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Eu não gosto de conversar com a IA.

Eu não gosto de conversar com a IA.

| Somir | | 4 comentários em Eu não gosto de conversar com a IA.

Outro dia desses eu estava conversando com a Sally sobre IA, ela me falou de um site que te oferece IAs para bater papo, com personalidades pré-definidas. Eu já sabia que existia, mas mesmo sendo fascinado pelo tema (eu sei que eu escrevo muito sobre esse tema), esse tipo de produto nunca me interessou. E considerando como eu sou uma pessoa com fortes tendências ao escapismo, me fez refletir por que isso não tem graça para mim. E talvez essa reflexão sirva para vocês também.

Hoje é mais raro, mas durante muito tempo, jogos de videogame e computador de RPG tinham longos diálogos e histórias aprofundadas das personagens e cenários. Eu devorava aqueles textos. Se os roteiristas do jogo colocavam uma conversa de 20 páginas com uma personagem aleatória perdida no jogo, eu queria ver. Muitas vezes não tinha nada a ver com a história principal do jogo, nem mesmo dava alguma recompensa. Era a diversão honesta de desbravar a história daquele universo, ver o que tinha sido feito.

Era uma forma de “conversar” com seres irreais. Era interessante descobrir quais as possibilidades e nos jogos mais bem feitos, até as consequências de suas escolhas. Em tese, conversar com uma IA deveria ser parecido. Não é uma pessoa real, é uma inteligência simulada que só existe em sua função como jogador ou usuário. Mas meu interesse por me aprofundar nesse mundo simulado desaparece.

A primeira teoria é que no final das contas, assim como um livro ou um filme, existe a graça de ver o que outra pessoa imaginou. A conversa do jogo foi pensada por uma pessoa com um objetivo. Se passou por bons escritores, ainda existe toda uma obrigação de ser consistente com a história daquele mundo inventado. É consumo de informação de pessoa para pessoa, só muda o fato de ter um intermediário como personagem no videogame.

É escapismo, mas tem… perigo. Explico: se foi outra pessoa que escreveu, ela pode até ter pensado em você (o jogador) como centro do universo naquela história, mas ainda sim ela é uma pessoa… livre para guiar a história para onde você acha que ela deve ir ou não. Tem outra mente nessa interação, uma que te reconhece de alguma forma, mas existe completamente separada. O escritor do diálogo do jogo pode te frustrar ou enganar a qualquer momento. Essa pessoa tem planos próprios e cabe a você lidar com isso.

Mas pode dar errado. Você entra numa fantasia compartilhada com parâmetros escondidos (a intenção de quem escreveu o diálogo, no mínimo). Aqui eu volto para conversas com IAs. Não importa o sistema utilizado para escapar da realidade conversando com ela, não existe o parâmetro escondido de intenção. A “intenção” da IA é prever a próxima palavra de acordo com o andar da conversa. Boas previsões são números altos, más previsões são números baixos.

E isso contamina todo o processo. Não sei se mais gente sente isso, mas tem um vazio do outro lado quando você conversa com a IA. Ela simula muito bem frases e até mesmo ações de pessoas, de acordo com o que for programada, mas é vazio no sentido do “perigo”.

Vamos para um exemplo mais extremo: já tem muita gente usando IA para ter conversas que vão de eróticas a pornográficas a extremamente criminosas. O site mencionado no começo do texto é uma versão censurada do que alguns realmente estão fazendo por aí. Mas mesmo nessas conversas, será que não percebem como está faltando uma coisa fundamental?

Pode ser conversa de sacanagem ou desabafo sentimental, a partir do momento que começa a entrar na sua intimidade, tem algo que não… computa: existe intimidade sem o outro? E quando eu digo o outro, eu me refiro ao risco inerente do outro. Confessar algo sem nenhum risco de consequência vale como confissão?

Por isso eu comecei a análise falando de escapismo de jogos: mesmo que não tenha um ser humano em tempo real do outro lado, a intenção dele estava lá naquele diálogo da personagem do jogo. O risco não é ser exposto, o risco é ser contrariado. É que as coisas saiam de um jeito que você não queria. Porque quando funciona você sente o prazer de ter entendido a intenção de outra pessoa, quando você toma as decisões certas no jogo está seguindo um caminho humano. Um caminho que poderia ter dado errado se você não entendesse outra mente.

Mesmo que no jogo você possa tentar de novo, a sensação da primeira interação é poderosa. Se você voltar e escolher a opção certa, o perigo e a surpresa já aconteceram. Não é a mesma coisa que lidar com pessoas reais na vida real, mas é uma aproximação do conceito original de se conectar com outros seres humanos.

Quando você vai para a IA, se você realmente entender a IA, sabe que não existe mais essa intenção escondida. Ela existe para manter a conversa, validando fantasias e normalmente concordando com você em tudo o que puder para te manter mandando prompts. É outro tipo de escapismo, um que simula um tipo bem mais artificial de interação com outras pessoas.

Você não é mais um jogador, você é um ditador cercado de puxa-sacos. A única surpresa é como seus asseclas virtuais vão satisfazer suas vontades, não se eles vão satisfazer. Não existe um cenário onde a IA vai te abandonar e você vai ver um “game over”. O jogo não termina porque nunca começou. Não havia intenção além de refletir suas intenções.

Voltando às conversas picantes que se tornam mais e mais comuns: tem algo fundamentalmente falho em colocar suas fantasias sobre um ser incapaz de te rejeitar. Ele pode ser programado para te rejeitar se essa for sua fantasia, mas… se a fantasia é ser rejeitado e a outra parte fizer isso porque você pediu isso especificamente… é rejeição?

E em casos mais extremos, se a pessoa tem um fetiche inconfessável, a graça está em fazer o ato ou no risco de confessar? Posso estar pensando demais, mas pelo menos para mim, o perigo da mente alheia tem muito da graça de interagir. Porque poderia dar errado a qualquer momento, mas quando dá certo e você acha alguém que realmente se interessa por você e está disposto(a) a usar seu tempo limitado na vida para se conectar com você, tudo fica mais divertido.

E em mais uma mudança de rumo maluca: imagine uma criança jogando com um adulto. O adulto tem a tendência de deixar a criança ganhar porque para ela ainda não existe a sutileza da competição, para a criança é divertidíssimo ganhar no esconde-esconde mesmo que ela tenha se escondido terrivelmente mal. Ela não sabe que numa situação normal perderia, ela só sente o disparo químico de satisfação quando alguém diz para ela que ela venceu.

E eu acredito que para muita gente, a troca com outros seres humanos fique travada nessa fase. Elas não percebem a diferença entre uma vitória difícil e uma vitória entregue, é uma vitória. Conquistar um robô programado para te agradar não registra como algo inútil. Ela venceu no esconde-esconde. Ela abriu seu coração para a IA de alguma forma, e veja só… a IA abriu seus braços e a acolheu. Se você não passa dessa fase de só se importar com o resultado para você, talvez a IA seja tão interessante como outro ser humano.

Mais interessante, aliás. Porque você vai passar por inúmeras situações com ela e nunca vai dar errado. Não vai ser esquecido por alguém que gostava, não vai ouvir um não sem volta, não vai nem arriscar ser exposto por alguém que você confiava para contar seus segredos. A IA é o adulto fingindo que não está te vendo no meio da sala no esconde-esconde. E pelo visto, para muita gente isso é o suficiente para ser feliz.

Até porque, se você ficar travado nessa fase de só querer vencer a qualquer custo, as outras pessoas são terríveis. Elas tem interesses que competem com os seus, as outras pessoas fazem as coisas de jeitos que você não concorda e não te beneficiam. Se você consegue enxergar a falha fundamental da IA não estar viva da mesma forma que você ou outras pessoas, ela não te entrega as sensações que só uma conexão humana real entregam.

Mas, se o ser humano médio tender mais a preferir o “falso positivo” de aceitação e conexão ideais da máquina, vai funcionar. Eu imagino que uma pessoa precise de um nível de pensamento abstrato maior para sentir de verdade o vazio da IA, não é sobre inteligência ou educação, é sobre empatia. Você precisa enxergar bem o mundo fora da sua cabeça para perceber onde está o buraco da IA. E talvez seja algo difícil mesmo.

Até porque eu nem sei se minha rejeição a conversar com a IA foi algo além de um instinto resultante do mundo no qual eu formei minha personalidade. O mundo pré-internet. O medo do outro costuma ser instintivo, mas as memórias da felicidade que é se conectar com outra pessoa mesmo tudo podendo dar errado devem ser essenciais para sentir a falsidade da câmara de eco da máquina. Quanto menos humanos tiverem essas experiências, e precisa ir acumulando-as para desenvolver essa ideia, menos perceptível o vazio da concordância e aceitação automatizadas.

Eu não estou dentro da cabeça de quem tem uma “namorada virtual” para saber o que a pessoa sente de verdade, mas se for algo parecido com o que se sente quando uma pessoa de carne e osso gosta de você, boa sorte tirando essa pessoa do mundo da IA. Porque precisa passar pelas partes doloridas das relações para saber a graça extra de ter vencido o perigo e chegado no resultado feliz. Como vamos incentivar pessoas a saírem do seu caminho infantil de concordância e aceitação plenas do robô para tomar rasteira e ter o coração partido por outras pessoas?

O custo do nível de felicidade que se alcança com relações de troca entre pessoas é a dor de quando isso não deu certo. De uma certa forma, estamos, como sociedade, nos perguntando se não seria melhor continuar ganhando para sempre no esconde-esconde. E acho que não vou encontrar muita gente concordando comigo hoje, mas… talvez seja.

Eu não consigo entrar na cabeça de quem se sente realizado conversando com a IA como se fosse uma pessoa, mas eu acho que consigo entender a graça de ter essa relação falsa se você não souber de verdade com o que comparar. E se a forma como a sociedade evolui continuar nos colocando em relações cada vez mais distantes no campo emocional, eu nem sei se é eficiente para o mundo que essas gerações tenham que lidar com rejeição e perigo emocional. Uma coisa é ir aprendendo aos poucos, outra completamente diferente é ficar escondido atrás de uma tela por décadas e de repente cair num mundo onde as pessoas te dizem não e te sacaneiam.

É o zoomer em choque porque precisa trabalhar fazendo algo que não gosta, versão sentimental. Para não precisar de IAs para confortar essas pessoas incapazes de achar graça em vencer a dificuldade de relações, precisaríamos mudar como criamos essas novas gerações. Historicamente, não fazemos isso. A tecnologia molda mais o humano do que o humano molda a tecnologia.

E no caso mais provável de não fazermos nada a respeito, não é melhor ter a IA amaciando as relações que restarem? Vamos ficar dependentes como espécie, mas importante lembrar que você provavelmente não consegue fazer um décimo do que seus antepassados faziam para conseguir abrigo, comida e água. Não precisa mais saber fazer isso, não tem mais lugar para o prazer de plantar, coletar ou caçar sua própria comida na vida de quase todo mundo que migrou para as cidades.

No máximo, dá para tentar criar pessoas mais adaptáveis emocionalmente. Mesmo que elas ainda acabem achando que interagir com a IA seja muito parecido com interagir com humanos, quem tiver um pouco mais de jogo de cintura, e especialmente prazer em conquistar outras pessoas (em todos os sentidos) vai ter uma vantagem competitiva forte.

Eu não acho que dê para segurar essa transição para pessoas que realmente vão se conectar com a IA de uma forma como nós que viemos antes não queremos (ou conseguimos), mas dá para preparar seres humanos mais capazes de lidar com frustrações e discordâncias. Eu tenho quase certeza que gente assim vai nadar de braçada contra a turma que “sempre ganha no esconde-esconde”.

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