e comunicação constante fica perdido sem o seu celular.
E aí existe o argumento que a comunicação instantânea da internet virou mínimo na vida das pessoas. Sim, tem gente que nem sabe mexer num celular e vive offline, mas alimentação é um direito fundamental e tem gente passando fome. A gente não se mede pela régua de quem está totalmente desassistido, porque se formos reduzir a humanidade para o absoluto mínimo necessário, nenhum direito existiria. Lei da Selva e sobreviva quem conseguir. Passamos desse ponto.
O que eu penso aqui é que um serviço básico está privatizado no mundo todo. Redes Sociais e plataformas de comunicação instantânea são geridos por entidades com fins lucrativos, e nenhum povo fez essa escolha ainda. A iniciativa privada criou um serviço básico onde não tinha nada. E spoiler: foi a mesma coisa com água encanada, eletricidade e outros elementos fundamentais da vida moderna. O Estado quase sempre investe para ajudar o desenvolvimento desses serviços, e quando acontece o entendimento de que virou o “novo normal” da vida humana, começamos a discutir se pode ou não ficar só nas mãos de empresas.
Em muitos países do mundo, esses tais serviços básicos passaram por fases públicas e privadas até se assentarem nos modelos atuais. Em países como o Brasil, ficou determinado que o Estado tinha que fornecer saúde e educação para todos, sendo lucrativo ou não. Em países como os EUA, ficou decidido que basicamente só segurança era problema do Estado e o resto estava na mão de quem quisesse explorar o mercado.
Então, eu não estou dizendo que o único caminho é estatizar as redes sociais, pode ser um desastre na mão de políticos incompetentes e corruptos, mas estou dizendo sim que chegou a hora de conversar sobre isso. De marcar como ponto pacificado que as pessoas do século XXI precisam ter acesso à comunicação de Redes Sociais (na definição clássica como o Facebook ou na definição mais aberta que abrange até o WhatsApp) para estar em condições mínimas de desenvolvimento, e definir como oferecer esse serviço para todos.
Modelo centralizador de só o Estado poder ter uma Rede Social, modelo híbrido com uma alternativa paga por impostos livre para todos, ou modelo totalmente capitalista deixando o mercado escolher qual serviço vive ou morre? Não sei o melhor ainda. Mas sei que resolver o problema sobre liberdade de expressão e regulação de discursos nocivos para a coletividade passa por tomar essa decisão.
O que mais me parece errado agora é a discussão sobre os limites da comunicação online antes da discussão sobre os direitos de comunicação online. A conversa sobre ser de qualquer time sobre liberdade de expressão, absoluta, máxima ou restrita, essa só vem depois de sabermos os parâmetros da discussão. Se é um direito e se é universalizado, primeiro definimos qual é o valor dele e porque ele deve ser estabelecido em lei. A partir desses valores fazemos o trabalho de regular.
O Estado pode querer que cada postagem na Rede Social seja revisada por uma pessoa competente à vontade. Mas isso é absurdo do ponto de vista do negócio de Rede Social. Querer que todo hospital trate toda pessoa que chegar no seu pronto socorro é igualmente absurdo do ponto de vista do negócio, por isso existe o SUS. A solução para a demanda do Estado não estava dentro dos negócios privados que trabalhavam com saúde, e eu acredito que todo mundo entendeu essa questão.
O modelo de negócios da Rede Social é trocar os enormes custos de manutenção da infraestrutura técnica pela atenção do usuário, que faz com que anunciantes tornem o negócio lucrativo. O próprio modelo de negócio que tornou essas empresas bilionárias não previa o ângulo de direito universal de comunicação. Essa é uma realização mais recente. As leis ao redor do mundo que flexibilizam a responsabilidade da empresa sobre o que pessoas postam nelas só é possível pelo entendimento dos Estados sobre essa função social.
E gostemos ou não, se definirmos através dos nossos representantes que as Redes Sociais e empresas de tecnologia em geral precisam ser responsáveis pelo que nós dizemos, estamos matando as empresas que fornecem o serviço. E como o Estado não está se movendo para cobrir o buraco, estão passando leis para diminuir nossos direitos. Eu não coloco a culpa disso num plano maligno, porque acredito de coração que era um Cisne Negro: ninguém tinha previsto como em pouco tempo aquela “bobagem” de mandar mensagem pelo computador viraria um dos fundamentos da vida em sociedade.
É compreensível não ter enxergado antes o que aconteceria, mas agora está explícito para todos os lados que olhemos. Rede Social é parte integrante da vida do ser humano moderno. Seja para escrever besteira, seja para dançar na frente da câmera, seja para ganhar a vida nos inúmeros empregos que só existem por causa dessa comunicação instantânea.
As leis e a compreensão delas precisa ser atualizada para refletir o mundo. O que considerávamos responsabilidade pessoal e empresarial sobre comunicação mudou, e liberdade de expressão é outra coisa nesse contexto. O novo direito fundamental de comunicação instantânea exige concessões dolorosas e uma série de novos riscos de ideias podres se espalhando, mas em troca mudou a forma como vivemos e lidamos com outras pessoas. E pelo visto ninguém quer voltar para o jeito anterior. Eu acho que a maioria do conteúdo das Redes Sociais é uma porcaria, mas não quero voltar a ficar ilhado. Não é mais o que eu considero uma vida normal.
Desligar a máquina e curtir seu tempo livre é uma coisa boa, mas só é boa se for uma escolha. Ficar isolado por ficar isolado é voltar algumas casas na evolução social humana. Eu não acredito que os governos vão forçar as Redes Sociais a desaparecerem, mesmo que muitos poderosos adorem a ideia de o povo parar de se conversar tanto, porque as pessoas já estão acostumadas com essa nova vida. Se quisessem regredir para o modo anterior de vida, já teriam feito. Não colocaram arma na cabeça das pessoas para usar celular o dia inteiro, as pessoas quiseram ou se sentiram deslocadas sem isso.
E enquanto não se resolve o ponto central da discussão, ficaremos girando em falso sem saber como tratar essas entidades de internet. Vão continuar focando no lucro sem contrapartida definida do Estado. Vai ser só uma briga entre o setor público com desejos momentâneos e grandes empresas que pagam muito bem para subornar e manipular esses agentes do Estado.
Rede Social deveria ser bem público, mesmo que se permita que sejam exploradas com fins lucrativos. De alguma forma conseguimos regular a maioria dos outros setores, com ou sem corrupção do governo e com ou sem ganância corporativa costuma chegar eletricidade e água razoavelmente limpa na sua casa, não? Quando a coisa é tratada dessa forma, ficam claros os parâmetros do que o Estado espera do serviço. Aí sim sabemos quem está fazendo direito e quem está fazendo errado.
E até para quem pensa ao contrário do que eu penso: se formos ignorar a ideia de que o serviço é bem público e deixar o mercado se autorregular, então que também deixem isso bem claro para o povo e não exijam contrapartidas malucas dessas empresas. Nessa indefinição que moram boa parte dos problemas atuais da internet, ninguém sabe o que cobrar das Big Techs. Porque até a decisão de não cobrar nada acaba gerando alguma resolução: as pessoas se separam nos grupos que quiserem.
Eu acho que não é saudável deixar tudo solto, mas é menos maluco que ficar nessa indecisão sobre o que diabos é uma Rede Social. Se você não sabe nem o que espera dela, como vai regular? Enquanto não houver pressão para os Estados definirem isso de uma vez por todas, vai ser na base de quanto as Big Techs podem aprontar e lucrar e quanto os políticos da vez estão ganhando com isso.
Faz uma lei besta aqui e acolá, solta uma decisão bizarra… e uma das coisas que mais usamos atualmente fica nesse impasse. E é assim que conseguem manipular sua liberdade de expressão e outros direitos sem bater em nenhuma linha-guia legal. É do interesse de agentes maliciosos que as coisas continuem nessa imbecilidade, os que dizem defender liberdade de expressão e os que dizem querer proteger o pobre povo aproveitam vários benefícios secundários enquanto não são obrigados a resolver o problema real.
Para dizer que eu voltei chato, para dizer que Rede Social é uma privada, ou mesmo para me chamar de comunista anarquista reacionário libertário de merda: comente.
“(…) Para dizer que Rede Social é uma privada”. Olha, originalmente, até que não era pra ser. Mas muita gente as tem usado só pra depositar merda mesmo…
“para dizer que Rede Social é uma privada”
hahahahahahahahahaha
Me contive.
—————————————————————
“A gente não se mede pela régua de quem está totalmente desassistido, porque se formos reduzir a humanidade para o absoluto mínimo necessário, nenhum direito existiria.”
Aplaudi!
Conforme aquela expressão, é “sarrafo que subiu” !