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Por que os pobres não matam os ricos?

Por que os pobres não matam os ricos?

| Somir | | 8 comentários em Por que os pobres não matam os ricos?

Do ponto de vista da natureza, o que importa é conseguir seus recursos. Algumas espécies se especializam em parasitar outras, algumas espécies ocupam o nicho de roubar caça de outros animais… desde que você consuma calorias suficientes para sobreviver, está tudo certo. Mas o ser humano consegue negligenciar suas necessidades fisiológicas básicas por motivos abstratos como posse, pertencimento e honra. Não estou dizendo que é ruim, estou dizendo que é estranho.

Se o seu cachorro puder pegar sua comida para matar a fome dele, ele vai fazer isso. E dificilmente um outro ser vivo vai ter o mesmo afeto que um cachorro tem pelo seu humano. O ponto aqui é que na natureza, fisiologia pura, não existe nenhum motivo óbvio para não comer quando se está com fome. O instinto até faz com que pais se alimentem mal para cuidar de suas crias se necessário, mas depois que fica estabelecido que o filho já está pronto para se virar sozinho, as coisas voltam ao normal. O passarinho faz das tripas coração para alimentar o filhote, mas uma hora ou outra empurra para fora do ninho.

Porque a lógica natural é simples: se você quer algo, você pega. Se o que você quiser pegar estiver protegido por outro ser vivo, você vê até onde pode ir. Não me parece que em nenhum momento existe o pensamento interno num animal que aquilo veio do trabalho alheio e “em tese” não é direito dele consumir aquele recurso. É comida, ele quer comer, pronto. Se ninguém conseguir impedir que ele faça isso, ele vai fazer.

Até por isso eu comecei com o exemplo do cachorro: a maioria das pessoas não vai enxergar malícia nas ações do animal. Talvez seu cachorro coma toda sua comida se tiver a chance, mas nunca vai pensar que isso pode te fazer mal. Essa coisa de simplesmente tomar o que quer do mundo não é sobre ser bom ou mau, é só o jeito como a vida evoluiu.

Mas… na sociedade humana, o pobre não toma as coisas do rico. Sim, existem roubos e furtos para todos os lados, mas mesmo o que consideramos alta criminalidade, nossas sociedades ainda permitem imenso acúmulo de recursos. Num mundo mais focado na Lei da Selva ia ser bem complicado alguém chegar no ponto dos bilionários modernos. E eu também entendo que essa gente tem excelentes sistemas de segurança, mas se uma favela invadir um condomínio de ricaços no modo selvagem de verdade, os números muito superiores dos mais pobres vencem.

E como vimos com o caso do Hamas invadindo Israel, com um pouquinho de equipamento já dá para fazer um estrago terrível. Os poderosos temem revoluções porque depois de uma massa crítica de gente pobre furiosa, não tem quase nada o que fazer. Lembrando que nem em casos de genocídios totalmente descarados dá para simplesmente eliminar uma grande população sem ter números maiores. Genocídios acontecem contra minorias pelo motivo da praticidade também.

Depois desse aparte sobre a podridão do ser humano, podemos voltar à pergunta original: por que os pobres simplesmente não matam os ricos e tomam seus recursos? Qual a verdadeira defesa de uma mansão e cinco seguranças armados contra milhares de pessoas raivosas? Os poderosos acabam colocando a cara em público de tempos em tempos, qualquer tentativa volumosa o suficiente daria certo.

Por mais forte que seja uma pessoa, ela vai ser derrotada por meia dúzia de homens raivosos. E considerando que a proporção de ricos para pobres é de menos de um por mil, as contas não fecham a não ser que tenha alguma coisa extra no ser humano que não o deixe agir assim. Se fosse só instinto, provavelmente nenhum rico se aguentaria vivo no mundo, o que é mais ou menos a lógica do mundo animal. Não existe leão rico.

E aqui, a minha teoria da vez: mais do que qualquer trava social baseada em leis ou religiões, eu argumento que o ser humano inventou a riqueza antes de inventar a sociedade. Ela é um valor mais fundamental do que a convivência. Aliás, eu posso ir mais longe: a riqueza inventou o ser humano como conhecemos. Antes dela, éramos mais uma espécie de macaco esperto, como os chimpanzés.

Pessoas que tem dificuldade de comprar comida para alimentar os filhos olham para um carrão esporte de um rico e entendem que o rico mereceu aquilo. Eu não consigo entender isso como apenas medo de consequência legal ou do poder do rico, porque se fosse só isso o rico nunca conseguiria consolidar riqueza: qualquer outra pessoa que tivesse a chave do cofre pegaria o que quisesse imediatamente.

Voltando ao exemplo do cachorro: se você deixar um saco de ração aberto sem supervisão, a não ser que ele tenha sido treinado duramente para não mexer naquilo, o animal vai lá comer. Não existe modelo mental de posses do outro, e se você está pensando em como animais marcam território, só os seres que têm medo do animal que marcou respeitam. Você não precisa ter medo de uma senhorinha para não entrar na casa dela, a maioria de nós (espero) não roubaria nem um doce de uma criança gorda.

Posse e merecimento são partes do “mito de criação humano”. Devemos ser descendentes daqueles que conseguiam colocar necessidades básicas atrás de uma camada de abstração de mérito. Porque é muito fácil desmontar a sociedade que temos com rebeliões populares, é tão fácil quebrar tudo e pegar o que queremos… tem que ter algo a mais do que mero medo de ser preso ou espancado para controlar tumultos constantes com o nível de desigualdade que temos.

Se a sua ideia do que é ser humano está conectada com a capacidade de ficar rico, a estranha estabilidade da sociedade moderna começa a fazer mais sentido. Não é uma análise de como somos gananciosos, é sobre como foi-se acumulando a ideia de acumular recursos como medida de sucesso. Na passagem entre animal como os outros para a espécie dominante do mundo, o que fez diferença vez após vez foi a nossa capacidade de produzir muito mais que precisamos pessoalmente.

Passar de subsistência para trocas e depois comércio criou a cola que uniu pessoas diferentes e formou especialistas. Especialistas rapidamente começam a desenvolver cultura e conhecimento duradouro, que passa de geração para geração. O fato de continuarmos produzindo alimento e acumulando posses muito além da necessidade atual é mais do que capitalismo, é o ser humano. Outros animais acumulam recursos, mas infelizmente para eles, o potencial de explosão de complexidade não existe, falta cérebro e polegares opositores.

Nós somos o bicho que acumula recursos da forma mais insana que essa Terra já viu. E quem foi sendo criado nessa corrida pela produção de valor infinita provavelmente foi selecionado por compatibilidade. Se fôssemos todos cachorros, cada acúmulo seria consumido na hora, ninguém ia respeitar a riqueza de ninguém. Ainda sociais, mas incapazes de criarmos ricos.

Então, sim, leis e crenças religiosas podem ajudar a manter protegidos os recursos acumulados, mas não explicam por que os pobres não matam os ricos. Existe recompensa interna suficiente para o ser humano médio em respeitar a riqueza alheia. Pode ser a noção de merecimento, pode ser até mesmo o interesse mais egoísta de não querer ter a sua riqueza tomada quando a conseguir.

Mesmo depois de grandes revoltas populares, mesmo com sistemas falindo, sociedades acabam voltando para sistemas desiguais. Cai o governo, crescem senhores da guerra. Dê tempo suficiente e os senhores da guerra viram governo. O ponto de equilíbrio social humano parece exigir desigualdade. A revolução motiva, mas depois de um tempo, parece desanimar a população.

Regimes comunistas começam com tomada da riqueza de uma minoria, e depois de pouco tempo, só mudam a minoria. Eu já vi muita gente falando que a ganância do ser humano se sobrepôs… mas e se não for isso? E se o ser humano se sente mais à vontade ou mais motivado em sociedades com desigualdade? Pode ser a fundação da nossa existência como animal racional social.

Eu acho difícil acreditar em sociedades igualitárias, e não tem nada a ver com o humano ser um bom ou mau selvagem. O que faz as pessoas construírem é a ideia de que a construção vai ficar de pé. Criamos grandes projetos e grandes desigualdades na mesma proporção com essa resistência do humano médio de simplesmente tomar do outro o que quer.

Por que o pobre não mata o rico? Porque de alguma forma, é assim que a gente acredita que as coisas têm que ser. Porque é “normal” ter pobres e ricos. Quando uma pessoa ou um grupo conseguem matar a crença das pessoas na sociedade, é aí que o sangue começa a escorrer pelas ruas. Essa ideia não é defesa para nenhuma ideologia, porque todas as ideologias parecem vir depois dessa crença fundamental de que podemos acumular riquezas.

E que poder acumular é o que significa nossa existência superior a dos outros animais. Só podemos mexer no sistema depois dessa fundação, capitalismo, comunismo e todas as variações são formas mais específicas de organizar uma sociedade, mas a sociedade, o ser humano… ele é acúmulo de riquezas. É onde “quebramos a natureza” e começamos a seguir novos caminhos evolutivos. Você pode gostar ou não gostar de riqueza, mas eu acredito que inconscientemente você nem sabe o que a gente faria se ela não existisse mais.

Existem outras riquezas que você pode acumular, não precisa ser apenas comida e ouro, pode ser influência e caridade, pode ser impacto cultural, pode ser um monte de coisas abstratas também. Mas sem nunca esquecer que existe sim um objetivo interno de acúmulo, de ser mais do que eficiente, ser excedente.

Quem não lida com esse impulso humano cria sociedades falhas. O capitalista que empurra o outro humano tão para as margens que ele não consegue nem mais acumular idealismo, o comunista que quer transformar o ser humano num ser de desejos controlados, igualdade por igualdade. O autoritário que quer decidir pelo outro… todos falham ao não lidar com a nossa necessidade fundamental de acumular alguma coisa para se sentir humano.

Ficou tatuado nos nossos genes a ideia de que estamos vencendo quando existe riqueza. Que outro bicho é tão desesperado por acumular? Se quiser igualar na parte da comida e do ouro, teria que ter uma liberdade criativa imensa para as pessoas se medirem e se sentirem poderosas de outras formas.

Talvez alguns de vocês se sintam traídos pelo caminho que o texto pegou, mas eu fiz tudo isso para uma conclusão: seja para qual lado você penda politicamente, não se esqueça que o autoritarismo é o maior inimigo da evolução humana. É ele que fecha portas para a riqueza de um povo, é ele que cria os monstros do capitalismo e do comunismo, por querer nos colocar em caixinhas muito pequenas e decidir o que nos faz contente.

Estamos felizes quando existe riqueza, seja ela de recursos, de relações ou de ideias. E nem precisa ser a nossa, pode ser apenas a esperança de chegar lá. Sistemas autoritários tem essa falha fundamental de prender a riqueza e não deixar todo mundo participar. É claro que a humanidade pode fazer melhor para dar direitos básicos para todos, mas… não vai ser debaixo de uma bota que a alma humana vai funcionar.

A “maluquice” do pobre não simplesmente matar o rico é o nosso espírito sobrevivendo ao sofrimento da vida. É aquele diferencial primal que nos tirou das cavernas. E ele funcionou mesmo sob a opressão constante da fome, do frio, de predadores. Quando vemos pessoas mais e mais interessadas no prospecto de aceitar um governo autoritário em troca de segurança, para fingir que se livraram do medo, vemos o espírito da riqueza sumindo.

Não é sobre ter um líder forte, é sobre as pessoas viverem mais ou menos bem e terem o potencial de crescer. Essa democracia socialista/capitalista igualmente maluca que criamos é a continuação natural do espírito de liberdade criativa e de geração de riquezas do qual dependemos. Me parece óbvio que as soluções para o sofrimento da desigualdade estão dentro do sistema mais livre, jamais no autoritário. Porque o autoritário sempre termina com supressão da capacidade das pessoas de ficarem ricas ou “ricas” de formas menos materialistas. Sempre vem com favoritos do governo, sempre vem com corrupção violenta, sempre vem com censura.

O autoritarismo é a doença do espírito humano. É a pobreza assumindo o controle para tomar para si tudo o que podemos criar.

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