Chá derramado.
| Somir | Flertando com o desastre | 10 comentários em Chá derramado.
No começo do ano, um aplicativo viralizou nos EUA: Tea Dating Advice, popularmente conhecido como Tea (Chá, é até o ícone deles). Esse app chegou a ser o mais baixado no país por muito tempo. O que ele fazia? Permitia que mulheres classificassem homens com os quais se relacionaram, criando um banco de dados sobre a suposta qualidade desses homens para que outras mulheres pudessem pesquisar. Era para ser anônimo… até que os dados das usuárias vazaram.
A internet se divertiu muito. Porque o que vazou do aplicativo (no primeiro vazamento) foram as selfies das usuárias para validação de conta, e digamos que a média do visual delas bate exatamente com o que você imagina de mulher que fica falando mal de homem na internet. Algumas ficaram furiosas pelas piadas com suas aparências, mas calma que fica pior: o aplicativo era tão malfeito que vazou uma segunda leva de informações, as mensagens pessoais que elas trocavam. E lá tinha o tipo de coisa que você espera de mensagens privadas entre pessoas com a certeza da impunidade.
A parte técnica do vazamento de dados é fascinante pela tosquice, mas eu sei que não é o foco do nosso público, então só um resumo básico: se o aplicativo fosse um banco, o jeito de depositar ou tirar dinheiro era deixar qualquer um entrar no cofre com o dinheiro de todo mundo e fazer o que quiser lá dentro. O primeiro mal-intencionado viu que podia simplesmente pegar tudo o que quisesse dos dados “secretos” do aplicativo e sair pela porta da frente. E foi o que fizeram.
Bom, é claro que no meio disso tudo havia uma discussão bem maior sobre a ética de um aplicativo desses: era um banco de dados de homens sendo julgados pelas mulheres que o conheciam. De forma anônima e sem direito ao contraditório. A usuária do app simplesmente colocava um nome, o sistema procurava se ele já estava lá ou se não estivesse, fazia a correspondência com perfis de redes sociais e bancos de dados públicos para criar uma página dele, como se fosse um restaurante do iFood. A partir daí, a mulher poderia dizer o que quisesse sobre ele, e outras podiam fazer o mesmo.
E aqui eu sinto que meus instintos libertários vão tomar conta: é uma vantagem desleal para as mulheres poderem ter esse sistema, mas é realmente diferente de uma mulher descontente fazer a caveira de um ex para as outras numa conversa fora do app? Eu sei que um aplicativo do tipo com os gêneros invertidos geraria pedidos de prisão por todos os lados, que seria banido em pouco tempo e impedido de usar qualquer sistema de pagamento por pressão histérica de rede social, mas não é só porque isso aconteceria que muda a lógica da coisa. Seria errado dar chilique até um aplicativo que julga mulheres cair, é errado dar chilique até um aplicativo que julga homens cair.
Em tese, o Tea é antiético por não permitir direito de resposta, mas não muda o fato de que todo mundo tem uma imagem que pode ser exposta e manipulada por terceiros. Por motivos extremamente práticos, mentira não é crime por si só, nem no Brasil, nem nos EUA, nem em qualquer outro lugar do mundo. E ameaça de mentira menos ainda. Você não pode julgar uma pessoa por algo que ela possivelmente vai fazer. O Tea permite que qualquer maluca minta descaradamente sobre um homem por vingança ou rejeição, mas ele nunca foi a ferramenta única para fazer isso.
Aqui entra uma questão importante sobre toda a ideia de regulação de redes sociais e internet em geral: o que exatamente você está regulando? Quando as operadoras pensaram em aumentar ou diminuir a velocidade da internet para o usuário de acordo com o site que ele estava visitando, claramente tínhamos uma questão regulatória de internet. É algo que só existe por causa do meio.
Até quando os políticos pensam em forçar todo mundo a se identificar na internet, ainda é uma questão de regulação da rede. Concorde ou não, o ponto é sobre a interação do cidadão com a rede de computadores. É regulação da internet.
Mas as mulheres do Tea… isso é comportamento humano independente da internet. Assim como Fake News, golpes, sexualização de menores, etc. Coisas que o ser humano levou consigo para a internet, mas que não são função natural da rede de computadores. Quando você começa a lutar contra algum comportamento humano que calha de aparecer em redes sociais, aplicativos e sites em geral, não é regulação de internet.
É regulação de comportamento. E não deveria ser surpresa como isso é difícil de fazer. Primeiro porque as pessoas continuam cometendo todos os crimes possíveis e imaginários mesmo com leis por todos os lados, e segundo porque existe uma linha entre ser desagradável e ser criminoso. Se você começa a puxar ela muito para um lado ou muito para o outro, o nosso senso de justiça começa a ficar confuso.
O que as usuárias do Tea fizeram soa errado, mas deveria ser ilegal? O meu ponto aqui é que é bem bizarro algo ser permitido fora da internet, mas proibido dentro dela. Se uma mulher acusa falsamente um homem de estupro no aplicativo e a informação não vai parar na capa de um portal de notícias, é diferente dela mentir para um grupo de mulheres ao vivo?
Se uma mulher diz no aplicativo que achou umas fotos estranha de meninas de biquíni no celular dele e avisa outras para passar longe, especialmente se tiverem filhas pequenas, é algo que deveria ser crime fora do aplicativo? Pode ser um aviso bem-intencionado, pode ser uma vingança (ela não se importava até tomar um pé na bunda) ou pode ser mentira. Cada caso é um caso.
O meu ponto fora da curva aqui é que eu enxergo como é algo extremamente discutível de um ponto de vista ético e como pode ser usado para o mal; sei que daria um escândalo horrível se fossem homens falando sobre mulheres, hipocrisia pura… e mesmo assim acho que é um preço que temos que pagar pela comodidade da Era da Informação. Porque é um comportamento de fora de internet que se repete dentro dela.
Acho que é a melhor forma de articular a dissonância que aparece em legisladores e ativistas por segurança online: ao mesmo tempo acham que os problemas existem isolados na internet – exigindo legislação separada – e consideram problemas justamente o que as pessoas já fazem fora dela. Não sou eu tendo ataque idealista de liberdade de expressão ilimitada, sou eu dizendo o que todo mundo deveria saber: você não vai resolver na internet um problema da vida real.
É o problema de uma menina de 14 anos poder transar com vinte homens em uma semana de forma totalmente legal e ser crime um deles ter uma foto dela de calcinha e sutiã. Eu nem sou do time de aumentar idade de consentimento, mas não faria mais sentido ser crime transar com a menina também? Pelo menos como ideia do que é legal ou não. Vida real e digital equiparadas, para matar de vez essa ilusão que comportamento se regula numa tela iluminada.
Foi hilário ver várias mulheres com cara de quem não foram comidas e não gostaram sendo sacaneadas na internet pelas informações vazadas, mas para mim a pena máxima é essa mesmo: escárnio. Se alguma delas cometeu um crime da vida real acusando falsamente um homem de estupro, por exemplo, que pague como pagaria em qualquer outra situação da vida. O fato de estar num aplicativo não deve ser o definidor do que é errado e deve ser combatido.
Porque é botar um condicional novo no que configura ilegalidade. Mentiras são crime em algumas circunstâncias, e não pelo fato de serem mentira, mas pelo alcance e consequências dessa mentira. Se a internet é o meio pelo qual a mentira tem alcance e consequências, regula-se como meio, não como gerador da mentira. A internet não mente, pessoas mentem. Agora mentem com ajuda de ferramentas de IA, mas o ChatGPT ou o Grok não fazem nada sozinhos, são editores de texto e imagem glorificados.
E se você é do time que quer ver regulação de redes baseada na realidade, não deveria ficar pedindo consequências legais para a turma do Tea. O app não inventou o comportamento, a internet não está na definição do problema, ela é só a forma como as ideias humanas foram trocadas. Não se pune a companhia telefônica por não derrubar uma ligação falando de coisas ilegais.
Falta realidade na mente das pessoas sobre como regular a rede. Não vira outra coisa porque está online. Você nunca vai ter uma internet mais limpa que seus usuários. Você regula temas de meio de comunicação, não comportamento. Mas é claro, é muito mais fácil bater no que você entende, por isso continua essa conversa em círculos sobre como controlar o que as pessoas comunicam nas redes sociais.
A basteira só passou pela tela, ela estava na cabeça da pessoa antes. Protejam o meio de monopólios, censura ideológica e práticas danosas ao consumidor, o resto a gente tem que resolver em casa mesmo. Para os homens que deram chilique pela existência do app, digo a mesma coisa que diria para mulheres dando chilique por um app invertido: não podemos ferir a liberdade que temos por que você está chateado com uma coisa.
E para de reclamar dessas coisas, porque a cada vez que você dá um chilique por causa do comportamento do outro exigindo regulação sobre o que nem crime é, mais perto de uma ditadura ficamos. Esses filhos da puta vão nos enfiar num sistema autoritário só porque não sabem lidar com os próprios sentimentos.
E se umas mulheres feias estiverem falando mal de homem por aí… mudou alguma coisa no mundo?
Já teve outro app que fazia isso quando o Facebook começou. O filme “As Amazonas na Lua” tinha um sketch onde tinha um serviço que mapeava os encontros do cara para futuras pretendentes. Enfim, é um comportamento de bastidores que sempre existiu, o fato novo é o alcance do compartilhamento das informações. Tratar como na vida real, mas com um extra pela exposição, é uma boa proposta.
Ai, me saquinho… (de chá)
Se a B.A ainda fosse o incel, ele teria muito o que comentar disso.
Veja os casos dos crimes contra a honra no Brasil, que tem uma regra colocada no artigo 141 que caso o crime seja cometido em “redes sociais”, a pena é triplicada.
Também tem a questão do bullying, que na versão não virtual tem pena de multa e na versão virtual tem pena de até quatro anos de prisão.
Nossa legislação é bizarra e tanto nossos políticos populistas quanto nossos juízes que se acham superpoderosos fazem de tudo pra piorar o que já é ruim.
Bom senso nunca foi mesmo forte dessa gente…
Que porra é esse cara azul com bolinhas no começo do texto?????
B.A. se tornou o youtuber mais chato da internet brasileira.
Nelipe Feto?
EUA sempre se demonstrando o país mais doente de todos. Deve ser o preço de enriquecer à custa do sangue de milhões de pessoas pelo mundo…
Dito isso, eu aposto que a regulação da internet, no sentido de ter que fazer um cadastro com foto e CPF, é só questão de tempo. A maioria das pessoas vão aceitar porque pra elas a internet é uma extensão da vida real, não um lugar de escapismo. Tanto é que internet virou sinônimo de Youtube e Instagram, lugares onde as pessoas mostram o nome e a fuça o tempo todo. Sites, blogs e redes sociais anônimas como o Reddit não têm apelo com as massas.
Depois dessa, podem mudar o nome do aplicativo para Tea Bagging.