Informalidade generalizada.
| Somir | Flertando com o desastre | 2 comentários em Informalidade generalizada.
Era para ser um texto sobre a guerra, mas Trump me fez pensar sobre algo relacionado: ao invés de dar uma chamada nos israelenses por vias diplomáticas, o presidente americano não só ligou para Netanyahu, como ainda deu bronca super pública em rede social. Por um lado é fascinante ver o que acontece por trás das cortinas do poder, mas também é um sintoma da falta de formalidade que vai se espalhando pelo mundo.
Formalidade no contexto deste texto é seguir regras escritas e até algumas não-escritas sobre como se portar numa situação. É mais burocrático do que chique: não é sobre ternos e utilização correta dos talheres na mesa. Como vivemos num mundo acelerado, com mudanças de foco constantes e pouco espaço para realmente entender o que acontece, faz sentido que comecemos a abrir mão desses hábitos quase que cerimoniais.
A comunicação em tempo real não permite pensar tanto assim, então ela vai se tornando mais parecida com a que temos ao vivo. A economia muda como o vento, informalidade na forma como se ganha o dinheiro fica mais e mais desejável. Relações de todos os tipos ficam mais abertas a acordos diferentes dos clássicos.
Todas coisas que podem ser muito positivas. Mas vale a pena lembrar por que a formalidade existe: padronização de comportamento e previsibilidade de funcionamento. Um sistema burocrático é irritante, mas caso seja gerenciado com honestidade, é uma das coisas mais estáveis que podemos ter numa sociedade. Existem os jeitos certos de fazer as coisas e as pessoas sabem no que erraram quando não funciona.
E sim, nem sempre esses jeitos certos são os mais inteligentes do nosso ponto de vista, mas é o simples fato de ter regras e passos definidos entre o nosso desejo e o resultado já tira muita pressão das pessoas e do Estado. O terceiro melhor jeito de fazer uma coisa é mais útil do que cada pessoa ter que inventar tudo do zero toda vez que for fazer. Não é o primeiro, não é o segundo, mas é um jeito que já economiza muito tempo e discussão entre pessoas.
Com a ideia de tornar nosso mundo menos formal, caem barreiras desnecessárias para conseguir o que queremos, mas eu noto que começam a cair junto barreiras que estavam lá por um motivo. Uma das lições mais valiosas da vida é quando você finalmente internaliza que os outros não vão agir da forma que te parece mais lógica, e sim a partir da própria capacidade de pensamento e influências emocionais. Torcemos que para quem está ao seu redor e te impacta a ideia do que é certo ou errado seja parecida, mas saiu da sua cabeça não precisa mais seguir a sua lógica.
Formalidade é um jeito de sobrescrever o conceito de bom senso coletivo. Até porque mesmo nos casos em que o cidadão médio pensa parecido com seus pares, pode não ser uma boa ideia. Formalidade é processo legal, informalidade pode acabar em linchamento de inocente. Não que o processo legal seja grandes coisas, mas com certeza é melhor do que ter que definir uma punição justa para cada pessoa a cada coisa errada que ela fizer.
E novamente, é com formalidade que definimos o que é certo ou errado em grandes escalas. Uma pequena comunidade provavelmente se vira definindo padrões de comportamento caso a caso, porque todos se conhecem e convivem. Quando passamos para cidades de milhões, esse sistema de resolver na hora não funciona mais.
Trump dar piti diplomático e militar em rede social é entretenimento, mas é mais uma forma de passar a mensagem que está tudo bem fazer as coisas a partir do sentimento momentâneo. E ele só faz isso porque existe clima. Depois que você quebra o gelo, as pessoas ficam mais permissivas. Está tudo bem fazer política internacional postando na rede social. O povo se diverte, dá opinião, faz bagunça.
Mas sempre tem um custo. Política focada em sentimentos e interesses momentâneos não é algo que costuma dar certo. Quando você é o Estado, você precisa pensar em longos prazos e considerar mil interesses conflitantes. A formalidade existe para manter a ordem. Grupos conseguem alinhar objetivos e ter muito menos medo de serem oprimidos se as regras são seguidas para todos.
Existe sabedoria em seguir protocolos e não abrir exceções: indivíduos pagam com sua paciência pela tranquilidade da tribo. É uma das formas que achamos para viver em sociedade, e francamente, funcionou muito bem até aqui. Funcionar bem não é estar livre de erros e injustiças, é ter capacidade de reconhecer o que precisa ser melhorado e conseguir fazer planos para tal.
E para aplicar planos de forma consistente, precisamos de formalidade. O Estado precisa ser frio e técnico para fazer as escolhas difíceis. É impossível atender todos os objetivos de todos os grupos. E é justamente para não criar a sensação de favorecimento que existe todo esse sistema burocrático com cargos e formulários. Desde que as regras ofereçam isonomia, é a formalidade que aplica.
Esse tipo de informalidade de rede social que resolve até questões diplomáticas envolvendo a vida de milhões é atalho para fazer pessoas se sentirem injustiçadas. Porque fica parecendo que cada situação é decidida na hora, de acordo com quem fez a pressão mais rápida. Talvez até não seja o caso, mas se parece o caso vai gerar esse problema do mesmo jeito.
O cidadão médio se ressente da formalidade quando ela lhe toma tempo ou nega seus desejos, mas vai ficando mais e mais irritado com o estado da sociedade na medida que ela se esvai. Somos um tipo de macaco muito sensível ao desconhecido. Esse jeito mais “livre” do mundo ser está criando uma pandemia de ansiedade. Está mexendo com o tempo das pessoas, fazendo com que estejam o tempo todo nervosas com a possibilidade de tomarem decisões que elas não gostam se distraírem um segundo.
Figuras de poder modernas descobriram o poder da informalidade nas redes sociais como forma de gerar um público fiel. Mais do que eleitores, seguidores. Mesmo que isso os deixe abertos para mais críticas em tempo real, compensa pela passionalidade da defesa que recebem dos fãs. Evidente que não é para o político viver em um pedestal protegido por burocracia por todos os lados, mas como é de costume eu escrever aqui: também não precisa sair correndo para o lado oposto.
Transformaram essa ansiedade em arma de manipulação. E nem precisava de plano maligno, foi uma decisão provavelmente inconsciente do cidadão médio da Era da Internet. Formalidade é uma carta que demora 10 dias para ser entregue, e nos convencemos que não dá mais para viver nesse tipo de escala de tempo. Enquanto esperamos uma resolução burocrática, o mundo já parece ter mudado inteiro.
Isso é uma fonte de sofrimento, temos que ser mais flexíveis com nossas regras para agir na velocidade que o mundo pede. E essa flexibilização torna tudo mais imprevisível e passional. A velocidade gera o clima político polarizado, porque diversos grupos se sentem pressionados a puxar o gatilho antes do outro. É interessante ver a política real discutida com o fígado na rede social, mas não é o que o sistema existe para fazer.
E mesmo que você ache que isso não impacta de verdade a vida cotidiana, a uberização do emprego está aí para defender meu ponto. Sim, viva a liberdade, mas tem contraparte: os direitos adquiridos pela formalização somem junto. Leis trabalhistas não foram inventadas para implementar o comunismo, e sim porque tinha gente morrendo nas fábricas por trabalhar 16 horas por dia em condições insalubres. A formalização gera limites externos ao desejo de cada um, dá uma linha base de convivência entre pessoas e empresas.
A premissa de ter essas regras coletivas e mecanismos bem definidos para mediar relações é que nem todo mundo tem a informação ou a experiência necessária para tomar decisões caso a caso. Ironicamente, são nos lugares onde as pessoas têm menos noção sobre suas limitações que elas parecem mais afeitas a improvisar. O jeitinho brasileiro é informalidade desinformada. Desconfiança de regras, protocolos e tudo mais que outros pensaram antes, porque quem não sabe muito bem o que está fazendo tende a achar que os outros são parecidos.
O que não pode, é claro, é um país extremamente burocrático que não respeita lei feito o Brasil. Combinação nefasta de sistema complexo e disfuncional que nos faz achar que informalidade é melhor do que realmente é. Informalidade pode ser adaptação e criatividade, mas se ela é vista como alternativa às regras não vai dar certo. Não se depende do bom senso de ninguém, porque bom senso é algo personalíssimo.
Se você está sobrevivendo usando a informalidade, não quer dizer que ela é a resposta para tudo. É uma ferramenta, mas não é o sistema. O caminho das cavernas até os arranha-céus é majoritariamente formal com pitadas de inovação. Não criamos tantos entrepostos entre vontades e resultados porque gostamos de sofrer, e sim porque não tinha outro jeito de avançar.
Me parece que estamos pulando uma etapa, agindo como se fôssemos iluminados para decidir como o mundo deve ser caso a caso. Isso é coisa de criança, porque crescer passa por reconhecer o que sabemos e o que não sabemos fazer. E adivinha só, faz milênios que as pessoas intuíram que precisavam de regras e formalidade para evitar decisões terríveis tomadas sem informação suficiente.
Liberdade e conhecimento são interdependentes. Um só vem com o outro, e vice-versa. Não é uma vitória inerente poder ver o Trump intervindo em guerras na rede social, é mais um sinal de que podemos estar ficando arrogantes demais como espécie e normalizando o comportamento. É sempre um perigo quando uma pessoa acha que as regras que valem para os outros não valem para ela.
É muito possível reduzir a burocracia e democratizar o poder sem essa ideia de destruição da formalidade. Na verdade, quanto mais informais somos no nosso dia a dia, mais propensos estamos a permitir que as leis se enfraqueçam. Você vai erodindo a confiança num sistema compartilhado, e as pessoas se acham muito mais capazes de tomar decisões que impactam a vida de terceiros por causa de sentimentos.
Muita desconfiança costuma desembocar em regimes ditatoriais, porque uma hora ou outra o medo toma conta.
Formalidade não é para ser chatice ou para atravancar processos. Algum grau de “cerimônia”, que indica zelo, ponderação e ordem,deve existir. E, quanto maior, mais séria e mais grave for uma questão, mais necessária ainda a formalidade vai se fazer necessária, goste-se ou não. O “X do problema” está, como em todas as áreas da vida, no equilíbrio. Quando excessiva e desregulada, a formalidade pode ser prejudicial, mas a sua ausência é pior. Tudo o que é demasiadamente “sem-cerimônia” tende a virar uma bagunça e informalidade, mais do que somente desleixo, também pode ser até perigoso…
“com mudanças de foco constantes e pouco espaço para realmente entender o que acontece, faz sentido que comecemos a abrir mão desses hábitos quase que cerimoniais.”
É a TDAHzação da humanidade.