
Gaza Resort Club
| Somir | Flertando com o desastre | 12 comentários em Gaza Resort Club
Trump continua sendo Trump. Mais uma declaração estapafúrdia ao lado do primeiro-ministro israelense: disse que deveriam ocupar Gaza e mandar a população local para outros países. Quem ocuparia, como ocuparia, para onde iriam os refugiados… nada explicado. Provavelmente é o plano dele mesmo soltar a bomba e deixar o mundo reagir. Mas isso me leva a pensar numa questão mais prática: faz sentido reconstruir a Faixa de Gaza?
Tempo de leitura: 10 mil anos
Resumo da B.A.: Israel é nosso maior aliado cristão! Temos que apoiar os israelenses porque eles são contra os muçulmanos que fazem as mesmas coisas com gays e mulheres que a gente quer fazer, tá okay?
O território palestino foi destruído como retaliação a um ataque terrorista do Hamas. Em tese, a ideia era acabar com a capacidade do grupo de causar problemas futuros para Israel, mas… não me parece um objetivo alcançável, não dentro do que consideramos aceitável na era moderna. Tanto que na hora de entregar os reféns israelenses depois do acordo de cessar-fogo, estavam lá sei lá quantos soldados do Hamas participando da “parada da vitória”, com rifles apontados para os céus e panos cobrindo o rosto.
A visão realista da coisa só tem um resultado: com as cidades reconstruídas, o Hamas ou outro grupo terrorista vai recomeçar as hostilidades. E Israel vai continuar estando ali do lado, com os mesmos planos de assentar todo e qualquer território palestino. Durante as negociações, cada um vai dizer que só quer viver em paz na sua parte da região, mas assim que possível, ambos os lados vão voltar a seguir o plano original: acabar um com o outro.
Boa parte do povo palestino e israelense não querem guerras, mas também não querem ceder espaço. Por crenças milenares de fundo religioso, mas eu argumento que principalmente porque não confiam uns nos outros com qualquer tipo de poder. Como conviver com um vizinho que você tem certeza de que está só esperando uma chance de te matar?
Tem motivo para a região estar em pé de guerra há mais tempo que temos história escrita, a animosidade vem de tempos de tradição oral e é mais antiga que as religiões que os povos de lá seguem. Aquela região é considerada o berço da humanidade como conhecemos. Eles estão lá brigando por espaço desde que o ser humano saiu da Idade da Pedra.
É mais profundo que judeus e muçulmanos. Sim, porque eles convivem em outros lugares do mundo. Sinagogas e mesquitas podem estar no mesmo quarteirão em quase todos os outros países do mundo, em lugares onde não tem essa história, esse povo pode até ficar amigo. Aliás, tem muitos momentos históricos onde as religiões abraâmicas conviveram pacificamente.
O problema da Faixa de Gaza é muito mais pessoal do que institucional: eles estão vivendo do lado de gente que literalmente matou seus parentes. Eles viram o pessoal do outro lado da fronteira invadir e matar pessoas que conheciam. E eles estão vendo isso há gerações. A gente na América Latina não tem nem estado mental compatível para entender isso: é como se ao invés de sermos rivais dos argentinos nos esportes, ano passado eles tivessem invadido o Rio Grande do Sul, matado, torturado e estuprado mil pessoas e voltado correndo para seu país. As pessoas que fizeram isso ainda estariam lá, uma fronteira de distância. Nenhum gaúcho dormiria em paz. E pior: se você perguntasse para esses argentinos hipotéticos, eles se diriam justificados porque o Brasil matou incontáveis argentinos enquanto tentava tomar seu território.
O mais próximo disso que alguém vivou neste continente foi na época das conquistas europeias. Alguns séculos sem invasões terríveis foram mais do que suficientes para fazer passar esse ódio visceral que os nativos deveriam sentir pelos espanhóis e portugueses. Lá nunca parou. Não há relação entre o que entendemos agora sobre relações internacionais entre países modernos e a relação entre palestinos e israelenses. Ou entre diversos outros povos do Oriente Médio. É tudo recente, é tudo coisa que está na memória pessoal dos envolvidos.
Por isso, tem algo de razoável na irrazoabilidade tradicional de Trump. De um ponto de vista mais distanciado dos sentimentos locais, realmente parece mais óbvio cortar o mal pela raiz. Aceitar que esses povos não podem compartilhar uma fronteira. Aceitar que vão precisar ficar distantes um do outro por várias gerações até termos uma chance de o ódio diminuir.
Sério, o que acontece se reconstruírem Gaza e colocarem lá de volta o mesmo povo? O que mudou na relação entre palestinos e israelenses para presumir qualquer coisa diferente de mais ataques nos anos seguintes? Se a relação entre os povos é a mesma, a Faixa de Gaza vai ser reconstruída só para ser demolida novamente. Essa futilidade vale para qualquer lado que você considere mais justificado.
Se você é time Palestina, Israel vai continuar sufocando o território até o Hamas ou outro grupo terrorista tomar a região. Se você é time Israel, vai ver o ciclo se repetindo do mesmo jeito, vai continuar tendo ataque terrorista e foguetes. A parte do povo que não quer se matar vai ter sua mão forçada de novo.
Não mudou nada na dinâmica entre os dois. Trump escolheu um lado para vencer definitivamente a disputa pelo território, por isso gerou tanta reação negativa, mas… o que resolve a Faixa de Gaza e toda a questão Palestina senão uma vitória total de um dos lados? Eu não sei se é possível fazer as pessoas dos dois lados da fronteira confiarem umas nas outras novamente. Não nas gerações que detém o poder agora e que vão herdá-lo num futuro próximo.
A situação não se resolve porque tem gente o suficiente no lado israelense e palestino que não vai aceitar nenhum consenso. Gente que quer que o outro lado desapareça. E quando você que está de fora escolhe um dos lados como o mais justificado, não deixa de dar suporte para a “solução final” pregada pelos extremistas. Do jeito que a coisa está, só genocídio total acaba com as guerras. É algo que não pode mais ficar escondido no fundo de ideologia de rede social. Precisamos lidar com esse elefante na sala.
Se você escolheu um lado, saiba que eventualmente isso desanda para matar todas as pessoas do outro. Esse é o buraco no qual as discussões sobre justiça na região vão cair uma hora ou outra. A suposta ideia de Trump de transformar a região num resort brega de prédios dourados e campos de golfe é uma piada de mau gosto se você pensar em todo o sangue derramado ali, mas goste ou não, é uma das soluções que não termina em genocídio. Acordos de paz não duram ali porque a paz não é objetivo de israelenses e palestinos. No fundo, eles estão esperando que o outro lado seja exterminado e só querem ganhar tempo.
Muita gente vai dizer que Trump deu a ideia mais escrota possível e vai achar todo tipo de justificativa para dizer que na verdade é um crime humanitário. Mas é importante se prender à realidade: eles querem se matar. Mesmo que não seja um pensamento claro na mente deles quando perguntados, se você prestar atenção, jogaram fora qualquer chance de fazer paz que os dois povos tiveram nas últimas décadas. Começa a ficar claro que há uma expectativa real de vitória por genocídio no futuro, e se aceitarem alguma solução diferente, perdem essa chance.
Inutilizar a Faixa de Gaza como território do povo palestino é um crime contra o direito daquele povo, mas não é o genocídio que vão tentar empurrar como objetivo final de Trump. É uma solução que não termina no extermínio de milhões de pessoas, mas no deslocamento delas.
Mas é injusto!
Sim, eu também acho, Israel teria feito as coisas de um jeito escroto, tomando território e usando dinheiro americano para forçar seus vizinhos, e teria sido recompensado. Agora, se você aceita a premissa que tem gente demais dos dois lados que só quer matar todo mundo do outro, você realmente acha que existe uma solução humanitária disponível?
Da sua forma tosca, Trump coloca o dedo numa ferida que faz tempo demais que estamos ignorando. Há uma presunção que os dois povos querem a paz, mas a história nos diz que ela está errada. Esses povos provavelmente não querem resolver na conversa, talvez cidadãos sozinhos queiram, mas seus líderes não. Israel é uma democracia e o Hamas foi eleito na Faixa de Gaza, com uma fachada de “mais moderado politicamente”, mas era o fuckin’ Hamas. Se a gente sabe quem eles são aqui do Brasil, o povo de Gaza sabia também.
Ambos os lados escolhem esses líderes por acharem que é mais seguro estar debaixo da proteção deles. A direita israelense se vende dizendo que vai manter o país seguro dos inimigos regionais, e sempre elege gente suficiente para formar o governo. A situação horrível não passa despercebida: a violência continua pelo medo da violência. Eles sabem instintivamente que qualquer vacilo pode significar sofrer um genocídio, dão poder para quem diz que vai evitar o genocídio… que sempre é alguém que no fundo quer fazer o mesmo com o outro lado.
A ideia específica do Trump pode ser uma porcaria, mas é uma ideia que muda a lógica genocida. A realização que me fez colocar este texto como Flertando com o Desastre é que muita gente está em negação sobre como a solução dos dois países é basicamente empurrar com a barriga até o genocídio de um dos povos finalmente acontecer. A pessoa com boas intenções entra no meio desse ódio ancestral e acha que pode resolver na conversa, que eventualmente eles vão aprender a conviver.
Não vão. Se continuarmos nos termos de israelenses e palestinos, eles ficam nessa briga até um dos povos acabar. Eles vão até fazer acordos de paz temporários só para não perder a possibilidade futura de genocídio. Se você é contra o extermínio de um povo inteiro, tem que achar alternativas fora do estado mental da região. Vai dar voltas e voltas e chegar na mesma conclusão sempre: eles não querem nada que não termine em genocídio. Eles vão se enganar para achar que não estão fazendo isso, mas estão, porque é nisso que toda “solução” para a questão de Israel e Palestina sempre acaba: resetando todo o processo até a próxima chance de matar todo mundo do outro lado. Enquanto isso não acontece, vão sabotar toda tentativa de paz, consciente ou inconscientemente.
Estou sendo repetitivo porque esse ponto é um dos mais incisivos que já escrevi aqui: a solução de dois Estados é, em última instância, genocida. Porque ela só existe para ganhar tempo até um dos lados finalmente matar o outro. Existe um limite de quantas vezes podemos nos enganar que no fundo eles só querem conviver pacificamente. Novamente, a ideia de Trump não significa que seja o único jeito de seguir em frente, é delirante querer transformar o lugar na “Riviera do Oriente Médio”, mas é uma ideia que sai da caixa genocida.
Entra na caixa de limpeza étnica, quebra sei lá quantas leis internacionais e viola direitos humanos… mas não é mais uma ideia que mantém o status quo genocida entre os dois lados. Eu acho importante dizer isso, porque achar o que o Trump sugeriu um absurdo não significa que não tenha uma verdade inconveniente por trás: é uma das primeiras ideias de terceiros em sabe-se lá quanto tempo que tira de palestinos e israelenses um ponto de disputa potencialmente assassina.
Se você acha que terceiros devem se envolver para resolver o problema, primeiro tem que ter a concordância dos envolvidos sobre resolver o problema. Eu já entendo que no fundo eles não querem nada que impeça um massacre total do inimigo no futuro. E das sugestões de terceiros se metendo na história, transformar a Faixa de Gaza num clube de golfe gigante gerenciado pelos EUA é a que menos mataria pessoas. Bizarro chegar nessa conclusão, mas a situação lá é bizarra há milênios.
Existe também um outro caminho: eles que resolvam. O problema dessa opção é que o “mundo ocidental” já se enfiou demais financiando o potencial militar israelense. Se deixar solto, Israel toma tudo e expulsa os palestinos, criando uma guerra total na região, que eles provavelmente venceriam depois de muito sangue e urânio derramados.
Hoje o plano vigente e defendido pela maior parte dos outros países é não resolver. Nem de fora para dentro, nem de dentro para fora. Vão garantir mais e mais gerações traumatizadas e raivosas que não deixam a região seguir em frente.
Então, eu tenho essa dúvida honesta: a ideia de Trump é pior do que isso?
Eu realmente tive um choque com o posicionamento da Sally sobre Israel em posts lá atrás e até havia parado de ler o Desfavor após longos anos.
Fiquei realmente de coração quentinho agora.
Excelente texto.
A Sally fala basicamente as mesmas coisas que eu, mas as pessoas ficam putas quando ela fala.
Podiam separar um pedaço da Califórnia pra eles (pode ser aquele pedaço de deserto queimado mesmo) e dar green card pra todos os Palestinos. Aí a coisa vai.
Mas em linhas gerais, eu concordo com o Somir. O problema maior é que não tem onde botar essas 2 milhões de pessoas. Não acho uma boa idéia colocar elas pra trabalhar no campo de golfe.
Com exceção de Trump, o resto dos políticos e das instituições dos EUA não tem ganhos colaterais demais em manter a situação como está pra permitir que uma “solução” seja colocada em prática, seja ela genocida ou não?
“A ideia específica do Trump pode ser uma porcaria, mas é uma ideia que muda a lógica genocida”.
Estava assistindo uma entrevista com hoje Don Soler, um israelense que escreveu um livro muito bom chamado “Israel: Start-Up Nation”, e que foi assessor de Mitt Romney, candidato à presidência dos EUA (perdeu para o Obama, reeleito).
Basicamente, disse que, por mais que a ideia seja maluca, serviu ao menos para expor outro elefante na sala: se os árabes (sobretudo a Arábia Saudita) realmente se importam com os palestinos, porque não compram a ideia do Trump e tocam eles mesmos esse projeto com seus petrodólares?
Não demoraria muito fazer, se comparado a quanto tempo dura esse conflito: depois que Israel lhe devolveu o Deserto do Sinai, o Egito, na sua pobreza, estimulou a criação de um resort na cidade de Sharm El Sheikh em poucos anos, em que volta e meia ocorrem grandes eventos políticos internacionais inclusive (e, para quem gosta de scuba diving, é um dos melhores lugares do mundo para isso, recomendo).
Só que, em vez de uma empreitada definitiva, mais divertido torrar grana no Hamas e usar os palestinos como bucha de canhão, até porque todo lugar que Israel desocupou, foi obrigado a ocupar novamente em algum ponto da história.
Eu entendi a premissa do texto e do Trump, mas uma vozinha na minha cabeça ainda diz “os israelenses chegam ali, consolidam um estado e os palestinos que têm de sair?”
É claro que é melhor dispersar a população do que simplesmente deixar que se matem. Mas achei uma solução muito “conveniente” para Israel. E se não parar por aí? Graças a cagada dos próprios palestinos de defenderem terroristas para suas bandeiras, vai que agora por onde forem, sejam considerados terroristas independente do quê.
A partir do momento que os palestinos confiaram em terroristas para resolver a questão e não investiram em tratados para a existência do estado palestino com os israelenses (se pelo me engano Israel mesmo em algum momento quis isso), cravaram a própria derrota.
“O problema dessa opção é que o “mundo ocidental” já se enfiou demais financiando o potencial militar israelense.”
Não sei se o quê vou perguntar tá fugindo muito da proposta do texto e já peço desculpa pelo estapafúrdio do pensamento mas será que as nações estão caminhando para a dinâmica “medieval” de voltarem-se só para si? (Sou leiga em história em um nível maior de aprofundamento).
Ex. Os EUA com a sua política atual, a Inglaterra saindo da UE há algum tempo atrás.
É por isso que a direita moderna fala em ser antiglobalista. A tal da “agenda globalista” que eles dizem combater é o sistema econômico que dominou o mundo desde o fim da Guerra Fria, uma abertura imensa de mercados que acabou com muitas das tarifas de importação. A globalização é o processo de diminuir o peso de fronteiras nas relações entre os países. Segundo a turma que é contra isso, criou muita desigualdade ao retirar empregos de seus países para realocá-los na China, por exemplo. O discurso é poderoso justamente para o cidadão mais pobre que viu a fábrica da sua cidade ir embora e levar com ela o emprego que ele e seus conhecidos tinham.
Então sim, essa dinâmica “medieval” bate muito com a mentalidade de políticos como Trump, Bolsonaro, Milei… e foi um dos argumentos mais fortes para fazer os ingleses votarem para sair da União Europeia.
Resumindo:a ideia do Trump, apesar de ser de jerico, é a primeira em muito tempo que não prevê uma guerra total entre os dois antagonistas, a animosidade na região vai continuar, e não há como resolver, em um futuro próximo, um problema que vem desde eras imemoriais.
Tem coisa que muita gente pensa, mas acha feio dizer. Trump não tem isso, ele pensa falando / fala pensando, o que sair, saiu.
Na terapia, grandes avanços vem de falar em voz alta o que você pensava e se escutar dizendo aquilo. Trump faz terapia para o mundo todo do jeito dele. Depois de ouvir ele falando, você lida com a ideia no mundo real, e pelo menos no meu caso, me fez perceber como é impossível atender os desejos de dois grupos de pessoas que querem se matar sem… que alguém morra.
Eu normalmente evito comentar sobre os problemas da Palestina porque fui aluna de um dos maiores especialistas no tema do mundo, que respeito muito, e sei que ele discordaria de mim por achar desumano tirar o povo palestino de Gaza. Mas o Somir tem razão. A coisa mais caridosa a se fazer é admitir que os palestinos perderam a guerra e tirá-los de lá. Pegar toda a terra e fazer limpeza étnica era a ideia de Israel desde o início, com apoio dos EUA, e estou espantada que tenham deixado palestinos vivos pra contar a história.
O fato deles terem votado no Hamas e confiado no terrorismo deles pra divulgar a causa não exatamente ajudou, ainda mais com a chacina de 2023. Muito melhor dar uma chance de recomeço a essas pessoas em outra terra, ao invés de tentar lutar uma guerra perdida até que todos morram de uma forma horrível.
É desumano tirar o povo palestino de Gaza. A gente pode ter essa visão e ao mesmo olhar para a situação e se perguntar: não é mais desumano que eles continuem lá? Sério, quanto mais eu penso nesse caso, mais me parece o dilema do bonde.