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O feto.

O feto.

| Sally | | 28 comentários em O feto.

Cada vez mais difícil escrever o Desfavor. Falta pauta? Não, sobra. Primeiro dia do ano: surubão do Arpoador. Segundo dia do ano: Gusttavo Lima candidato a Presidente. Terceiro dia do ano: jovem executado por ter pisado sem querer no pé de traficante em baile funk. Quarto dia do ano: Influencer postando imagem de feto abortado em redes sociais. Quinto dia do ano: soldado israelense sobrevivente do massacre de 7 de outubro caçado no Brasil.

Tempo de leitura: 5 segundos (eu só queria ver a foto mesmo)

Resumo da B.A.: Nem li

POWERED BY B.A.

Como define o tema da primeira postagem do ano? Faz sorteio?

Escolhi o tema que Somir teria menos probabilidades de abordar, por abominar esse mundo de influencer e redes sociais. Vamos falar do casal de desqueridos que fez da perda de um bebê um evento documentado, com direito a close do feto expelido.

O casal de influencers Maíra Cardi e Thiago Nigro fez do aborto espontâneo de Maíra um evento. Filmaram diversas partes do processo, inclusive a ida ao médico quando ela sentiu que poderia estar perdendo o bebê. Gravaram tudo, até a notícia de que o bebê estaria morto, pois o coração parou de bater.

Isso, por si só, já seria bastante ruim. Em um momento como esse, lembrar que existe câmera e rede social e usá-la é um sintoma, não uma escolha. Mas o pior estava por vir. Quando o feto morto saiu do corpo de Maíra, não tiveram melhor ideia do que postar a imagem em redes sociais. E com legenda.

A foto que ilustra a postagem foi censurada pois ninguém é obrigado a ver um troço desses, principalmente as mulheres que já passaram por isso. Mas, se você quer ver a imagem real que foi postada, clique aqui. Não é sadismo, é para te dar uma noção de quão dessensibilizadas estão as pessoas imersas em redes sociais, que não tiveram uma trava na hora de postar isso.

Falar mal dos dois é fácil, inclusive pelo fator ex-BBB e influencer. Mas isso não acrescenta nada. A única coisa útil que podemos tirar dessa história bizarra é se voltarmos a observação para nós mesmos.

Primeiro como povo. O que esperar de um povo que é influenciado por essas pessoas? Tanto o papai como a mamãe vendem cursos, mentorias (tudo com preço de mais de cinco dígitos) e o pessoal compra, até mesmo parcelado. Como é possível que o brasileiro queira aprender algo com pessoas que tem a cabeça tão fodida, a noção de realidade, ética e adequação tão alteradas e uma falta de bom-senso (ou escrúpulos, vai saber) tão cavalar? O que isso diz sobre o povo brasileiro?

Não precisa trucidar o casal que, apesar de tudo, deve estar passando por um momento difícil. Basta não consumir. Não seguir em redes sociais, não curtir, não comprar curso, mentoria ou consultoria. O que aconteceu? Ganharam mais seguidores, mais engajamento e provavelmente vão vender mais.

Não tem como ver isso e continuar pensando que o que desgraça o país são os políticos malvados e corruptos. O brasileiro médio é rudimentar, sem ética, sem moral, sem noção básica de adequação e sem vergonha na cara. Estão perdendo a humanidade. Estão dessensibilizados. Passa um vídeo de pessoas cutucando um feto na sua rede social e as pessoas continuam seguindo quem fez isso.

Agora, a parte mais difícil, porém a mais importante: olhar para o próprio rabo. Sabendo escutar, todos podem ser nossos professores e ter algo a nos ensinar, mesmo que seja o que não fazer. Você pode olhar para esse show de horrores, subir em um pedestal e ficar criticando os autores da obra ou pode olhar para isso e tentar entender por qual motivo isso chegou a você e o que você tem a aprender e melhorar.

Rede social não é uma roleta-russa aleatória. Já falamos sobre isso no texto que ensina a monetizar as postagens do X. Redes sociais possuem um sistema bem desenvolvido de algoritmos, que te dão conteúdo similar ao que você posta ou ao que você lê. Nada chega ao acaso. As empresas gastam bilhões para se assegurar de que a pessoa receba conteúdo com o qual tem afinidade, já interagiu ou já curtiu. Se tem merda chegando até você em rede social, você fez merda primeiro. Reflita.

O problema é que existem merdas de diferentes graduações e diferentes aceitações de acordo com a bolha na qual a pessoa vive.

Se você vive em uma bolha de extrema-direita, será super aceito defender tortura e ditadura militar. No mundo real, tortura é crime e você pode ter sérios problemas se sair defendendo em ambientes públicos.

Se você vive em uma bolha de extrema-esquerda, será super aceito dizer que a facada do Bolsonaro foi fake pois não saiu sangue da ferida. No mundo real a ciência explica o motivo pelo qual isso acontece e expõe a pessoa (que gritava “respeite a ciência” na pandemia) ao ridículo.

Mas as respectivas bolhas aplaudem, então, a pessoa nem toma conhecimento da abominação que está falando. Então, na cabeça de cada brasileiro médio, o que ele faz, o que ele posta, o que ele diz, é perfeitamente aceitável, pois ele se pauta nas regrinhas da sua bolha.

Felizmente o mundo real não é uma bolha. E quando o mundo real critica vorazmente uma fala, postagem ou atitude, a pessoa se surpreende, não entende e atribuí a hate, a troll, a preconceito, a xenofobia, a racismo, a machismo, ao fato de a pessoa ser bolsonarista/petista (como se precisasse ser do outro lado para criticar um deles).

A crítica é imediatamente desqualificada e a pessoa continua postando merda, na certeza de que seu comportamento é super adequado, ético e bacana e o resto só a critica por motivos injustificados. Uma versão pós-moderna do “é inveja”.

E aí, obviamente, objetos inanimados levam a culpa. “O X é tóxico”. Não, não é. Ele é um espelho do que você diz, do que você vê, do que você consome. Se não gosta do que vê refletido no espelho, não chute o espelho, melhore. Uma rede social consegue detectar quando você “para” em uma postagem, quanto tempo fica nela e quantas vezes para em postagens com temas similares. É isso que ela vai te entregar. Pare de consumir merda e ela vai parar de te entregar merda.

Então, não adianta se indignar fervorosamente com algo grotesco, se você engaja coisas tão horrorosas quanto, mas que são menos grotescas e mais socialmente aceitáveis na sua bolha. Sem noção são sempre os outros, né?

Pessoas como esse casal (e até piores) tem engajamento absurdo no Brasil. Programas que partem do mesmo princípio de degradação, evasão de privacidade e exploração da miséria humana também. Está no brasileiro gostar disso, alguns, de forma descarada, outros, com um verniz social maquiando a escrotidão que faz com que sintam alguma superioridade moral. Minha mensagem no texto de hoje é: só porque está maquiado, não é mais aceitável.

O brasileiro acha normal usar rede social para saber da vida alheia, para fuçar o que o ex está fazendo, o que colega de colégio está fazendo, o que o filho do vizinho está fazendo. Isso é tão grotesco quanto. O brasileiro acha normal usar a rede social para expor problemas de família, de relacionamento, de trabalho ou de saúde. Isso é tão grotesco quanto. O brasileiro acha normal usar rede social para ir ao perfil alheio detonar algo que a pessoa gosta. Isso é tão grotesco quanto.

Por não ser tão ostensivo na forma, não quer dizer que seja menos escroto. São todos Tiago Nigro e Maíra Cardi, talvez um pouco mais educados, talvez um pouco mais dissimulados, talvez um pouco mais cuidadosos. Mas em essência? Mesma merda. Pode descer do pedestal. E passou da hora de adultinho fazer uma curadoria melhor do que consome, se não por ele, por sua família.

Parem de consumir merda. Você é o somatório das coisas que consome. O que sai de você é o processamento das coisas que você consome. Se você consome novela, reality show, fofoca, influencer, gente ostentando bens materiais, lavagem cerebral política, teorias da conspiração e outras porcarias, não vai sair nada que preste de você, mesmo que sua vida e seu trabalho não tenham qualquer relação com esses temas. Algo dessa merda que entra sairá no seu trabalho, no seu casamento, nos seus filhos. Não consuma merda. Não jogue merda nos outros.

Não tem como consumir merda e não sair merda de você. Assim como não tem como comer só fast food e ter um corpo saudável. Consumir bosta e ficar criticando a bosta não te livra de que isso te contamine, entendam de uma vez por todas. Se você comer fast food todo dia reclamando do quanto isso faz mal à saúde, seu colesterol sobe da mesma forma.

Não tem como consumir merda sem se sujar, sem feder, sem se contaminar. E, na real, se a saúde mental das pessoas estivesse bem, ninguém teria nem vontade de consumir lixo.

Mas a maior parte dos brasileiros tem. Alguns fazem escondido, outros fazem com alguma camuflagem para que seja socialmente aceitável e outros são descarados, mas, sendo bem sincera aqui, conto nos dedos de uma mão quantos brasileiros conheço que usam redes sociais sem consumir merda e sem jogar merda nela.

Você não vai mudar o mundo, mas pode mudar a você mesmo e, quem sabe, não jogar merda na sua família, no seu trabalho e na sua vida. É um ótimo começo.

Em vez de tacar pedra nesses dois infelizes, faça algo útil e reflita sobre o que anda consumindo e sobre o que anda jogando em redes sociais. Vida pessoal? Brigas? Problemas familiares? Indiretas? Exposição do corpo em busca de admiração e elogios? Ostentação de bens materiais? Intimidade? Privacidade? Informações sobre trabalho, clientes ou pacientes? Tem uma longa lista, que vai muito além disso, para você repensar. Use a oportunidade para rever o seu, fazer o seu, melhorar o seu.

Se você está aqui lendo quatro páginas de texto, bem ou mal, você é acima da média do brasileiro. Porte-se como tal. Toda cagada que você detectar em terceiros é uma ótima oportunidade para se perguntar: “não estarei fazendo o mesmo, mas em uma escala menor, mais sutil ou mais socialmente aceitável?”.

Infelizmente quando se vive em uma sociedade involuída, não basta se portar melhor do que os outros, pois a barra é muito baixa. Só de não comer com a mão, abusar da sua filha e matar seu vizinho por causa de uma mangueira você já está acima. Mas estar acima de merda não é mérito, então, não se acomode por estar acima. Queira melhorar muito mais do que a média do brasileiro, para, quem sabe, alcançar um comportamento aceitável em países desenvolvidos.

Então, não se acomode onde está apenas por não ser bizarro a ponto de postar uma foto de um filho/feto seu morto. Não fazer esse tipo de coisa está longe de te garantir um lugar no camarote das pessoas decentes, civilizadas e saudáveis. Olhe para o erro alheio e se pergunte: “Em escala menor, em escala menos grave, em escala mais sutil, onde eu cometo esse erro na minha vida?”. E melhore.

Esse é o único uso útil que esse show de horrores pode proporcionar. Francamente, quase nada me choca nessa altura, e eu nem sou uma mulher com vocação materna ou que se sinta atraída por bebês, mas essa imagem me deixou desconcertada. A falta de dignidade com que trataram essa vida em formação é uma das piores coisas que eu já vi em matéria de superexposição. A imagem é chocante.

E, um último dever de casa: quem se desculpa só porque o caldo entornou, dificilmente está se desculpando de forma sincera. Deve vir alguma justificativa romântica, revestida de algo comovente, como por exemplo dizer que estavam transtornados pelo ocorrido e isso turvou o discernimento ou dizer que queriam ajuda quem passa por isso… Balela. Tem método. Não é a primeira vez que fazem algo assim e não será a última.

Então, não repitam isso em suas vidas (ainda que em escala menor, ainda que mais sutil) e não passem pano para quem faz. Só assim esse tipo de abominação deixa de valer à pena, deixa de ser recompensada e, com sorte, acaba desaparecendo.


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