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O que você não sabe sobre assédio.

O que você não sabe sobre assédio.

| Sally | | 44 comentários em O que você não sabe sobre assédio.

O texto de hoje não é para as mulheres, é para os homens. É uma informação que a maioria de vocês, homens, não sabem. E a intenção é apenas essa, informar, para que, de posse dessa informação, vocês consigam entender melhor as mulheres.

Dificilmente um homem tem a real dimensão do que uma mulher passa, diariamente, no Brasil, em matéria de desrespeito. Por mais que nós, mulheres, desenvolvamos mecanismos, aprendamos a lidar e sobrevivamos a isso, é inevitável que nos afete.

E este não é um texto militante, eu passo longe desse conceito de “feminismo” atual, que de feminista não tem nada. Este é um texto para homens tenham consciência do que realmente acontece, pois isso impacta a vida, o ânimo e as escolhas de uma mulher e você não vai compreendê-la se não compreender o contexto.

Uma mulher comum não chega à vida adulta no Brasil sem ser assediada de diversas formas. Existem graus, existem formas mais leves e formas mais pesadas, então, vamos abordar o assunto na ordem crescente. Que fique claro: de forma alguma este texto abarca todas as baixarias feitas com mulheres, tem muito mais, ele fala apenas das de caráter sexual e apenas das mais comuns. Tem muitas outras acontecendo.

A forma mais leve é a cantada por estranhos no meio da rua. Talvez pareça inofensivo para muitos, pois é algo que foi normalizado no Brasil por muito tempo, mas não é. Escutar que você está linda hoje pode não ser muito traumático, mas ter um popular colando a boca no seu ouvido e descrevendo o que ele gostaria de fazer com você sexualmente certamente não é agradável.

Até pelo medo que desperta. O sujeito pode saber que ele jamais vai passar daquilo, mas a mulher não sabe se é só uma cantada horrorosa ou se é um prenúncio de estupro. Então, independente do que é dito, é um momento de medo, estresse e taquicardia. Até o cortisol baixar e a mulher retomar a sua normalidade, pode demorar horas. E as falas normalmente são de um baixo nível que geram muita raiva, raiva por aquilo ficar impune. E essa raiva pode durar anos, de forma cumulativa.

Ainda nessa categoria de se manter à distância, temos homens que fotografam com seus celulares por debaixo da saia das mulheres sem que elas percebam, ou fotografam deus decotes ou qualquer coisa no estilo. Tem ainda os que espiam quando a mulher vai ao banheiro, ao vestiário ou fica em qualquer situação de vulnerabilidade.

Salvo situações muito particulares, eu não acho que nenhuma mulher brasileira possa dizer que nunca levou no mínimo uma cantada na rua. E muitas vezes a coisa escala e a cantada vem acompanhada de contato físico indesejado, seja segurar pelo braço ou coisa pior.

Se estamos falando de mulheres com mais de 40 anos, eu ouso afirmar que quase todas já receberam alguma cantada ou interação abusiva por parte de patrão ou colegas de trabalho ou qualquer pessoa hierarquicamente superior.

Era normal. Podia ser uma proposta descarada ou apenas um comentário inconveniente, mas estava sempre lá. E não se podia criar “problema” por causa disso ou você perderia seu emprego. Eu suponho que hoje isso tenha melhorado, mas certamente ainda acontece, não sei em que grau.

Saindo da área da fala, vem o outro degrau, péssimo, do mostrar. Quem vive em grandes cidades e tem mais de 40 anos provavelmente já viu o que não queria ver: sujeito mostrando o pênis, sujeito se masturbando ao seu lado (acontecia até no transporte público) ou qualquer outra cena inadequada. Talvez você, homem, esteja surpreso, mas é algo que a maioria das mulheres infelizmente já experimentou.

Às vezes, seguido de complementos hediondos, como por exemplo, ejacularem em você (novamente, acontecia até no transporte público), te convidarem a participar, pegarem sua mão e colocarem na parte exposta e coisas piores.

Não posso falar no presente, pois estou longe do Brasil há cinco anos, mas eu suponho que isso ainda aconteça. No metrô, com um motorista de táxi, em um evento lotado e em muitos outros lugares.

Subindo mais um degrau na escala de desrespeito, passamos para a categoria na qual o homem encosta na mulher sem o seu consentimento. Pode ser algo leve, como mexer no seu cabelo, pode ser algo mais pesado, como tentar beijar à força ou pode ser algo muito mais pesado, que fica para as próximas categorias. Pode acontecer em qualquer lugar. Não necessariamente vai acontecer, mas pode.

Muitas vezes o grande prazer do homem nem é o ato em si e sim sentir poder. Ver o medo. Tem gente que se sente bem, menos desempoderada, quando subjuga uma mulher. Geralmente são homens com disfunção erétil que já foram muito motivo de piada e sentem raiva de mulher ou homens que tiveram mães abusivas. Descontam em todas as mulheres.

Pode ser roçar uma ereção no quadril (ou na mão) da mulher, fingindo que é o movimento do ônibus que deslocou o corpo, sucessivas vezes. Pode ser um colega de trabalho fingindo esbarrar na mulher fazendo o mesmo. Normalmente é essa situação dúbia, a pessoa não faz descaradamente, justamente para poder desacreditar a mulher se ela reclamar: “Credo, só esbarrei nela, que maluca”.

Mas a gente sabe que não foi sem querer. Tem uma troca de olhar, tem uma expectativa de ver medo por parte do homem. A gente sempre sabe quando é ou não sem querer. Mas não tem como provar, então, a gente também sabe que vai ser desacreditada se falar.

Também pode ser algo declarado, proposital, ostensivo, como agarrar e dar um beijo (mais comum em ambiente de gente alcoolizada) e ainda ficar puto se a mulher rejeitar. Não me refiro a pessoas que estavam flertando e sim a homens que sequer fizeram contato visual com essa mulher. É sério, a gente não os vê chegando, parece que saem de um bueiro. E se a mulher recusa a investida, tem boas chances de o sujeito ficar puto. Com sorte você é apenas xingada, com azar, rola uma agressão física ou coisa pior.

Escalando um pouco mais, temos a desagradável situação na qual um homem faz um contato de cunho sexual indesejado, mas que não chega a consumar o ato. Por exemplo, pegar a mão de uma mulher e colocá-la à força nos seus genitais ou ele colocar a mão nos genitais da mulher. Esta é a categoria mais subnotificada de todas. Meus queridos homens, acontece, e acontece muito, mas cruza uma linha de humilhação tão grande que a maioria das mulheres guarda isso para si e não comenta.

Não é algo socialmente grave o suficiente para procurar uma delegacia, mas é socialmente grave o suficiente para humilhar a mulher, para levantar dúvidas sobre ela ter de alguma forma correspondido e levado até isso ou para desgraçar a cabeça do seu parceiro e acabar gerando uma tragédia. Por esses fatores, quase nenhuma mulher comenta essa categoria específica.

Existe também o contato sexual em tese consentido, mas que a mulher jamais teria se não houvesse um fator externo empurrando a mulher para essa direção. É o caso do sujeito que a chantageia de alguma forma para obter sexo em troca, que pede favores sexuais para que ela não seja demitida ou que faz qualquer tipo de ameaça ou barganha (atendida ou não) em troca de sexo.

Eu sei que nesse caso a mulher sempre pode recusar, porém, dependendo da sua realidade, a recusa pode piorar sua vida a tal ponto que não cabe a mim julgar sua decisão. O correto seria que uma mulher que faz um bom trabalho não precise fazer favores sexuais a seu superior para se manter no emprego.

Temos algo ainda pior, que é o contato sexual invasivo que não é socialmente considerado estupro, com por exemplo enfiar o dedo em uma mulher que está de saia em um transporte público. Não vou fazer listas de condutas, pois são todas muito desagradáveis, vocês entenderam.

Por fim, temos um contato que pode ser socialmente considerado ato sexual pelas pessoas. Percebam que eu disse “pelas pessoas”, pois pela lei, já entramos no estupro na primeira página. Este texto não é sobre a lei, é sobre a questão social. Este texto é sobre o que as mulheres, via de regra, passam e escolhem ou não comentar ou comprar uma briga.

Tirando essa nova geração, que vem mais informada e consciente, socialmente, só é considerado “estupro” penetração ou sexo oral. Todo o resto costuma ser tido como “menos grave”. Está certo esse posicionamento? De forma alguma, está muito errado. Mas infelizmente, ainda parece ser uma maioria a que pensa assim. Então, tomara que um dia este texto fique obsoleto, tomara que as pessoas olhem e pensem “nossa, que absurdo, isso não era visto como estupro?”. Até aqui, é assim que as coisas são.

Mas o objetivo não é discutir terminologia. O ponto deste texto é: você, homem, provavelmente não tem ciência nem de 10% do que acontece com as mulheres da sua vida em matéria de desrespeito, assédio e estupro.

Primeiro por muitas delas naturalizarem o que acontece, segundo por elas sentirem vergonha e terceiro por elas saberem que contar certas coisas só vai te causar desgosto e você não vai poder fazer absolutamente nada a respeito.

Que bem traria dizer a um pai, irmão ou marido que um filho da puta tirou os genitais para fora da calça e esfregou em você no ônibus lotado? Ou que se masturbou ao seu lado no metrô lotado e você não conseguiu sair de perto e o sujeito ejaculou nas suas pernas? Não gera nada de bom, só deixa o outro transtornado com algo que ele não pode fazer nada a respeito. Então, a gente aprendeu a engolir e lidar com isso sozinhas.

Mas acontece. Saibam que acontece. Mais do que vocês imaginam. Já deve ter acontecido aos montes com a sua mãe, bastante com sua esposa e muito com a sua irmã. E elas tiveram que lidar sozinhas com isso.

E com este texto eu não quero encorajar ninguém a contar. Conte se achar que tem que contar, não conte se achar que não tem que contar. É uma decisão personalíssima sua. Mesmo que uma mulher decida contar tudo, coisa que eu acho muito improvável, ter que viver em um mundo onde isso acontece é difícil de lidar e isso ela vai ter que trabalhar sozinha.

O objetivo com este texto é que os homens saibam que quase todas as mulheres têm esse fator extra de estresse em suas vidas – e mais do que eles imaginam, em quantidade e em grau. E isso te tira um pouco da saúde mental, da capacidade de concentração, da disponibilidade emocional. Isso leva a reações, escolhas e mecanismos que podem parecer excessivos ou irracionais para quem não tem a noção do que aconteceu.

Então, antes de dizer que uma mulher “tá nervosa” ou “tá estressada” por nada, lembre deste texto. Talvez ela tenha passado ou esteja passando sistematicamente por uma situação horrível, está processando isso sozinha para te poupar e você, em retribuição, está minimizando o impacto disso nela. Pensem um pouquinho mais antes de falar.

E mesmo que, por um milagre que desde já eu te comunico ser impossível, uma mulher nunca tenha sofrido nenhum tipo de abuso, desrespeito ou assédio, o simples fato de viver em uma sociedade que sabidamente faz isso já gera um estresse, um medo constante, um modo “luta ou fuga” cada vez que sai na rua, ainda que a própria mulher não perceba isso.

Então, impacta a todas as mulheres. E, por ser algo muito aviltante, insuportável e constante, as mulheres encontram formas de dissociar, de negar, de tentar esquecer no seu consciente que a realidade é assim, se não, enlouquecem. Mas, no inconsciente a gente não manda, e ele sabe, ele lembra. Viver com medo, ainda que seja inconsciente, é um veneno e te coloca em desvantagem em tudo na vida. Sejam mais compreensivos.

O que muitas vezes se atribuí a “hormônios”, a “loucura” a “descontrole” é só esse veneno diário impactando a mulher mais do que ela é capaz de suportar naquele momento da vida. Sério mesmo, sejam mais compreensivos.

E com isso eu não quero dizer que algum homem tenha que tolerar abusos por parte de mulheres, como invasão da sua privacidade, desrespeito, xingamentos ou coisa do tipo. Jamais. O que eu quero dizer é que uma mulher emocionalmente esgotada provavelmente é uma mulher que passou por muito mais coisa do que você imagina.

Para terminar, quero dizer às mulheres que estão aqui que, mesmo lendo este texto, os homens não vão entender a magnitude do que eu estou falando e eu não acho legal que ninguém vá aos comentários compartilhar os abusos que sofreu, então, criei um meio-termo capaz de dimensionar o problema sem expor as mulheres. Fiz um bingo do abuso:

Somem quantos pontos vocês marcaram em toda sua vida e postem de forma anônima o resultado, assim, ninguém vai saber exatamente o que aconteceu, mas saberão que aconteceu.

“Mas Sally, você está dizendo que um estupro é quase tão grave quanto passar a mão em uma mulher?”. Não. Claro que não. Estupro deveria somar mil pontos, mas se eu colocasse assim, todo mundo saberia que mulheres com pontuação alta foram estupradas.

Não é um quantificador de sofrimento ou gravidade, é apenas uma ferramenta concreta para que homens percebam que isso acontece – e muito.

“Mas Sally, o que fizeram comigo não está na tabela”. Sim, seria inviável listar todos os tipos de abuso… e no Brasil, são muitos. Então, procure o mais parecido e pontue.

Normalmente eu não faço questão que leitor comente aqui, mas hoje eu acho importante. Lembro sempre que o anonimato de todos é assegurado pelo Desfavor e assim vem sendo mantido há mais de 15 anos. Hora de que os homens entendam a dimensão do que mulheres passam no Brasil.

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