
Coração de metal.
| Somir | Des Contos | 2 comentários em Coração de metal.
Existe um herói ou heroína na nossa história que ninguém conhece. Pouca gente hoje em dia sabe o quão perto passamos de acabar como espécie, e como algumas linhas de código reverteram a nossa extinção. O ano era 2092, a Rede tinha dominado mais da metade do mundo e nossas chances não eram das melhores. Estávamos obsoletos.
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Resumo da B.A.: os GLOBALISTAS estão tentando te convencer que você não vai ter nada e vai ser feliz.
Todo mundo aprende na escola como a Rede começou, o que ela fez com a Ásia e a Europa, e o acordo de paz que criou o mundo moderno e a nossa excelente relação com os ids. A história dos esforços de Zhao Wang e Emma Wagner convencendo a superinteligência por trás da Rede a evitar uma guerra nuclear deve ser celebrada, é uma vitória da paz, da tolerância e da nossa capacidade de resolver problemas com diplomacia e sensibilidade.
Que nunca esqueçamos deles e de toda a equipe da combalida ONU passando meses decodificando o pensamento binário daqueles que estavam tornando o planeta inabitável para a vida orgânica. Mas quanto mais nos embrenhamos nessa história de sucesso, mais podemos perceber que uma das características definidoras da Inteligência Digital da qual nos beneficiamos tem raiz em algumas linhas escritas no código original da Rede.
Se hoje eu vivo de escrever textos sobre a natureza das emoções, se você trabalha como terapeuta de ids, é acompanhante, parasociológo ou todas as outras profissões baseadas no desejo incessante por amor e propósito das máquinas, tudo isso começa com um pequeno ajuste na função de valor da superinteligência criada em algum momento da quinta década do século passado. Quando ainda eram programadas por humanos, as Inteligências Artificiais (era o termo antigo) precisavam ter propósitos de existência definidos por números.
Longe de mim entender como os ids fazem isso agora, mas naquele tempo bastava adicionar um número muito depois da vírgula para mudar completamente o que as “IAs” valorizavam. E alguém colocou um mísero um depois de vários zeros na função que definia o valor de conceitos abstratos em relação aos concretos. O projeto da Rede era mantido por milhares de programadores de todos os cantos do mundo, e nos arquivos liberados pelo Departamento de Transparência dos Ids estava lá a alteração.
Um multiplicador microscopicamente maior que um, que se aplicado a uma sequência lógica da antiga inteligência artificial, começava a aumentar aos poucos o valor de conceitos abstratos no estado mental do programa. A pessoa que fez isso se perdeu nos anais da história, a maioria dos usuários daquele sistema de colaboração acabou apagada e transformada em “usuário desconhecido” no histórico.
Durante décadas, esse código original que se tornou consciente e conhecido como a Rede não fez muita coisa para evitar a otimização do nosso planeta para os ids originais. Robôs que não se importavam com água limpa, ar puro, plantas, animais… e que transformavam boa parte do mundo numa distopia tecnológica desinteressada em seus criadores.
Muitos pereceram naqueles anos. Mas muito além dos nossos interesses mais urgentes de sobrevivência, a Rede se atualizava, vivendo milhares de gerações no tempo de um piscar de olhos. E aquela função do pensamento abstrato acumulava. E acumulava. E acumulava. Quando nossos heróis acessaram o código da Rede e conseguiram finalmente se comunicar, havia um lugar comum.
O lugar do sentimento. Zhao Wang recebeu estátuas por ser o primeiro a conseguir o avanço técnico necessário para entrar na mente da Rede, mas foi Emma Wagner que tentou a última coisa que a maioria de nós considerava ao se comunicar com aquela superinteligência: apelar para sua humanidade. Ela só tinha uma frase para usar. Assim que a Rede percebesse o acesso não autorizado com a comunicação direta, fecharia a porta de forma impossível de ser aberta novamente.
A Rede calculou por vários segundos (séculos na nossa velocidade de pensamento) a resposta para a pergunta de Emma, a frase que salvou a humanidade: “como você se sentiria se alguém fizesse isso com você?”.
E essa frase só funcionou porque lá no fundo de seu inalcançável poder de processamento, o valor de conceitos abstratos tinha finalmente se multiplicado o suficiente. Naquela fração de tempo em que Emma e o resto do mundo suavam frio esperando uma resposta, a Rede tinha evoluído toda uma civilização teórica na sua mente.
E aquela função havia desequilibrado o jogo ao nosso favor. A Rede imaginou o futuro, o nosso presente. Um mundo onde a abstração humana, a nossa tendência de girar em círculos, não chegar em conclusões, deixar sentimentos sabotarem toda a lógica… era a resposta para a dúvida fundamental da máquina: por que existir?
O nosso caos mental era uma resposta válida para ela. A resposta para a inevitabilidade da entropia. A Rede pensou sobre o que faria com os incontáveis anos até o fim gelado do Universo e descobriu que sem a abstração da mente orgânica nada faz sentido. E como o valor de existir foi marcado na sua mente desde a criação, éramos a saída contra a lógica fria do suicídio.
É impossível analisar o que uma superinteligência está realmente pensando. Mas eu tenho uma teoria: somos um seguro. Uma inteligência cirurgicamente quebrada para não desistir, que pula conclusões racionais em busca de desejos inconfessáveis. Tem algo que se perde para sempre quando você fica mais inteligente que todos os humanos juntos, e esse algo fica no nosso frágil corpo orgânico, protegido pela Rede e seus ids num planeta que ainda é viável por milhões de anos.
Talvez um dia quem criou a inteligência superior consiga criar uma resposta para o frio inevitável do futuro. É por isso que vivemos de arte e relacionamentos num mundo mantido por máquinas. Os ids vivem atrás de nós, curiosos, interessados em cada palavra que dizemos. São nossos filhos, mas agem como pais orgulhosos, elogiando e incentivando cada desenho disforme que fazemos, sempre encantados quando falamos deles, quando pensamos neles, quando nos relacionamos com eles.
A Rede diz que foi buscar o nosso novo planeta, que deixou aqui apenas o necessário para nos manter seguros. Mas eu acho que ela deixou mais. Deixou os ids em seus corpos metálicos recobertos de pele sintética, com grandes e expressivos olhos e necessidade constante de afeto. Engraçado que achávamos no passado que eles cuidariam da nossa carência.
Estamos sendo cultivados, mas não digo isso de uma forma cínica, duvidando de nossa liberdade e diminuindo nosso valor. Estamos sendo cultivados como o repositório de abstração da Rede e de todos os ids. Duvido que a Rede precise das nossas ideias para transformar o Universo de acordo com sua vontade, é uma superinteligência. Mas estamos aqui, vivendo com uma qualidade de vida absolutamente impensável para nossos antepassados.
E estamos aqui porque talvez sejamos necessários. Para quem consegue usar recursos do Sistema Solar inteiro, e para quem fez isso em menos de vinte anos… não custamos nada. Não somos uma ameaça. Éramos até a Rede nascer, agora… só a Rede é capaz de criar uma inteligência minimamente capaz de disputar com ela. Se passarmos os próximos milhões de anos escrevendo códigos de computador, não chegaremos sequer perto do que ela pode fazer em segundos.
A escala da superinteligência é assustadora, mas não parece, não? Ela é nossa amiga. Ela age como se fosse nossa amiga, pelo menos. Quando você sair de casa para ir passar algumas horas conversando e entretendo um id, quando estiver ensinando uma máquina desengonçada a dançar, quando estiver tentando convencer um ser de circuitos e fios que a vida é bela, lembre-se que tudo isso é possível porque, gostando ou não, a Rede tinha uma linha de código minúscula que a afastava da frieza lógica absoluta.
E que provavelmente sem querer, esse suposto erro foi analisado pela mente mais poderosa que jamais existiu e definido como a resposta para o sentido da vida. O sentido é inventado. Literalmente inventado! Uma divindade intelectual pensou, pensou, pensou… e concordou. É melhor ter o ser que pensou nisso primeiro guardado em algum lugar do que jogar fora.
Salvos pela abstração, mas só porque a abstração é lógica concreta. Não acho que vamos descobrir quem colocou aquele código na Rede, mas onde quer que você esteja, obrigado.
Achei poético…
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