
Emergência.
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Julia descansava na sala dos médicos, como era seu costume em tardes preguiçosas de verão. O ar-condicionado não funcionava, mas a janela trazia uma brisa reconfortante. Com os pés descalços por cima da mesa de centro, finalmente tinha tempo para ver o presente deixado por um paciente agradecido pela manhã. O diminuto pote estava estranhamente bem embalado, com uma camada reforçada de filme plástico. Depois de algum esforço, descobre o motivo. Um pedaço de queijo. Seus olhos brilham instantaneamente; mal se lembra do gosto, mas as memória da infância a fazem salivar imediatamente.
Tempo de leitura: 1 minuto até dormir.
Resumo da B.A.: O autor espalha informação falsa sobre a realidade, enfraquecendo a democracia brasileira.
Ela olha para os lados para confirmar que está sozinha e parte para seu prêmio. Pouco antes de tocar a iguaria, escuta seu nome sendo gritado da sala de emergência. Ela larga tudo onde está e dispara em direção ao problema. O corredor até a ala de destino está lotado de lixo, para variar. Julia já reclamara muitas vezes com a equipe, dizendo que uma hora ou outra alguém vai escorregar e se machucar.
Uma das enfermeiras aponta a direção: numa das macas, um garoto de no máximo 10 anos de idade está extremamente pálido, rosto inchado feito um balão. O jovem está nu sobre a maca, sendo atendido por três enfermeiras que se esforçam para resfriar o corpo com compressas geladas. Julia chega até o rapaz e pergunta quanto tempo ele está assim. Uma mulher próxima se adianta: diz que é seu filho e começou a ficar assim uma hora atrás.
Julia já viu a cena inúmeras vezes. Choque anafilático. Crianças são mais vulneráveis. O corpo rejeita com força as bactérias injetáveis. Por melhor que seja a tecnologia, a natureza é teimosa e ainda quer as originais. O vírus deve acabar vencendo a batalha, infelizmente, mas de nada adianta agora se o corpo falhar depois de uma reação alérgica poderosa.
Ela aponta para as injeções de adrenalina, a enfermeira mais próxima pega uma delas, lambe os dedos, esfrega na agulha para tirar o pó e entrega para Julia, que injeta diretamente no acesso do braço. Ela tem que chutar a medida de acordo com o tamanho do garoto, parando a injeção mais ou menos no meio do caminho. Ela devolve a injeção para a enfermeira, que coloca de volta em cima do móvel ao lado da cama.
Ela prescreve um coquetel de antialérgicos e se volta para a mãe, que observa calmamente. Julia pergunta quantas vezes isso já aconteceu, a mulher responde que já perdeu as contas. O menino simplesmente não parece ser compatível com as bactérias disponíveis. Diz que viu que na Nigéria parece que tem uma variação menos alérgica, mas que o governo não oferece ainda. Julia responde com um aceno de cabeça desanimado.
Ela já havia pedido estoques de bactérias injetáveis de diversos outros países, fizera seu doutorado nas variedades amazônicas, e sabia que pelo excesso de uso, alguns pacientes só respondiam às africanas ou do sul asiático. O governo em Belém dizia que estava providenciando, mas já estava sem esperanças.
Julia toca o ombro da mãe da criança e se afasta. Quando se formou em medicina, tudo era diferente. Num mundo com bactérias naturais, aprendeu lições e lições sobre profilaxia, mas quase nada sobre como cultivar bactérias. Vinte anos atrás, alguém, provavelmente os chineses, liberou um vírus caçador de bactérias extremamente eficaz. Vinte anos atrás, a vida na Terra era possível além de ambientes extremamente quentes e úmidos.
Viu mais de 90% da humanidade perecer de desnutrição, sem flora estomacal ou intestinal. Viu quase todas as espécies falharem em se adaptar, com apenas uma minoria de bactérias especializadas sobrevivendo. Bactérias de ouro, modificadas em laboratório para realizar as funções das que utilizávamos para processar e absorver nutrientes. O problema é que só se reproduziam com eficiência em ambientes extremamente isolados do vírus, que de tão proeminente se tornou apenas o vírus no linguajar popular.
A vida só era possível com injeções regulares de bactérias. E nem todos os seres humanos eram compatíveis. Alguns organismos simplesmente rejeitavam a carga bacteriana usada para recuperar as capacidades de alimentação do ser humano. Para isso, precisavam tentar espécies diferentes criadas em outros grandes centros populacionais. Mas com o colapso do comércio internacional, menos e menos cargas atravessavam os oceanos.
Todo dia a mesma cena, inúmeras vezes. Alergias violentas causadas por bactérias injetáveis. Sem bactérias para enfrentar, o nosso sistema imunológico se tornara um monstro incontrolável. Nenhum vírus ou qualquer parasita se criava no corpo humano, nenhuma infecção bacteriana era capaz de fazer mal para alguém por mais que alguns minutos. Doenças causadas por insetos? Seriam um problema se tivéssemos insetos. A maioria desapareceu. Semana passada, Julia e duas enfermeiras passaram três horas tentando salvar uma barata que aparecera no hospital. O pequeno milagre da natureza desapareceu no meio do lixo, num final decepcionante.
A profissão do médico se resumia a tratar acidentes e alergias. Tanto que a maioria dos hospitais não precisavam mais deles. Eram um luxo, formados em tempos diferentes e relegados a segundo plano em prol de enfermeiros e enfermeiras mais especializados nas únicas causas de morte ainda possíveis. Apenas emergências como o Novo Hospital de Manaus ainda trabalhavam com pessoas como ela.
O menino passava bem. Segundo a mãe, ele sempre se recuperava, mas era só questão de tempo até ela voltar com o jovem nos braços depois da próxima injeção de bactérias. Julia volta até a sala onde deixara o pequeno pedaço de queijo, provavelmente feito com leite armazenado por décadas e decomposto por bactérias que deveriam valer milhões, se ainda estivessem vivas.
O pote plástico estava vazio. Alguém havia chegado antes dela. Julia, enfurecida com uma oportunidade que provavelmente nunca mais teria na vida, começa a abordar enfermeira por enfermeira. Num mundo praticamente sem cheiros naturais, as pessoas se esforçam muito para ter qualquer odor corporal, ficando meses sem tomar banhos. Mas não importa o quanto tentassem cultivar esses cheiros para atrair parceiros, eles sempre foram dependentes de bactérias. O hálito de quem comeu um pedaço de queijo seria reconhecível do outro lado da rua.
Julia exige que cada uma das suas colegas de trabalho abra a boca e chega bem perto para sentir o cheiro. Impossível não reconhecer a culpada. As outras jovens do local nem sabiam que cheiro era aquele, mas Julia, do alto dos seus sessenta anos de idade, uma das pessoas mais velhas do mundo, Julia sabia muito bem o que estava procurando. E é claro, achou.
A jovem, chamada Vanessa, começara no trabalho há poucos meses. Ela disse que não sabia o que era, mas o cheiro era de enlouquecer. Com lágrimas nos olhos, dizia que não sabia que era algo tão raro. Julia respira fundo, a fúria nos olhos se torna compreensão. Ela se lembra de como essas crianças sofreram. Vanessa tinha o quê? 19 anos de idade. Ela nunca sequer viu uma vaca, quanto mais leite ou queijo.
Cresceu com injeções dolorosas direto na barriga, num planeta moribundo cuja expectativa de vida caíra para pouco mais de 40 anos de idade. Um mundo estéril que não ligava mais para beleza, poesia ou qualquer um desses objetivos nobres de antigamente. Para ela, um pedaço de queijo era uma memória feliz, para Vanessa era uma experiência religiosa…
Julia se acalma, abraça a jovem e diz que está tudo bem. Ela chora copiosamente no seu ombro. Mais um dia no inferno. Mais um dia esperando pela natureza se curar. Julia afasta a cabeça para olhar nos olhos de Vanessa e diz que já que está feito, ela deveria pegar o resto do dia de folga e fazer uma surpresa para o namorado. Vanessa ri, enxugando as lágrimas.
A enfermeira aceita o mimo. Julia pensa em voltar para a sala de descanso, mas escuta seu nome sendo chamado mais uma vez. O dia continua na emergência, sabe-se lá quantos mais ela terá.
Esspero que o nosso mundo nunca chegue a ficar como esse em que a história acontece…
Ao menos a história é auto contida e não vamos ficar putos por falta de continuação.
Tem vários insetos que não tem microbiota intestinal. Não sei se sobraria alguma planta. A conta não fecha por causa da fixação de Nitrogênio. E vale pensar que dependendo do mecanismo o virus afetaria as nossas mitocondrias. Mas a premissa é muito boa. Acho que dava pra escrever um livro inteiro com isso. Ah, lembrando da especificidade dos virus e tambem dos mecanismos de resistencia em bacterias, acho que rapidinho iam surgir cepas resistentes. Evolução bacteriana é muito rápida e sempre tem a pressao seletiva pra variedades virais não lisogenicas, que se inserem no genoma. Seja como for, me diverti com essa história!!!
Eu apostei mais na quebra da cadeia alimentar do que vitória absoluta do vírus. A vida só existe de alguma forma ainda porque as bactérias restantes estão tentando. No livro eu te contrato para tapar os buracos mais óbvios! Hahahah.
“Quem Mexeu No Meu Queijo?”
Eu lutei para não colocar esse título.