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Trabalho inferior?

Trabalho inferior?

| Somir | | 8 comentários em Trabalho inferior?

É comum ouvir histórias de conhecidos e ver postagens na internet sobre pessoas muito qualificadas precisando trabalhar em empregos que nada tem a ver com essas qualificações. Empregos que consideramos “abaixo” dessas pessoas. O famoso motorista de Uber com diploma de engenharia. Culpa-se a economia, a sociedade… mas será que é tão injusto assim?

O último estudo sobre analfabetismo funcional feito no Brasil trouxe um número impressionante: 12% das pessoas com ensino superior eram consideradas incapazes de entender textos, aplicar conhecimento na prática, usar matemática e ferramentas digitais.

E como falamos nos textos sobre essa pesquisa recentemente, essa era a barra mais baixa para passar: se fôssemos cobrar compreensão do nível para entender textos relativamente curtos como o Desfavor, por exemplo, seja para concordar ou criticar, com certeza o número iria muito mais longe. Medo de descobrir quanta gente é capaz de absorver o conteúdo de um livro técnico ou entender o que se ensina num curso de longa duração.

Existem pessoas com ensino superior que não conseguem acompanhar este texto. Não está na hora de colocar o Uber com diploma de engenharia em perspectiva? Ou a pessoa que reclama no LinkedIn por não conseguir emprego mesmo tendo um currículo cheio de cursos? Com certeza tem gente que é muito capaz e dá azar na vida, mas como separar elas de uma provável massa de pessoas que só tem diploma… no papel?

A incompetência não atinge apenas aqueles que são incompetentes, ela pune a sociedade de forma generalizada. A maioria dos empregadores começa a ficar cínica com as histórias de injustiça contadas pelas pessoas, porque tem experiência prática de contratar gente incapaz que prometia mundos e fundos. É difícil saber se é alguém que vai prestar numa situação ruim ou se é alguém que não vinga na sua profissão por incapacidade de trabalhar direito sozinha ou em grupo.

Sabe-se que tem gente muito boa perdida no meio da massa, mas ainda sim é uma massa composta de muita gente que simplesmente não sabe fazer o seu trabalho. Às vezes é por preguiça, às vezes é por problemas de saúde mental, mas como pudemos ver pela pesquisa sobre analfabetismo funcional, é provável que boa parte delas não seja mesmo capaz de fazer o que seu diploma diz que deveriam fazer.

E caso esse empregador queira achar essa gente muito boa, vai ter que passar por uma série de pessoas que mentem sobre suas capacidades no caminho. Mentir capacidade é visto como esperteza no Brasil, mas nem todo mundo está fazendo isso de má-fé: a pessoa que completou o ensino superior incapaz de ler um parágrafo de texto nem tem as ferramentas necessárias para entender como é incapaz. A pessoa pode achar de verdade que consegue fazer o trabalho, e não entende até hoje porque não dá certo na profissão.

O incompetente polui o grupo de candidatos de tal forma que empresas acabam com processos seletivos quase que arcanos para conseguir filtrar alguma coisa, e na dúvida sobre a real capacidade do mentiroso médio, preferem focar em obediência e menor salário desejado. O mercado se adaptou aos diplomados analfabetos funcionais: se não pode evitá-los, que pelo menos sejam baratos.

Existem dois lados: o trabalhador que se sente sacaneado por não conseguir emprego mesmo sendo capacitado e o empregador que está cansado de contratar gente que não sabe nem o que está fazendo. E com o bônus de muitas empresas onde o incompetente foi promovido por ser bom de engenharia social e criou um ninho para pessoas parecidas. O competente cai nesse lugar e é maltratado imediatamente.

Eu não acho que seja possível resolver esse problema de incompetência diplomada sem voltar à raiz: por que essas pessoas conseguiram um diploma? E talvez até pior, por que elas quiseram um diploma? Se 12% das pessoas com curso superior foram expostas por uma pesquisa sobre analfabetismo funcional, como é que elas conseguiram terminar a graduação?

Bom, eu lembro dos meus tempos de faculdade. Das pessoas que eu sei que terminaram o curso da minha turma, eu acho que consigo apontar uns dois ou três dos vinte que não tinham a menor ideia do que estava acontecendo. Eu sempre fui nerd, então sei na prática que tem gente que te ganha na simpatia/personalidade e vai indo junto a partir do seu trabalho. Eu tinha que fazer de qualquer jeito, eu devo ter formado uma pessoa analfabeta funcional e umas duas que não tinham capacidade nenhuma de exercer a profissão só colocando seus nomes nos trabalhos.

E em todo curso isso vai acontecer. A pessoa passa nas provas solitárias decorando algumas coisas, os professores não se importam o suficiente para separar quem entendeu de quem decorou… e muitos dos trabalhos mais complexos podem ser feitos só colocando o nome em grupos obrigatórios, e existe toda uma indústria de fazer trabalhos de conclusão de curso pelos outros. E agora, com ChatGPT? Eu não tenho a menor ideia do nível de pessoa que vai completar os cursos, talvez o número de analfabetos funcionais com curso superior comece a aumentar.

Existe uma falha enorme no que as universidades deixam passar como formados. Temos que melhorar nosso ensino superior? Claro. Mas essa é a raiz do problema? Veja bem, o número de ferramentas para enganar o sistema e sair com um diploma sobre algo que você não entende só vai aumentar. Fazer com que alunos trabalhem em conjunto é uma parte tão integral do ensino superior (especialmente em áreas de serviços) que seria um desastre acabar com isso. Você faz esses cursos para aprender a funcionar numa profissão, o que com certeza exige cooperação em alguma etapa.

Virar o ensino superior para algo mais egoísta que testa apenas sua memória é perder uma parte importante da formação da pessoa para o trabalho. Não dá para ficar sem tarefas que podem ser feitas por IA ou em grupos que não se participa na prática. Porque são justamente nessas tarefas que se testa aplicação de conhecimento em funções práticas. Só prova isolada sem consulta é mero teste de memória, e se só esse tipo de gente passar, acabamos com o padrão concurseiro do brasileiro médio. Veja os juízes que formamos para saber como isso não melhora a qualidade do trabalho…

Eu argumento que isso está um nível abaixo ainda: uma sociedade arrogante e/ou analfabeta funcional que acha que vencer na vida está condicionado a um diploma. Os trabalhos que exigem diploma quase sempre são relacionados com pensamento abstrato. Todos somos capazes de pensamento abstrato, mas nem todos nós somos interessados em pensamento abstrato. E isso faz muita diferença.

Em praticamente todas as áreas da sociedade humana, existe o componente abstrato e o prático. Você planeja e executa. Analisa e toma decisões. É muito raro que qualquer um de nós seja igualmente eficiente nas duas coisas. Todo mundo tem suas preferências. Tem gente que gosta de ficar pensando em tese sobre as coisas e tem gente que gosta de colocar a mão na massa. O brasileiro acha que existe uma diferença de inteligência entre as duas áreas.

Não existe. Existem diferenças de inteligência entre pessoas. Uma pessoa inteligente com foco prático resolve problemas complexos fazendo. Uma pessoa inteligente com foco teórico resolve problemas pensando. O Brasil forma muita gente em Direito e poucas em conserto de telhado. E eu desconfio seriamente que boa parte desse povo que nem consegue passar na prova da OAB se daria bem arrumando telha deslocada.

Mas está enfiado na cabeça da maioria que uma profissão é de gente de sucesso e outra de fracassados. É o analfabetismo funcional agindo sobre o inconsciente coletivo. Uma ideia da antiguidade que rejeita trabalhos considerados braçais por considerá-los coisas de castas inferiores. E veja só, eu estou considerando que trabalho braçal paga muito pouco, mas isso também é resultado dessa mentalidade.

Não queremos pagar por trabalhos “fáceis”. Muito embora na hora do vamos ver, não sejam fáceis. Você sabe fazer um muro? Trocar encanamento? Você sabe trocar o filtro de óleo do seu carro? Mais: você sabe cuidar de um idoso? De uma criança? Eu digo profissionalmente, cobrando por isso e tendo que entregar foco total na qualidade do serviço. Não é favor, é emprego com cobrança e responsabilidade legal.

Os trabalhos com muitos componentes abstratos, que são justamente esses que exigem diplomas, são lugares perfeitos para o incompetente se esconder. É fácil verificar se um trabalho dos mais braçais deu errado, mas um funcionário de marketing pode passar décadas sendo um analfabeto funcional se for bom de relacionamento.

Vira um misto de preconceito autoimposto sobre trabalhos manuais serem inferiores (gente boa ganha muito dinheiro e respeito até limpando fossa) e uma alternativa perfeita para quem é preguiçoso ou iludido nos trabalhos com diploma. Como é de costume, esse problema se retroalimenta: pessoas capazes fogem de trabalhos mais práticos por acharem que vão ser exploradas e “perder na vida”, pessoas incapazes se enchem de cursos que não entendem para melhorar o currículo e se encostarem numa profissão que não os exponha tão rápido.

O mais interessante é que talvez essas pessoas incapazes escondidas em profissões de pensamento abstrato fossem excelentes profissionais em funções mais práticas. Só que nunca tentaram, por achar que não servia para o seu plano de vida. Vai dizer que nunca viu gente super esforçada, mas que parece ser incapaz de fazer o básico do seu trabalho? Eu argumento que é alguém de capacidade prática se forçando a fazer algo teórico. E sabe do que mais? Sabe aquele pedreiro que todo mundo conhece, que fala bonito e dá o planejamento completo da obra, mas que na hora de fazer é um inútil? Pode ser o contrário.

E aí, você não consegue saber se o engenheiro no Uber é alguém que foi sacaneado por incompetentes que chegaram antes no seu mercado de trabalho ou se é mesmo alguém que nem tinha ideia do que fazer como engenheiro. O mercado de trabalho brasileiro está cheio de problemas de qualificação e produtividade, e eu entendo que exista um “pecado original” na mentalidade escravocrata de que só gente inferior suja as mãos.

Que pensar é trabalho de gente melhor. Meu trabalho exige pensar e planejar bastante, e eu faria essa parte de graça, porque é naturalmente divertido para mim. Eu faço isso no meu tempo livre com jogos e projetos como o Desfavor. Eu estou no campo da abstração com diploma porque é mais fácil para o meu pacote de interesses, não porque é “digno de mim”.

Talvez a solução seja menos gente fazendo curso superior. Porque se 12% terminam analfabetos funcionais, é porque está entrando gente demais neles sem ter um plano básico do que fazer depois. Precisa ter opção de cursos profissionalizantes e mais respeito e rendimento nessas profissões de pensamento prático, e para fazer isso, o povão precisa deixar de se deslumbrar com diploma primeiro.

Não acho que o governo consiga mexer nessa mentalidade de cima para baixo. Nem acho que queira, porque em média, nossos políticos são analfabetos funcionais com diploma… igualmente iludidos. Talvez a IA seja nossa amiga nesse sentido: ao cobrir funções abstratas, pode forçar muita gente a procurar espaço nas funções mais braçais, forçando muita gente a descobrir que sua habilidade é prática, não teórica. E quem sabe depois de algum tempo essas pessoas forçadas a pegar o trabalho “menos valioso” comecem a perceber as vantagens e ter mais força para negociar salários e condições melhores.

Provavelmente tem gente demais sendo paga para pensar e gente de menos sendo paga para agir. Isso pode explicar a produtividade ruim do brasileiro. Mais educação não resolve se continuarmos achando que o objetivo final é ter um diploma. Não é. O objetivo é fazer alguma coisa direito. Talvez o engenheiro seja um excelente motorista. E com certeza o mundo não precisa de tantos engenheiros como precisa de motoristas.

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