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Futuro virtual.

Futuro virtual.

| Somir | | 2 comentários em Futuro virtual.

Quando fazem aqueles testes cegos com “especialistas” tentando diferenciar produtos caros de produtos baratos, é normal ter resultados divertidos: muitas vezes sem ter o contexto da marca e do status do produto, acabam achando melhores justamente as versões mais baratas. E sim, eu estou começando assim meu texto da Semana Nerd sobre virtualização sem limites…

Por virtualização eu considero aqui tudo do mundo real que pode ser simulado de alguma forma. O que, admito, é uma categoria pra lá de ampla. Mas é importante manter a mente aberta porque embora a imagem mental de uma pessoa com um óculos de realidade virtual navegando num mundo de gráficos de videogame seja parte da conversa, ela é só uma parte do todo.

A palavra virtual vem do latim. E era usada muito antes de qualquer computador. Significa ser a essência de alguma coisa em tudo menos no nome. Foi uma palavra excelente para explicar o que os programas de computador faziam com tarefas antes realizadas fisicamente por seres humanos. A própria palavra computador vinha de pessoas que tinham o trabalho de fazer contas em grandes volumes.

O computador “virtual” virou um computador melhor que o ser humano, por isso tomou a palavra para si. Toda essa conversa é para estabelecer que já faz parte da nossa evolução como sociedade virtualizar atividades feitas por pessoas de carne e osso. Quanto mais complexa e repetitiva a tarefa, mais eficiente é virtualizar.

E em momento algum os sentimentos das pessoas virtualizadas foram problema suficiente para impedir o avanço tecnológico. Alguns perdem o emprego e às vezes até sua motivação para viver, mas se torna alguma coisa mais fácil, rápida ou barata para a maioria, azar. O incentivo para virtualizar é mais profundo do que o querer de qualquer pessoa.

Então, quando eu começo a especular sobre o que se tornará virtual com o passar das décadas, séculos e milênios, não fique pensando sobre o que as pessoas gostam de fazer, mas sobre o que elas não gostam. A pessoa computadora foi substituída porque as outras pessoas não queriam fazer esse trabalho, e não era eficiente manter todo mundo “sequestrado” porque algumas eram muito boas nisso.

O que pode ser virtualizado vai ser virtualizado. Não quer dizer que as pessoas vão sair correndo do real por preferirem o virtual, quer dizer que quanto mais o tempo passar, mais opções virtuais vão existir. Primeiro para as pessoas que realmente não gostam da coisa real, depois para as querem experimentar novidades, depois para as que perceberem vantagens de economia de tempo ou redução de riscos…

E eventualmente, fica normal. Ficou normal não saber o número de telefone de alguém. Ficou normal dirigir pela cidade sendo guiado por um computador, ficou normal conhecer pessoas antes de estar fisicamente diante delas. Quando uma coisa se torna normal, ainda vai ter quem não goste e prefira fazer de outro jeito, mas o problema fundamental do desconhecido desaparece. É só mais uma escolha.

E aí tudo o que você acha sobre viver as coisas da vida de forma virtual deixa de ser… real. O virtual substitui o real antes mesmo da pessoa colocar o óculos e ficar num quarto escuro. Não é mais desistir da vida como conhecemos, é só mais uma quarta-feira. Quanto mais gente não se importar com a diferença, mais fácil para você não se importar também.

Esse processo já começou com os celulares. Zero estigma em ser um simbionte com uma máquina, porque quase todo mundo com condições de ter um… tem um. Muito da nossa memória, conhecimento e socialização foram virtualizados com sucesso. É um atraso não ter um smartphone, porque você fica com menos opções de… memória, conhecimento e socialização. Percebem como o mundo virtualiza ao redor da pessoa?

Em alguns anos, a IA vai fazer o mesmo. Não vai ser uma tomada de poder dramática, só vai ser mais uma coisa que fazemos. O que essa tecnologia permite é duplicar o nosso cérebro na prática. Vai ter você e outra inteligência pensando sobre os assuntos que te interessam. O benefício de ter outras pessoas com objetivos parecidos ao seu redor já começou a ser virtualizado com a internet, a mente digital pessoal é o complemento perfeito.

O benefício é claro: num mundo que exige mais e mais velocidade e complexidade de pensamento, ter o suporte constante de um segundo cérebro começa como vantagem competitiva, mas logo se torna comportamento esperado. Você e seus descendentes não vão viver conversando com uma IA por desejo genuíno de conexão com o virtual, mas porque sem isso você vai ser um dinossauro.

E quando a ideia de ter o segundo cérebro estiver bem definida, a barreira entre o real e o virtual fica mais difusa. Uma pessoa vai ser a combinação da sua mente orgânica e o que é capaz de somar a ela com tecnologia. Ricos passam na frente, como sempre. Mesmo numa relação bem orgânica, é provável que a pessoa que se mostre mais capaz por causa de uma IA melhor (ou mais capacidade de se integrar com ela) se torne mais atraente.

Ou seja, por mais que um homem ainda vá preferir a mulher bonita, a mulher bonita com a mente virtual mais interessante vence a mulher bonita com a mente virtual mais limitada. Começa como uma soma, aumentando os humanos. A concorrência natural do ser humano se encarrega do resto.

Mas aí eu volto para o primeiro parágrafo do texto: pessoas dependem muito de contextos sociais para definirem preferências. Em testes cegos, enólogos profissionais podem acabar preferindo o vinho barato que jamais indicariam para um cliente. É normal usar o entorno para derivar o que você sente sobre alguma coisa. Mas quando você está vendado, o gosto é tudo o que você tem para decidir.

E sim, virtualização tem muito a ver com experimentar coisas enquanto vendado. Você remove da experiência da pessoa os passos necessários na realidade. Você computa o número sem ter que passar pelas pessoas com máquinas de calcular. Você segue o caminho para o local desejado sem conhecer as ruas da cidade. Você torna uma parte do processo numa caixa-preta que só te entrega um resultado desejado.

Em algumas décadas, é bem provável que “viver vendado” seja a estratégia mais eficiente para o ser humano. Um exemplo: se você é acompanhado por uma IA a vida toda e usa ela como se fosse um irmão gêmeo eternamente presente, é de se esperar que ela se torne extremamente eficiente em prever o que você quer. E se você usasse essa versão virtual sua para procurar namoradas?

A sua mente virtual consegue trocar informações muito mais rápido, consegue estar em milhares de lugares ao mesmo tempo. Ela te conhece como mais ninguém nesse mundo. E se o Tinder do futuro for soltar uma cópia sua para conhecer e conversar com mil pessoas por hora? Sua cópia não vai ter vergonha ou dificuldade de conversa, a cópia virtual da moça também não. Não só você vai receber um aviso que sua mente virtual achou três pessoas compatíveis, como ainda já vai ter feito um acordo com elas sobre quais dos seus fetiches inconfessáveis elas topam.

E da mesma forma que as pessoas confiam no aplicativo que manda virar à esquerda na próxima rua, vão confiar que o encontro marcado no lugar perfeito para o casal vai ser ótimo. E spoiler: a maioria das pessoas consegue se conectar com um filtro básico de interesses, imagina só algo que seu “eu paralelo” acabou de dizer que é perfeito?

Lembra que eu falei que é para se concentrar no que as pessoas não gostam de fazer para prever o futuro? Sim, pessoas gostam de relações amorosas e sexo, mas não gostam de se esforçar para conhecer alguém ou mesmo arriscar rejeição. E se o virtual só te entregasse uma pessoa embrulhada para presente?

Sutilmente, estaríamos abrindo as portas para relações entre seres virtuais simulando a gente. Seríamos parte dessas relações. Imagina esse mesmo casal resolvendo engatar um namoro, mas tendo que discutir a relação depois de um desentendimento? E se as suas cópias virtuais discutissem tudo antes e deixassem só os pontos essenciais para os dois basicamente assinarem um acordo numa conversa real?

Não precisa todo mundo preferir fazer assim, só precisa ter a opção. E eu argumento que as pessoas que rejeitarem a duplicação da mente pela IA vão se tornar menos e menos desejáveis para a média. Existe toda uma graça em casar virgem para muita gente, pessoas fizeram isso por convicção durante muitos séculos, mas hoje em dia não é um fator de desequilíbrio positivo para conseguir uma relação. Digo que é até pior para a pessoa que quer se guardar. Dá mais trabalho e não garante resultados positivos.

Conquistar relações “na prática” ainda vai ter graça para as pessoas, mas vai se tornar menos e menos eficiente em comparação com os resultados da busca por mente virtual. Tem coisas que são removidas do nosso estilo de vida não porque eram necessariamente ruins ou desconectadas com nossos desejos, mas porque existem alternativas que entregam mais resultados com menos esforço.

E quando a porta se abre para o virtual, é bem possível que as pessoas não saibam mais diferenciar o vinho caro do vinho barato. Quanto menos interessado em contato físico o ser humano se tornar, e é uma tendência que está aparecendo com força nas últimas gerações – o zoomer transa menos que qualquer outra geração da era moderna – mais interessante se torna a companhia virtual. Pode demorar séculos para termos robôs que atendam necessidades físicas de forma econômica, mas não vai demorar muito para ter a simulação mental desses companheiros.

Uma pessoa com menos necessidade de toque de humanos começa a não ligar mais se tem “alguém de verdade” do outro lado da personagem com a qual interage. E pode ser economicamente viável começar a colocar camadas e camadas de inteligências artificiais ao redor das pessoas: uma rede social pode manter a ilusão de pertencimento fazendo você interagir com uma mistura de 90% robôs e 10% pessoas, escolhidas a dedo pelo algoritmo. O grupo de pessoas reais que pode se aproximar de você é sempre analisado pela sua mente virtual primeiro para buscar conformidade ou complementariedade.

Sim, humanos não se dariam bem num mundo perfeito demais, mas quem disse que os problemas não podem ser simulados na medida certa? No seu mundo virtual, você pode ter inimigos criados pela IA para serem perfeitamente incapazes de te vencer numa discussão, ou ela pode achar alguém real com o grau exato de burrice e masoquismo para derivar prazer de ser derrotado por você 99% das vezes.

O segredo do sucesso da virtualização é fazer o mundo todo se virtualizar ao seu redor, não te forçar a entrar na Matrix. Vai ter gente que não vai querer essa vida de armação virtual, claro. Mas assim como o povo Amish não impacta a sua vida agora, eles não vão impactar o mercado gigantesco de virtualização da vida humana. É do interesse dos detentores do dinheiro e do poder que você continue produzindo, e se você estiver entregando o seu trabalho, pode viver o resto do seu tempo nos mais diferentes níveis de ilusão virtual.

Num mundo montado para usar a mente virtual como interface, percebem como é mais fácil usar ela para lidar com tudo? Eventualmente isso chega ao ponto de todos os contatos entre pessoas serem realizados através da mente virtual, gerações menos focadas em contato físico podem muito bem passar a maior parte da vida adulta sem sair do mundo virtual, porque lá é mais seguro para o psicológico. É tudo controlado. Da mesma forma como nos acostumamos a não ter que viver com medo de predadores, vamos nos acostumar a viver sem o risco constante de interações negativas com outros humanos. Tem uma camada entre nós e o mundo.

Vai fazer menos e menos sentido para as pessoas não estarem virtualizadas em basicamente todos os aspectos da vida. Enquanto não tivermos máquinas que façam os trabalhos manuais as pessoas vão viver achando que nada mudou, mas vão ter camadas e camadas de virtualização entre elas. E que diferença faz uma mente real ou uma totalmente simulada se você já está acostumado ao contato constante com versões virtuais de pessoas que tem um corpo? Vai ser mais eficiente simular inteligências compatíveis, ou pior: pessoas vão mandar suas versões virtuais mentirem para parecer ainda mais atraentes, e se escaparem de serem confrontadas com seu eu real, vai funcionar.

Uma versão hardcore de fingir vida feliz no Instagram: relações por “procuração virtual” que sempre dão certo em pessoas que com certeza vão se tornar incapazes de lidar com qualquer problema humano que não foi criado pela IA especificamente para elas resolverem com facilidade. Não só a sua versão virtual vai ser mais agradável, como sua versão real vai piorar e piorar, mimada ao ponto de ser intolerável. Quem resolver sair da Matrix vai dar de cara com os seres humanos mais infantilóides e intolerantes da história, e vai querer tomar a pílula azul correndo.

Ou seja: dado tempo suficiente, a maioria da população humana só vai ser tolerável a partir da sua versão virtual, porque só essa versão vai ter algum treinamento em relações com a existência da palavra “não”. Começa como escolha, termina como imposição. Para você que foi criado em apartamento, é intolerável voltar para o meio do mato. Para quem foi criado com um segundo cérebro que a protege de tudo, voltar para as relações normais vai ser intolerável.

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