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Padrão South Park de deboche.

Padrão South Park de deboche.

| Somir | , | 10 comentários em Padrão South Park de deboche.

Ontem foi a estreia da esperada temporada 27 de South Park. Depois de uma longa bagunça sobre direitos, os criadores conseguiram um acordo de 1 bilhão e meio de dólares para transmissão exclusiva da Paramount. E como comemoraram isso? Sentando a pata em Donald Trump e em seus novos empregadores como nunca visto antes.

O desenho South Park é um fenômeno cultural americano que encontra muito sucesso fora de suas fronteiras, no começo pelo humor ofensivo por esporte, mas com o passas das várias temporadas, os criadores (Trey Parker e Matt Stone) foram inserindo mais e mais elementos de sátira da cultura contemporânea, debochando de basicamente tudo no caminho.

Talvez você veja uma notícia ou outra de como o desenho tirou sarro de Trump dizendo que seu pinto é pequeno e que ele estava namorando o diabo. O que aconteceu mesmo, mas não te dá a noção do que é o padrão South Park de esculhambar com poderosos. Vai muito além de provocação barata.

O episódio de estreia da temporada gira ao redor do presidente processando a cidade de South Park e exigindo que produzam conteúdos falando bem dele para não pagaram indenização. Isso é uma relação direta com o que aconteceu com a empresa que “controla” o desenho: foram processados por Trump por um programa jornalístico e fizeram um acordo legal para acalmar Trump.

Coincidência ou não, no mesmo canal que mostrou a reportagem que enfureceu Trump, havia um programa de entrevistas noturno cujo apresentador batia em Trump dia sim, dia também. Logo depois do acordo ser fechado, declararam que o programa seria cancelado depois de várias décadas. A explicação oficial é que não dava dinheiro, mas muita gente sentiu cheiro de coisa errada nessa história.

A impressão que ficou foi que a empresa cedeu aos caprichos de Trump para não ter que lidar mais com suas tentativas de sabotagem. E sim, a empresa é a mesma que tinha acabado de contratar South Park por mais de um bilhão de dólares. South Park é famoso por fazer seus episódios bem próximos da veiculação, por isso eles conseguem falar do assunto do momento.

E num episódio só, atacaram Trump num dos seus momentos mais frágeis – porque ele está sendo acusado por todos os lados de estar escondendo a lista de clientes de Epstein, uma pessoa que foi presa por aliciar menores de idade para orgias com ricos e famosos e que “se matou” na cadeia antes de poder abrir o bico – e perdendo suporte até mesmo do seu gado. Além de dar uma cacetada nos seus chefes, que estavam aceitando as chantagens de Trump (a empresa quer fazer uma fusão bilionária e depende do governo para aprovar).

Esse é o padrão South Park de deboche: na hora que as pessoas pareciam mais assustadas com o prospecto de criticar Trump, eles dobraram a aposta e bateram nele de uma forma muito infantil (chamar de pinto pequeno) ao mesmo tempo que faziam uma “puta crítica social foda, mêo” sobre a covardia da mídia americana de enfrentar o laranjão. Tudo junto, para fazer rir do mais alienado ao mais erudito, e baixar mesmo a bola do presidente, fazê-lo voltar a ser só uma pessoa com a cara laranja e um jeito engraçado de falar.

E sim, vamos falar do elefante de cabelo azul na sala: o pessoal que costumava detestar o Trump agora está aplaudindo de pé o South Park, elogiando pelos motivos que costumavam criticar antigamente. Além do humor sem filtros com as “categorias protegidas” que consideravam ofensivo, ainda havia uma crítica mais elitista sobre a forma escrachada como o desenho lidava com assuntos sérios, dizendo que South Park diminuía a importância de questões complicadas e reduzia tudo ao deboche.

Bom, espero que tenham percebido o poder do deboche. Porque muitas vezes a gente se prende demais na ideia de que um assunto é sério demais para fazer piada, mas esquece que se não tivermos liberdade de fazer piada, provavelmente não temos liberdade de pensar criticamente sobre ele. Temas protegidos de piada costumam ser temas protegidos de análise realista também.

Já vimos muitas sacadas geniais do South Park enfiadas no meio das piadas mais bestas possíveis. Eu nunca vou esquecer quanta coisa eles conseguiram colocar junto na piada que o governo americano não tinha feito os atentados do 11 de Setembro, mas que queria que as pessoas pensassem que tinham: quando os garotos descobrem que a conspiração é falsa, o presidente vem dizer para eles não contarem para o mundo, porque era mais valioso para o governo que o povo achasse que eles tinham capacidade de fazer um atentado daquele tamanho e cobrir as pistas. Além de fazê-los parecerem mais fortes para o mundo, ainda mexia com o senso de patriotismo das pessoas, de imaginar que realmente respondiam a um governo que era capaz de tudo.

A piada de que Trump é só um ditadorzinho de pinto pequeno (porque eles fizeram o Trump ser cópia do Saddam Hussein que usavam no passado, namoro com o diabo e tudo) parece só picuinha de adolescente rebelde, mas é uma mensagem dura contra a imagem de líder intocável que Trump tenta criar. Ele é só uma pessoa, e os valores americanos de democracia de deboche são maiores que ele. Ao bater em Trump dessa forma, tem um componente patriótico na mente daquele povo. Mesmo os fãs mais desesperados de Trump tem esses valores de poder falar o que quiser nos EUA. É parte da identidade do país.

Ache você uma boa coisa ou não. Atinge o resto do mundo, mas é extremamente relevante na cultura deles. É o deboche como ferramenta de liberdade. Americano acha normal que uma vez por ano o presidente vá num jantar com jornalistas e seja sacaneado por um comediante por alguns minutos. É algo que eles entendem como uma das graças do país. Pode parecer só uma bobagem para quem vive num país menos dado às liberdades pessoais como o Brasil, mas é valor fundamental deles.

Por isso Trump fica numa posição muito fraca para rebater o South Park. O direito ao deboche tende a ser mais sério para eles do que o “respeito” à figura do presidente. E olha que lá o presidente tem uma aura quase mítica para o cidadão médio. O padrão South Park de deboche é pagar para ver quais os valores que o americano médio realmente carrega. E não é surpresa que nem os trumpistas estão raivosos com o desenho. Porque eles foram obrigados a escolher entre seu ídolo e o que acham que seu país significa.

Se Trump morder a isca e tentar censurar o desenho, vai ficar feio para ele. Pode perder muito do apoio que tem da base, mesmo que não comecem a odiar Trump, não vão se unir ao seu redor para impedir alguém de fazer piada com ele, não desse jeito super americano de deboche contra o poder. E quanto mais espernear, mais o South Park vai sacanear. Eles receberam uma dinheirama no seu último acordo, o suficiente para enfrentar poderosos sem medo de perderem tudo. Não fica mais “sonho americano” do que isso: usar dinheiro para comprar liberdade.

Sim, tem toda a parte que eles podem estar enroscando uma fusão da empresa que os contratou, porque não está abaixo de Trump mandar travar tudo. Mas isso também seria motivo para mais piadas do South Park e mais atenção chamada para um presidente agindo feito um mafioso. Podem até sofrer um pouco agora, mas a tendência é que Trump perca a capacidade de agir sem nenhuma contrapartida, até porque ano que vem temos eleições para o Legislativo por lá, e se o povo estiver irritado com Trump e sua turma, o partido democrata toma de volta as maiorias e tira boa parte do poder do laranjão.

Resta ao presidente americano calcular o quanto ele quer escalar essa situação. Se ele é maluco, os autores de South Park são mais. De uma certa forma, é o calcanhar de Aquiles do presidente: ele se dá bem quando é informal em ambientes formais, porque ninguém está preparado para lidar. Mas se ele resolver fazer uma disputa informal com o pessoal do fuckin’ South Park, acabou a vantagem estratégica dele. Trey e Matt são muito mais espertos e engraçados que Trump. É meio como xingar o comediante de stand-up enquanto ele está no palco… é alguém mais treinado em fazer piada, você provavelmente vai perder.

Mesmo que eu não fosse fã de longa data de South Park, eu ainda estaria vendo essa situação como uma tacada de mestre contra o presidente. Porque estava um clima estranho nos EUA com essa coisa do presidente ficar brigando contra seus críticos. O povo lá sabia que tinha algo errado, mas não sabia articular. Com alguns minutos de Trump com um micropênis sendo comparado com o Saddam Hussein, eles conseguiram cutucar a ferida e mostrar onde estava doendo de verdade.

Minha teoria é que Trump não vai retaliar diretamente, porque chamaria ainda mais atenção para essa quebra de valores fundamentais dos americanos que ele está tentando imprimir. E salvo uma censura direta contra o desenho (que se passasse seria o fim do país, e até o caipira mais caipira deles entende as coisas assim) ele só estaria numa disputa de ofensas contra dois dos mais afiados esculhambadores do mundo.

O “certo” seria o Trump baixar a bola e deixar passar dessa vez. O comentário oficial da Casa Branca (que já saiu) foi um tapinha de leve, chamando South Park de irrelevante. Eu acho que eles vão usar isso para fazer mais piadas, mas se ficar só nisso, tira um pouco a graça de montar na cabeça de Trump e continuar dobrando a aposta.

O engraçado seria Trump acusar o golpe com força e tentar atacar Trey e Matt de alguma forma oficial, porque eu tenho certeza que não só teríamos mais episódios bombásticos de South Park, como criaria uma crise ainda maior na imagem de Trump. Como eu quero ver o circo pegar fogo, vou ficar torcendo por um processo gigantesco ou uma ameaça por entidades do governo americano.

Mas talvez o padrão South Park de deboche tenha sido a arma mais poderosa contra Trump, fazendo-o se acalmar por um tempo até o povo esquecer um pouco da piada que ele se tornou. Humor não tem que ter limite porque ele é uma das poucas ferramentas que pessoas “normais” tem para acertar gigantes. O poder se borra de medo de virar piada, porque poder também é baseado nas pessoas acreditarem que ele existe.

Se Trey e Matt tivessem se dobrado às críticas de serem ofensivos e niilistas demais com suas piadas, agora não teria ninguém para dar essa porrada no homem mais poderoso do mundo. E acreditem, deve ter doído muito.

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