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Fantasia de poder.

Fantasia de poder.

| Somir | | 8 comentários em Fantasia de poder.

A vida é complicada para a maioria de nós. Até mesmo as pessoas que nasceram nos berços mais esplêndidos passam por dificuldades. A fantasia de poder é um termo muito comum em jogos que explora a nossa vontade de ter poder para controlar o mundo ao nosso redor. Na maioria deles, nos é dada alguma capacidade especial que nos permite conquistar os desafios. E como você lida com esse conceito pode dizer muito sobre você.

Eu pensei neste tema por causa dos jogos que costumam me atrair: quase sempre é algo superficialmente complexo, mas que com o conhecimento das mecânicas pode ser manipulado a se tornar algo até mesmo trivial. Muitos desses jogos caem na categoria de RPG, porque é nessa que montar sua personagem da forma certa, incrementalmente, faz com que a fantasia de poder chegue no nível máximo.

Ou seja: eu gosto da ideia de acumular poder planejando. E tem tudo a ver com as coisas que eu mais valorizo na vida. Não é sobre sentir o momento, ter ótimos reflexos ou mesmo usar a experiência da repetição para conhecer os atalhos, é sobre pensar e “resolver o problema” antes dele acontecer. A minha fantasia de poder é mais intelectual do que física ou emocional. Provavelmente porque na vida real é como eu me enxergo mais capaz.

Mas como todo mundo já deve saber hoje em dia, o mercado dos jogos é gigantesco. Bilhões se distraem com alguma forma ou outra de escapismo, e partindo do princípio de que a fantasia de poder está na base de todo o apelo, podemos perceber como as pessoas têm focos diferentes. Se todo mundo quer se sentir poderoso, o caminho esperado muda bastante.

Então, numa pegada meio astrológica, talvez possamos identificar a forma como as pessoas se enxergam baseados nos jogos que elas preferem. Não é sobre a mecânica do jogo em si, mas em como ele entrega a fantasia de poder. Ao contrário de filmes, séries e outros tipos de material de entretenimento, jogos te fazem ser protagonista. Então, por mais que fantasia de poder seja essencial em outros conteúdos, são nos jogos que temos o melhor indicador de como as pessoas querem chegar nesse poder.

Eu comecei a jogar a versão 2 de um jogo que até analisei aqui no passado, Path of Exile. É a minha fantasia de poder perfeita: se você conhecer bem a forma como o jogo funciona, seus detalhes, as combinações de objetos e habilidades, você nem precisa ser um jogador tão bom. A mecânica ainda é importante para progredir, mas pode ser trivializada com planejamento.

Eu me diverti bastante fuçando no jogo e achando as melhores formas de me tornar poderoso nele. Mas se você for ver as análises da maioria dos jogadores, vai perceber uma imensa maioria de pessoas irritadas com o jogo. A crítica mais comum é que ficou difícil demais e não recompensa o jogador o suficiente. E ao invés de fazer uma análise técnica sobre como jogar o jogo, podemos fazer uma análise de fantasia de poder.

Não sei se foi de propósito, mas no jogo a fantasia de poder ficou fechada numa caixa que parece que foi feita para pessoas como eu: se você não se aprofundar na forma “certa” de montar sua personagem, fica muito difícil mesmo. Calhou da minha fantasia de poder ser a “forma correta” de avançar no jogo, então eu nem percebi o incômodo que muitos relatavam.

Agora, outras pessoas que gostam de chegar no seu poder imaginário de formas diferentes… essas se viram batendo em paredes de dificuldade que não estavam preparadas para escalar. Sempre vai ter o nerd elitista que chama todo mundo de burro ou preguiçoso por não ter o mesmo resultado que ele, mas eu já passei dessa fase: tem um motivo pelo qual os jogos modernos ficaram tão… parecidos. Eles querem alcançar tanta gente que precisam de múltiplos caminhos para entregar fantasia de poder.

Eu dificilmente vou ser bom em jogos que exigem decisões rápidas constantes. Não é meu jeito de funcionar, e não existe motivação interna para desenvolver essa habilidade. E tem muita gente que é naturalmente ruim em jogos que incentivam planejamento antes de agir. Eu não me considero um incapaz por ser um desastre em jogos de tiro de primeira pessoa, eu não considero incapaz quem pega um jogo daqueles tipos que eu adoro e acha uma chatice que o sistema seja baseado em planejar ações.

Porque é sobre fantasia de poder. Existe fantasia de poder até mesmo naquela sua tia que joga Candy Crush sem parar. É uma fantasia de ordem no caos, de conseguir arrumar as coisas, mas é fantasia de poder também. Não é relacionado com ser um bárbaro musculoso batendo em monstros, é sobre como você enxerga sua capacidade de agir no mundo e o que você espera conquistar com seu esforço.

Mais: o que você acha justo conquistar com seu esforço. No jogo que eu mencionei, muita gente ficou frustrada porque investiu tempo nos sistemas de jogo, teve que lidar com muitas escolhas técnicas… e mesmo assim não aparece resultado. A pessoa esperava receber sua fantasia de poder dedicando esforço dentro do jogo, mas o segredo do sucesso estava em pensar nele enquanto você não estava jogando, e tomar decisões antes de ir lá “bater nos monstros”.

Eu não culpo a irritação dessas pessoas, elas não estavam jogando errado, não pela lógica vigente na indústria dos games, quase ninguém parece cobrar das pessoas estudar sobre a porcaria de um joguinho para saber o que fazer. É para funcionar direto, começou a jogar, lá dentro do mundo você aprende o que fazer para ter sua dose de fantasia de poder.

E talvez isso explique muito sobre como o ser humano médio funciona: ao invés de ficarmos frustrados como a maioria das pessoas parece não gostar de estudar, pode ter uma lição valiosa sobre como as pessoas gostam de se desenvolver. Com informações imediatamente úteis e progressão por esforço “reflexivo”. Ou seja, o cidadão médio é mais do time Mario Bros do que Path of Exile 2. Tem que ver o bicho, pular na cabeça dele e ver o número do placar subindo. Se você exigir da pessoa preparar alguma coisa antes disso, ela vai ficar frustrada, porque se ninguém disser para ela com todas as letras que precisava estudar aquilo, ela vai se sentir traída.

Adianta teimar? Não adianta. Essa fantasia de poder de agir com “informação perfeita e imediata” para chegar no sucesso é a norma. Quem sente prazer em estudar algo antes de tentar fazer é minoria, uma anomalia que nem quer dizer evolução direta. Pensadores que não vão para o campo prático também não são lá muito eficientes para levar a humanidade para frente.

O que eu achei interessante nesse exercício de pensamento “fútil” sobre jogos é como tem algo muito nosso nessas fantasias de poder. Que não é sobre o resultado dela, mas como você acha certo chegar nesse poder. Se você valoriza decisões rápidas, experiência, dinheiro (tem gente que é feliz comprando avanços em jogos), planejamento… a partir dos jogos que te deixam mais vidrado ou vidrada, tem algo sobre como você enxerga o mundo.

Alguma coisa naquela progressão entre o começo do jogo e o sucesso te parece certa. Alguma coisa parece errada naquelas que você simplesmente não consegue conquistar. E como estou dizendo aqui, é mais sobre a sua fantasia de poder do que sobre os comandos que você coloca na tela. O que nos parece certo e justo gera muito mais recompensas e motivação.

Se é ler duas páginas de comentários sobre um poder obscuro num jogo qualquer ou se é agir da forma mecanicamente exata quando confrontado com um desafio nele, isso é uma janela para seu inconsciente. Para sua noção de realidade. Talvez eu fale mais disso no futuro, mas os jogos modernos podem estar refletindo uma sociedade frustrada com a dificuldade de ganhar pontos na vida real fazendo as coisas que parecem mais óbvias.

Tem que trabalhar, casar e ter dois filhos e meio, certo? Mas o jogo funciona quando você faz isso? Aparece alguma barreira intransponível que ninguém te explicou como passar? Precisava saber alguma coisa antes? Tinha um item escondido em algum lugar? O escapismo mais popular é um bom indicador do que as pessoas querem escapar.

E talvez elas queiram escapar de sistemas que não te contam o que você precisa fazer ou prendem avanços atrás de aleatoriedade. E mesmo nos jogos que tem sistemas de aposta, ainda parece que eventualmente você vai conseguir ganhar dentro das regras que já foram estabelecidas. As pessoas aguentam bem quando existe um sistema de regras que elas já entendem quando começam a jogar.

Mas elas ficam muito irritadas quando seguem as instruções da tela e morrem no primeiro inimigo mais forte. Fantasia de poder não deixa de ser a forma como você imagina que as coisas deveriam ser. Conheça a sua.

A minha não parece dar dinheiro, fica a dica…

Comentários (8)

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