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Terapia Artificial

Terapia Artificial

| Somir | | 6 comentários em Terapia Artificial

Não é tecniquês, prometo. Começou a aparecer mais e mais conteúdo na internet sobre como pessoas estão usando o ChatGPT e similares para “fazer terapia”. Entre aspas porque não é terapia, óbvio. Mas… aqui eu vou ser advogado do diabo, ou, advogado do artificial: talvez exista um lado positivo nisso.

Com certeza um profissional responsável é melhor que um modelo de linguagem da internet, mas precisamos falar um pouco sobre logística e leis de mercado aqui. Quase todo ser humano consegue usar um pincel e passar tinta numa parede, mas existe a profissão de pintor porque precisa de conhecimento e experiência para pintar uma parede direito. E mesmo com a profissão existindo, ainda tem muita gente que paga para ter um resultado horrível.

O fato de alguém conseguir fazer não quer dizer que esse alguém é bom fazendo; e o fato de a pessoa cobrar pelo serviço ou mesmo ser certificada para tal também não garante qualidade no serviço. Qualidade é um atributo sempre em demanda na sociedade humana. E é uma demanda que nunca é plenamente atendida.

Quanto mais qualidade, mais disputa e mais dificuldade de ter acesso. Quem valoriza o produto ou serviço engole a oferta e começa a inflacionar os preços. O que vai impedindo que muita gente consiga contratar um bom pintor de parede ou mesmo um terapeuta. É realmente complicado entregar terapia de qualidade até mesmo para a parte da população que acha importante fazer terapia. E sabemos que não é a maioria, porque ainda existe preconceito sobre buscar esse tipo de ajuda.

O mais comum é que uma pessoa que tenha problemas psicológicos ache alternativas não relacionadas a um tratamento profissional. Desde substituições perigosas por substâncias e vícios até mesmo a busca normalmente desastrada por coisas como religião ou influencers. Muitas vezes a pessoa só desabafa para amigos, parentes ou parceiros, com resultados bem aleatórios.

Sim, falar sobre o que sente é melhor que não falar, mesmo que seja para alguém tão leigo quanto você nas questões da mente. Mas ainda não é uma forma de tratamento profissional. É por isso que ao ler sobre mais e mais pessoas tentando fazer terapia com o ChatGPT, chamando de terapia ou não, às vezes usando só como um ouvido virtual; eu enxergo um uso da IA menos danoso do que se convenciona dizer.

Se você não ia nem tentar fazer uma terapia com uma pessoa competente, é bem possível que o ChatGPT te diga coisas neutras o suficiente para não causar mais problemas do que se não fosse utilizado. Se você consegue vencer a barreira logística, financeira e emocional de buscar uma terapia profissional, vale a tentativa. Se você não consegue ou não tem sequer coragem de tentar, o ChatGPT pode ser melhor do que falar com um pastor ou consumir conteúdo de rede social.

O ponto aqui é que existe uma demanda por algo que as pessoas nem sabem que se chama terapia. E mesmo sem ser o objetivo da IA atual, é algo que ela tem os meios logísticos de entregar. Não exige deslocamento, não exige pagamento, não exige filtro de capacidade. Ela só está lá, disponível quando quiser. E com o nível de articulação muito acima da média das pessoas com as quais convivemos.

Eu não estou te dizendo que a IA vai ser uma boa terapeuta agora, eu estou te dizendo que por causa da forma como ela foi treinada e os parâmetros que as grandes empresas usam para controlar o comportamento dela, tende a ser mais segura de ouvir que muita gente nessa vida. Os mesmos parâmetros programados para evitar que ela fale de forma politicamente incorreta também adicionam um fator “gratiluz” nas suas respostas.

Em testes recentes, descobriram que IAs começam a falar como um hippie depois de tomar um litro de morfina se passarem muito tempo interagindo com outra IA. Essa tendência paz e amor criada para evitar que ela se torne nazista depois de ler o que a internet escreve cria uma barreira contra os piores conselhos que alguém pode ouvir.

Ainda não são os melhores, mas os piores são cortados na raiz. O que uma pessoa aleatória não tem garantido no seu arsenal de ideias e opiniões. Quanto mais fácil for usar IA, quanto mais presente e barato for ter acesso a um cérebro eletrônico do nível do ChatGPT, mais essa demanda por um ouvido amigo e um conselheiro vai recair sobre a tecnologia.

A demanda é universal. A sua amiga chorona e seu amigo tosco querem falar sobre seus sentimentos, mas nem sempre conseguem ter a disponibilidade. A IA atende todo mundo ao mesmo tempo. A sociedade humana parece responder primeiro a cobertura da demanda: tem muita gente querendo ser ouvida, a gente conseguiu abrir as portas de falar com redes sociais, mas as de ouvir ainda não são mais do que uma fresta.

Você tem mil jeitos de falar com o mundo, mas um número limitado de jeitos de ser ouvido de verdade. Essa é a demanda que estão chamando de terapia do ChatGPT. E provavelmente foi isso que o dinheiro colossal investido na IA enxergou: ela tem algo que todo mundo quer ao prestar atenção (da sua forma) no que você diz. Se começarmos a vencer a rejeição a conversar com uma máquina, é o serviço perfeito para um desejo fundamental do humano.

Podemos enxergar isso de forma distópica, num mundo onde as pessoas só conversam com máquinas; mas isso pode ser menos assustador se você começar a pensar que pelo menos a IA tem alguns parâmetros de bom-senso e ética forçados. O ponto controverso aqui é que conhecendo o jeito que a IA se expressa e o tipo de coisas que ela costuma dizer para as pessoas, eu realmente prefiro que seja ela dando atenção para as pessoas mais problemáticas.

Um bom profissional ou uma pessoa com alta inteligência emocional com certeza batem o papagaio glorificado que é a IA, mas a IA é melhor que muita gente que não consegue concatenar duas sentenças sem se contradizer, ou que repete dogmas que nunca entendeu. Análise é melhor que conselho bom, conselho bom é melhor que conselho ruim. Profissional de qualidade vem em primeiro, pessoa com conhecimento de vida experiência vem em segundo, IA em terceiro e gente imbecil em último lugar.

Então, existe um espaço para a IA cobrir essa necessidade de ser ouvido, não é o ideal, não é nem o segundo lugar, mas comparando com asneiras de sacerdotes, coaches e o incrível brasileiro médio especialista em tudo por aí, não é tão ruim assim. Talvez a economia mundial mude para manter mais humanos focados nessa área de serviços psicológicos, mas ainda não acontece isso: existe muito mais demanda do que oferta. A demanda que não cai na mão de gente responsável cai na mão de vigaristas, malucos e inconsequentes, sempre cheios de certezas sobre as bobagens que defendem.

Para atrapalhar o mercado desses parasitas psicológicos, eu sou super fã da IA fingindo ser terapeuta. Sim, pode dar errado assim que ficar muito fácil treinar modelos de alta qualidade e eles puderem ser manipulados livremente, mas por enquanto as pressões de mercado mantém a coisa sob controle.

Não faça terapia com o ChatGPT, a não ser que sua alternativa for escutar alguém como o Pablo Marçal, aí, faça terapia com o ChatGPT sim.

Comentários (6)

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