Caos ou Cosmos?

Relaxa, logo logo a gente descamba para temas piores, o ano está só começando. Mas enquanto isso, Sally e Somir discorrem sobre a natureza da realidade e os impopulares decidem se colocam ordem na casa.

Tema de hoje: o universo é Caos ou Cosmos?

SALLY

A mitologia grega usava mitos para tentar explicar temas complexos, conceitos abstratos e atemporais. E hoje pegaremos emprestado o mito de Caos e Cosmos, dois deuses primordiais, para explicar nosso tema.

Caos foi a primeira entidade a surgir no início dos tempos. Representa o vazio, o espaço infinito sem forma, sem ordenação. É onde a criação acontece. Como resultado da dualidade, em oposição a Caos, surgiu Cosmos. Cosmos representa um universo ordenado, harmonioso. É onde o crescimento acontece.

Caos tira as coisas do lugar, Cosmos a ordena. É uma eterna guerra entre ordem e desordem. Caos gerando acaso, aleatoriedade e desordem, para que exista a possibilidade de criação, e Cosmos gerando ordem, para que exista a possibilidade de crescimento.

Caos e Cosmos não conseguem habitar o mesmo espaço. Onde um entra, o outro sai. É como a luz e a escuridão, se um entrou o outro saiu. Caos e Cosmos não podem ser derrotados de maneira definitiva, um pode ser dominado pelo outro, por algum tempo, mas quando um se enfraquece, o outro toma seu lugar.

Depois desta breve explicação, você acha que o universo é Caos ou Cosmo?

Somir e eu concordamos que o universo é regido por ambos: Cosmo e Caos, pois, por sua própria definição, eles se alternam. A questão é qual dos dois exerce o papel principal?

Na minha opinião, o universo é mais Cosmo do que Caos. Obviamente tem seus momentos de Caos, quando chega a um ponto de não-crescimento que o obriga a romper com tudo para se reordenar. Mas, na maior parte do tempo, é Cosmo.

O que não significa que a gente entende quais são as regras dessa ordenação. É complexo demais para nós, pequenos macacos pelados. Mas, como sabemos que não somos o centro do universo, somos capazes de compreender que o fato de desconhecermos os critérios não impedem que eles existam.

O universo possuí uma organização. Não é tudo aleatório o tempo todo. Tanto é que algumas coisas nós conseguimos prever (ainda que poucas). Se não houvesse algo de ordem, de organização, de Cosmo, não haveria qualquer possibilidade de previsibilidade. Não haveria sequer a possibilidade do estudo do universo, pois aleatoriedade (Caos) não permitiria padrões de estudo.

Me causa estranhamento a ideia de que o universo e seu funcionamento sejam mera obra de acaso. Alguma ordem deve existir, mesmo que nós não compreendamos. Aquilo que está mais próximo da gente, como por exemplo, o sistema solar, possuí ordem: os planetas giram em torno do sol de forma ordenada e previsível. Imprevistos acontecem? Claro, mas eles são a exceção, não a regra.

Se hoje podemos calcular onde está uma estrela, quanto tempo levaria para chegar a outro planeta ou até quando pode ocorrer uma tempestade solar é por existir algo de Cosmos, de ordem. O Caos torna tudo imprevisível. E nem precisa ser tão grandioso, qualquer pessoa que preste um pouco de atenção à sua própria vida vai perceber que é inocente atribuir tudo ao caos, ao acaso.

Conseguimos prever tudo que pode acontecer no universo inteiro? Não. Mas será por culpa do Caos? Ou será por não termos acesso à vastidão do universo? Se onde a vista alcança conseguimos fazer algumas previsões, é provável que o impedimento para previsões maiores seja o acesso mesmo.

E com isso não quero dizer que temos domínio ou controle. Não temos. O universo tem suas regras próprias e nós não temos qualquer condição de interferir nelas e talvez sequer de entendê-las. Mas isso não significa que não estejam lá. E que eventualmente Caos tome conta e destrua tudo, em ordem de permitir criação. E depois da criação, Cosmos retoma, permitindo que o crescimento aconteça.

A vastidão do universo faz com que tenhamos infinitas variáveis a serem levadas em conta para determinar resultados futuros. Nós não temos qualquer condição, capacidade ou ferramentas para levar em conta tantas variáveis e, por isso, não conseguimos ordenar as informações para compreender o Cosmo. Isso quer dizer que ele não exista? Não. Isso quer dizer que nós não conseguimos ver.

Então, na nossa visão humana limitada, o universo é Caos, por incapacidade de compreensão e interpretação. Mas tudo leva a crer que seja Cosmo, pois existe alguma ordem na amostrinha de universo que nos cerca, que provavelmente se estende para o resto.

Uma formiga provavelmente não entende o que acontece quando você arranca, ao lado do formigueiro dela, uma planta morta do seu quintal e planta algo novo. Para ela deve ser muito aleatório que, do nada, em circunstâncias que ela não entende, uma força poderosa puxa uma planta da raiz, cava um buraco e enfia outra planta nova.

Para você é bastante óbvio: se a planta estiver viva, você não vai intervir, mas se a planta morrer, você vai removê-la e colocar uma planta nova. Pode acontecer uma vez por mês, uma vez por ano, uma vez a cada cinco anos ou nunca, mas o critério existe. Quando uma planta morre ela é substituída. Para a formiga, será Caos. Para você será Cosmo.

O mesmo vale para o universo. Somos formigas insignificantes e ignorantes que só conseguem compreender um palmo à frente do seu nariz. E o que não compreendemos, atribuímos ao Caos: “não sei como aquilo funciona, então, não deve ter uma ordem”. Tem sim, pequena formiga, é apenas você que não entende.

Humildade, formiguinhas. Humildade.

SOMIR

Caos. Para mim essa discussão tem que começar pelo começo: ou você acredita que exista uma intenção no começo de tudo ou… não acredita. Eu estou no campo daqueles que não acreditam que a realidade é intencional, não no sentido consciente que aparentemente a maioria das pessoas acredita.

Então, eu parto do princípio de que até mesmo essa diferenciação entre caos e ordem é uma ilusão da nossa percepção de mundo. Ilusão altamente influenciada por um desejo de que essa intenção consciente exista, seja ela na figura infantilóide de um Papai Noel onipotente, seja ela na versão mais refinada de uma “força maior” que influencia a realidade a ser como é.

Como somos seres capazes de pensamento abstrato, por mais rudimentar que seja em algumas pessoas, é natural presumir que o nosso mecanismo de funcionamento baseado em intenção seja a regra universal. Meio como a dúvida que muita gente tem sobre o que existia antes do Big Bang: você parte do princípio que precisava existir alguma coisa antes. Precisava mesmo? Alguns conceitos abstratos quebram a nossa mente.

Não importa o quanto você pense, a ideia de algo infinito nunca vai caber na sua cabeça. Você cria um objeto imaginário chamado infinito e trabalha com esse simulacro mental ao invés de ficar tentando contar números que nunca mais vão acabar. Eu argumento que ordem – exemplificada pela ideia de Cosmos neste texto – é mais um desses conceitos.

Ordem é uma impressão que temos ao observar alguns padrões do caos. O caos é infinitamente complexo, seu cérebro não ia funcionar se tudo te chamasse a atenção por igual. Por isso nossas mentes são tão focadas em encontrar padrões, por isso inteligência humana é basicamente reconhecer e prever padrões ao nosso redor: porque se a gente não se especializasse nisso, não teríamos inteligência para começo de conversa.

Eu posso até aceitar que a mente humana é mais Cosmos que Caos, mas não que o universo seja algo mais que Caos. A natureza funciona a partir de algumas estruturas predefinidas, mas isso não quer dizer que essa ordem é obrigatória. Não quer dizer que a ordem está programada nas estruturas mais básicas do universo.

Até porque se termodinâmica nos ensina algo, é que o caótico é o estado natural das coisas. Até por pura matemática: existem zilhões de combinações possíveis de matéria e energia no universo, e virtualmente todas não geram a nossa realidade. Você pode achar que isso dá vantagem à teoria da ordem, mas é mais uma tendência de confirmação de quem está dentro dessa combinação da matéria. Só é possível pensar sobre ordem se você estiver numa combinação caótica que chega nesse ponto.

Se o tempo é infinito e a entropia vence no final das contas, ou seja, tudo tende a perder ordem e impedir troca de energia, a realidade vai passar infinitamente mais tempo caótica do que organizada de alguma forma perceptível por nós. Não importa se nosso universo vai existir por incontáveis anos, perto do infinito ainda é um lampejo.

Do ponto de vista do Caos, esse nosso brilhareco de pretensa ordem é indiferenciável de qualquer outra combinação. A ordem que percebemos ainda é caótica. Caos pode ter todas as combinações possíveis, Cosmo apenas algumas. Um é a base, outra é uma variação dela. Um peixe não é o oceano. Cosmos não é o Caos, Cosmos está contido dentro do Caos.

Lembrando que eu sou do time do Determinismo, ou seja, acredito que não exista nenhuma vontade real no universo, apenas ilusão de escolha por não conseguir prever o futuro. O átomo não quer nada, ele apenas segue o fluxo e no final das contas você é o resultado do sistema caótico que esse fluxo cria quando somados todos os átomos e forças fundamentais. Determinismo científico não significa destino ou capacidade de prever o futuro, apenas diz que o futuro não é previsível, por mais que seja inevitável.

Até por isso me é mais natural apostar que o universo é Caos: não tinha obrigação nenhuma de ter intenção mesmo. Tudo o que acontece ao nosso redor é compatível com uma realidade que não quer ou deixa de querer ordem. Basta combinar os elementos da forma como eles existem agora para ter a nossa realidade.

Repito: criamos ordem na nossa mente. Cosmos é um “deus humano”, Caos é a natureza pela natureza. E digo mais, abraçar o caos é a estratégia mais eficiente que a vida encontrou até hoje. A Teoria da Evolução é essencialmente caótica: mutações incontroláveis sendo selecionadas por um ambiente incontrolável.

Você pode tirar deste texto que nada importa e é tudo aleatório, mas você também pode tirar deste texto que não adianta ficar sofrendo por uma realidade caótica. Novamente, o universo não se importa com a escolha que você fizer, o caos é o estado natural das coisas e qualquer ordem que você vir nele é coisa da sua cabeça. Pode ser uma derrota, pode ser um superpoder, você escolhe.

Eu não vejo nenhum indício de que a ordem que enxergamos é intencional ou consciente, e sinceramente, não sei como outros conseguem ver. Se o Cosmos manda, quero ver ele me explicar o ornitorrinco ou a política brasileira…